Estado de Minas: 23/02/2013
Mulher acende vela em apagão que atingiu o Nordeste do país em fevereiro de 2011 |
O Brasil é um país com abundância de recursos hídricos e tem o pleno domínio da tecnologia para a produção de energia a partir da água. Porém, tem uma das energias mais caras do mundo e vive às voltas com apagões e ameaças de racionamento. O engenheiro Luiz Vicente Gentil, professor da Universidade de Brasília (UnB), um estudioso do sistema elétrico brasileiro, faz uma análise do cenário atual e mostra quais são os entraves que impedem o país de ter uma energia barata e farta.
Trabalho de janeiro, realizado na Universidade de Campinas (Unicamp) e Universidade de Brasília (UnB) mostra a relação dos problemas e opções de soluções para tornar competente o sistema elétrico brasileiro. Eles estão ligados à infraestrutura, à governabilidade e ao marco regulatório. Todos eles, problemas fáceis de resolver no curto, médio e longo prazos, diante do potencial energético do país, ainda não explorado de forma profissional. O Brasil tem a maior reserva mundial de energia elétrica em forma de água, urânio, biomassa, combustíveis fósseis (carvão, óleo, gás) e vento. São tecnologias maduras e economicamente viáveis. No entanto, ainda consegue produzir uma das mais caras eletricidades do mundo, com racionamentos e apagões.
O baixo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) em 2012, de apenas 1,1%, está em parte relacionado ao alto preço da tarifa de energia. A China, país emergente com menos recursos energéticos que o nosso e com uma população de 1,4 bilhão de pessoas, cresceu 7,7% em 2012. A tarifa é uma das variáveis do sucesso, quando menor, o que não ocorre aqui. O nosso consumidor paga US$ 141 por megawatt; nos Estados Unidos, o valor é de US$ 74 por megawatt e, no México, de US$ 45 por megawatt. Mesmo com a redução média de 11% na tarifa, anunciada pelo governo e a vigorar a partir deste mês, a energia continua sendo ruim e cara. Ajuda, mas não resolve, pois o quadro não mudará pela Medida Provisória 579 diante da profunda intervenção e insegurança institucional que causou.
Em 10 de novembro de 2009, 70 milhões de brasileiros ficaram sem eletricidade; em 25 de outubro de 2012, foram 53 milhões. O apagão de 2001 durou 14 meses, obrigou o racionamento de energia. Foi causado pela falta de planejamento, baixo nível dos reservatórios das hidrelétricas, tarifa cara e ausência de investimentos na infraestrutura de energia. Para resolver esta crise institucional, a Lei 10.848, de 15 de março de 2004, com todo o arcabouço jurídico paralelo, tentou criar um novo marco regulatório. O Ministério das Minas e Energia (MME, 1960), a Operadora Nacional do Sistema (ONS, 1998), a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel, 1996) e o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE, 1997) já existiam em forma embrionária. Foram criados em 2004 a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE). Isto criou estabilidade institucional. Porém, nestes últimos nove anos, a situação voltou a se deteriorar, com a falta de investimentos, má gestão, apagões, racionamento, eletricidade cara – uma das custosas do mundo –, apesar dos esforços do governo federal em dar uma redução nas tarifas e mensagens à população.
No Brasil, em 36 anos, o crescimento da população foi de 81% e o aumento da demanda por energia elétrica, de 646%. Ou seja, oito vezes mais. Isso causou uma torção em toda a infraestrutura do Sistema Elétrico Brasileiro (SEB), deixando para trás variáveis importantes, como transmissão, geração e distribuição de energia boa e barata, como a das hidrelétricas, novos investimentos, marco regulatório adaptado às atuais realidades, travamento administrativo, não só pela burocracia, e cipoal de leis, decretos, portarias e resoluções difíceis de decifrar. O aumento do consumo total de energia no Brasil foi de 240%; já o consumo de eletricidade aumentou em 645%, ou seja, a demanda elétrica foi 2,7 vezes maior que a demanda global por energia. Nesse mesmo período de 36 anos, a população mundial cresceu 70%; já a demanda por eletricidade aumentou bem mais: 327%.
Nos últimos 12 anos, a migração de 40 milhões de brasileiros das classes D e E para a consumidora classe média C gerou uma demanda adicional média anual de 4,5%. Isso sobrecarregou o sistema sem a correspondente expansão nas linhas de transmissão. Para uma população que cresce 0,8% ao ano, há uma grande pressão por energia per capita. Nestes últimos, a sociedade e a demanda cresceram, mas a infraestrutura e os serviços ficaram obsoletos. Isso significa que os sintomas que existiam em 2000 estão de volta, rondando a sociedade com um provável novo apagão. E com o agravante de a ameaça aparecer no delicado momento de renovação das concessões das hidrelétricas e da rede básica, que somam 82% de toda a geração elétrica que tem hoje o país. Embora isso seja pouco divulgado na mídia, existe o risco de os investidores internacionais abandonarem ou venderem os ativos de geração, distribuição e transmissão pelo simples fato de o negócio elétrico não ser mais compensador. Como prova disso, basta lembrar que o complexo Eletrobras perdeu 58% de seu valor na Bovespa desde a emissão da intempestiva MP 579; isso é considerado um perigo em termos econômicos. Seria prudente se houvesse melhor estratégia política de longo prazo em relação a um tema de tamanha envergadura e risco, como esse da segurança nacional do abastecimento elétrico.
