sábado, 16 de fevereiro de 2013

O samba fez a diferença(Martinho da Vila)-Ana Clara Brant‏

Martinho da Vila, de bem com a escola que ajudou a projetar, participa hoje do desfile das campeãs. Enredo sobre a vida no campo, patrocinado por multinacional, gerou protestos 

Ana Clara Brant
Estado de Minas: 16/02/2013 
Do arraiá da Sapucaí direto para o arraiá em Duas Barras, na divisa do Rio de Janeiro com Minas Gerais. O cantor e compositor Martinho da Vila comemorou os seus 75 anos na terça-feira, em grande estilo. Desfilando pela escola do coração, a Vila Isabel, assistiu a seu samba-enredo A Vila canta o Brasil, celeiro do mundo – Água no feijão que chegou mais um, que compôs em parceria com Arlindo Cruz , André Diniz, Tonico da Vila e Leonel, emocionar a avenida e ser eleito um dos melhores de 2013. Para vários especialistas, a música foi um dos quesitos que mais ajudaram a agremiação a se sagrar vencedora do carnaval carioca pela terceira vez, e caiu com uma luva com o enredo que falou da vida no interior e no campo.

Hoje, o compositor deixa sua cidade natal, a 170 quilômetros do Rio de Janeiro, e vai direto para o sambódromo para o desfile das campeãs. Curiosamente, Duas Barras – que Martinho apelidou de “meu off-Rio”– acabou servindo de inspiração para o samba antológico. A fazenda, onde o compositor passou a semana e acompanhou a apuração do desfile, é a mesma onde nasceu em 1938. Quando se tornou conhecido, voltou ao município para ser homenageado com grande festa, descobriu que a propriedade estava à venda e a comprou.

Pouco antes do desfile da Vila, Martinho chegou a “prever” mais um título para a agremiação e comentou que o enredo tinha tudo a ver com a sua própria história. “Tem muito a ver comigo, porque fala sobre a vida no campo e o trabalho do agricultor. Meu pai era fazendeiro, minha origem é no campo. Acho que a gente vai entrar feliz e contente na avenida. Vai ser muito bonito ver a Vila desfilar. Pra mim é a grande favorita”, declarou o artista, que saiu no sexto carro, como um fazendeiro.

Sua relação com a Vila Isabel, presente inclusive no seu nome artístico, é um casamento que já dura 45 anos. E assim como toda relação, teve seus altos e baixos. Sua entrada na escola, da qual ele é o presidente de honra, ocorreu em 1965. O cantor e compositor fazia parte da Escola de Samba Aprendizes da Boca do Mato e já estava partindo para a Império Serrano, quando surgiu o convite para integrar a ala de compositores da Vila. Na nova escola, Martinho reestruturou a forma de compor samba-enredo, com a introdução de letras e melodias mais suaves, emplacando quatro sambas consecutivamente. Em 1967, foi o responsável por Carnaval de ilusões; em 1968, foi o autor de Quatro séculos de modas e costumes; em 1969, fez Iaiá do cais dourado; e em 1970, Glórias gaúchas. Essa contribuição aos sambas da Vila se deu até 1993, com Gbala – Viagem ao templo da criação,  e só foi retomada 17 anos depois, em 2010, quando a escola cantou o centenário de Noel Rosa.

Mas nem por isso Martinho da Vila deixou de participar dos carnavais por lá. Foi o responsável pelos enredos em 1984 (Pra tudo se acabar na quarta-feira), 2001 (Estado maravilhoso cheio de encantos mil), 2003 (Oscar Niemeyer – O arquiteto no recanto da princesa), 2005 (Singrando em mares bravios... construindo o futuro) e pelos outros dois títulos da Vila Isabel: Kizomba, festa de raça, em 1988; e Soy loco por ti América: A Vila canta a latinidade, em 2006.

Aliás, foi nessa ocasião, que Martinho da Vila se desentendeu com a diretoria da escola e foi pular o carnaval no Recife. Na época, comentou-se que ele teria ficado chateado por seu samba-enredo não ter se classificado e nem chegou a desfilar. Só na folia de 2008 voltou a integrar a ala de compositores da escola, mostrando que o amor pela Vila Isabel falou mais alto. Ganhou a Vila, ganhou o samba, e ganhou o carnaval.

Para 2014, além de contar mais uma vez com sua figura mais ilustre, a azul e branco da Zona Norte do Rio vai manter o patrocínio deste ano, fato inédito na história carnavalesca, já que renovou com a Basf, empresa química alemã. E, de acordo com o presidente da Vila Isabel, Wilson Vieira Alves, o Wilsinho, o enredo do próximo ano deverá ser uma continuação do campeão de 2013.


Desfile das campeãs 

Hoje, no Rio de Janeiro

• 21h – Grande Rio
• 22h05 – Salgueiro
• 23h10 – Imperatriz Leopoldinense
• 0h15 – Unidos da Tijuca
• 1h20 – Beija-Flor 
• 2h25 – Vila Isabel 



A Vila canta o Brasil, celeiro
do mundo – Água no feijão 
que chegou mais um...

Compositores: Arlindo Cruz , Martinho 
da Vila, André Diniz , Tonico da Vila e Leonel


O galo cantou
com os passarinhos no esplendor da manhã
agradeço a Deus por ver o dia raiar
o sino da igrejinha vem anunciar
preparo o café, pego a viola, parceira de fé
caminho da roça, e semear o grão...
saciar a fome com a plantação
é a lida...
arar e cultivar o solo
ver brotar o velho sonho
alimentar o mundo, bem viver
a emoção vai florescer.

Ô muié, o cumpadi chegou
puxa o banco, vem prosear
bota água no feijão já tem lenha no fogão
faz um bolo de fubá.

Pinga o suor na enxada
a terra é abençoada
preciso investir, conhecer
progredir, partilhar, proteger...
cai a tarde, acendo a luz do lampião
a lua se ajeita, enfeita a procissão
de noite, vai ter cantoria
e está chegando o povo do samba
é a Vila, chão da poesia, celeiro de bamba
Vila, chão da poesia, celeiro de bamba.

Festa no arraiá,
é pra lá de bom
ao som do fole, eu e você
a Vila vem plantar
felicidade no amanhecer.


Enquanto isso...
...Sem Kizomba

Martinho da Vila já cantou Zumbi e as lutas da América Latina na avenida. Desta vez, ao tratar da vida no campo em A Vila canta o Brasil celeiro do mundo – Água no feijão que chegou mais um…, nada de sem-terra, populações indígenas, latifúndios, quilombolas, conflitos de terra e agrotóxicos. O patrocínio do desfile da Vila Isabel pela Basf, empresa multinacional produtora de insumos agrícolas – que atualmente responde no Tribunal Superior do Trabalho (TST) a pedido de indenização de funcionários vítimas de contaminação por defensivos –, talvez explique a visão idílica mostrada na Sapucaí. 
Os protestos de organizações populares pipocaram na internet, em diferentes registros, dos radicais aos mais moderados. Representantes de movimentos sociais, participantes da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, em carta à Vila Isabel, elogiaram a letra do samba e a representação da vida camponesa, mas repudiaram o patrocínio da empresa, a terceira maior vendedora de agrotóxicos no Brasil. Esquerdista histórico, nem o próprio Martinho escapou das críticas. Além da política, o sambista, de acordo com os descontentes, pisou na bola também em cultura popular: saiu o jongo, o caxambu e o congado, que sempre frequentaram seus enredos, para dar lugar a quadrilhas de inspiração europeia. Pouca Kizomba para muito agronegócio.

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