Não só países emergentes, mas também os desenvolvidos têm lições a dar. O terremoto e o tsunami de março de 2011 no Japão reduziram a presença da geração nuclear na matriz energética daquele país, encarecendo a tarifa de energia elétrica pela entrada, na geração, de termelétricas a gás, e reduzindo a competitividade industrial, a exportação e o PIB do Japão em 2012. As termelétricas brasileiras junto com as hidrelétricas a fio d'água são uma mistura explosiva para o Brasil; de um lado, pela pequena geração obtida em relação à total capacidade das hidros; de outro, pela tarifa elevada da energia produzida pelas térmicas.
Para criar a base de um novo sistema elétrico brasileiro, este trabalho da Unicamp e da UnB apresenta caminhos, fruto de um avançado estudo de dois anos nos segmentos de marco regulatório, governança e políticas que o nosso país pode e deve seguir para obter o desejado: eletricidade barata, farta, constante e que beneficie de forma justa os players, que representam 18% da energia demandada no Brasil.
A primeira ação mostra que países maduros operam no mercado livre e que os emergentes, ou subdesenvolvidos, preferem o controle estatal, sem transparência, com racionamento, uso da máquina pública para interesses político-partidários e produção de energia cara, como no Brasil. Nos países maduros, as agências reguladoras não são do Estado; elas são independentes para beneficiar o coletivo e não grupos, seja do governo ou de corporações privadas. Alguns países praticam o marco regulatório em forma de pêndulo, optando, de tempos em tempos, pelo liberal ou pelo regulado, conforme o partido político naquele momento no poder. O Brasil, pela sua economia e evolução social, já deveria estar no mercado livre de eletricidade.
A segunda ação trata da necessidade de as hidrelétricas gerarem energia com reservatório e não a fio d'água, modelo de produção no qual existe um grande investimento para gerar apenas um pouco de energia, em função do rio original, que, por sua vez, é produtivo apenas na época das águas. A produção a fio d'água é uma aberração de política pública para um país como o Brasil, de grandes dimensões territoriais e carente de energia barata, farta e ambientalmente correta, como a gerada pela água. Tal situação obrigou o país a ter termelétricas para compensar a falta de eletricidade das hidros. É o momento de refazer a lei que tanto prejudica a população: a da geração a fio d'água.
A terceira linha de ação é o Net Metering (NEM) associado ao conceito de Geração Distribuída (GD). Ou seja, geração próxima à demanda – não só para fontes renováveis, como também para outros combustíveis – e com menos de dez megawatts de potência instalada por unidade. Os Estados Unidos, desde 2005, e o Brasil, via Aneel, já têm algo nesse sentido, porém ainda tímido.
Na conta de energia, temos 45% de impostos, taxas, encargos e subsídios. O governo desonerou alguns deles, entre os mais de 30 existentes, com redução média de 11% a partir deste mês. Poderia ter eliminado 50% deles em um horizonte de 10 anos. O mais pesado é o ICMS, que varia de 18% até 33%, pois nas regras do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) cabe aos estados decidir isso. Esse estudo defende também a redução, em 50%, em 10 anos, do ICMS cobrado da conta de energia. Faz isso por dois motivos: primeiro, porque a redução desse imposto é proporcional ao crescimento socioeconômico do país. Segundo, porque na matriz da receita estadual o ICMS da conta de luz não tem impacto significativo. Mas esbarra nas alianças político-partidárias entre União e estados, em detrimento dos consumidores industriais e residenciais. Em função disso, indústrias eletrointensivas, principalmente multinacionais, estão fechando as portas no Brasil e se mudando para outros países de energia mais barata. Em algumas delas, esse insumo chega a corresponder a até 40% dos custos, superior até ao da folha de pagamento.
As 105 pessoas físicas e as 65 pessoas jurídicas entrevistadas nesse trabalho da Unicamp/UnB apontam as licenças ambientais como um dos entraves à geração. São documentos que podem ser caros, demorados e até abusivos, expedidos pelas secretarias estaduais de meio ambiente e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Esse trabalho sugere que a lei seja corrigida e as licenças não demorem mais de 30 dias corridos para a sua liberação ou reprovação; algumas demoram até um ano e sete meses. Os entrevistados registram que até rota de pássaros e alguns peixes podem embargar obras gigantes, de muitos milhões de reais, já aprovadas e em construção.
A última ação para ajudar o Brasil a entrar nos trilhos é a da governabilidade. O quadro político não tem agilidade proporcional à rapidez das mudanças sociais, tecnológicas e econômicas exigidas. Entre elas está o fato de que a expansão do consumo de energia é maior que a da infraestrutura. Como o Estado tem pouco caixa, procura se unir à iniciativa privada. Entre outros efeitos desse quadro, surge um vácuo legislativo, uma desaprovação popular e um desempenho político nem sempre transparente. O governo às vezes precisa emitir medidas provisórias casadas com o Legislativo. Os entrevistados nessa pesquisa da Unicamp/UnB mostram um certo cansaço com relação a fatos do mercado de eletricidade como a burocracia, o corporativismo, o uso da máquina para fins duvidosos, o alto risco com baixo lucro, assim como uma desconfiança em um horizonte mais largo. A maioria dos segmentos sociais percebe a existência deste quadro, mas se diz sem condição de mudar a situação. Talvez um novo apagão, como o de 2001, traga um pouco de bom senso, vontade política e consciência acerca do bem comum e da necessidade de cooperação suprapartidária entre os que decidem os destinos da cara eletricidade paga pelos 193 milhões de brasileiros.
Luiz Vicente Gentil é professor da Universidade de Brasília (UnB) e engenheiro com pós-doutorado em marco regulatório elétrico.
E-mail: gentil22@unb.br
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