Estado de Minas - 26/02/2013
Máfia de
médicos deixava pacientes até sem comida para morrerem e virarem
"doadores". Estado de Minas detalha o esquema denunciado por pelo menos
oito mortes em Poços de Caldas. O comércio de tecidos humanos levou à
condenação de quatro médicos por um dos óbitos. Segundo a investigação,
pacientes que poderiam se recuperar eram deixados definhando em
enfermarias, sem medicamentos e alimentação, até serem levados à UTI,
para manter os órgãos funcionando. // Poderes corrompidos - Juiz afirma
que Polícia Civil e MP não deram andamento às apurações, que acabaram
sendo assumidas por equipes de BH, levando às condenações. // Lista
paralela - Máfia criou instituição pirata, a MG Sul Transplantes, que
mantinha relação de receptores dispostos a pagar pelos órgãos em cidades
de Minas e de São Paulo.// "Me tiraram o pai. Aos 14 anos, tive de ser
pai para o meu irmão", Júnior de Carvalho, que confirmou os maus-tratos
sofridos pelo pai, vítima da quadrilha de venda de órgãos.
Condenados à morte dentro do hospital
EM localiza famílias de vítimas do que a
Justiça trata como 'máfia dos transplantes' e ouve denúncias de que
pacientes que deveriam estar no CTI passavam até fome em enfermarias
Mateus Parreiras
Enviado especial
Publicação: 26/02/2013 04:00
Poços de Caldas, Bandeira do Sul e Carvalhópolis –
Estudos da área de segurança pública definem “máfia” como uma
organização com estrutura hierárquica definida, múltiplas atividades
criminosas e influência velada sobre o poder público. Treze anos depois
das primeiras denúncias de assassinato de pacientes para tráfico de
órgãos humanos em Poços de Caldas, no Sul de Minas, esse é o tipo de
grupo descrito por promotores e juízes de Belo Horizonte que tomaram a
frente das apurações e das ações judiciais que resultaram delas. Os
trabalhos se referem a uma série de denúncias, encabeçadas por pelo
menos oito mortes suspeitas e transações ilícitas de órgãos por meio de
uma lista de receptores paralela à oficial. Mais impressionante do que
os relatos sobre o grupo de médicos suspeito de deixar pacientes
definhar deliberadamente e até retirar vísceras de vítimas ainda vivas,
porém, são relatos de horror feitos por parentes dessas pessoas. A
reabertura das investigações leva alguns desses familiares, localizados
pelo Estado de Minas, a reviver os dias de angústia enfrentados durante
as internações na Santa Casa de Poços de Caldas, na qual operava o grupo
investigado, e onde, segundo contam, pacientes chegavam a passar fome
enquanto, de acordo com a Justiça, eram deixados para morrer.
As
denúncias, segundo autoridades que assumiram os processos, passaram anos
diante do descaso oficial de policiais e promotores locais. A primeira
sentença , divulgada na última semana, saiu depois da designação de
autoridades de fora para assumir os casos. Nela foram condenados em
primeira instância quatro réus, todos médicos. Alexandre Crispino
Zincone, de 48 anos, recebeu pena de 11 anos e meio de prisão; João
Alberto Goés Brandão, de 44, Celso Roberto Frasson Scafi, de 50, e
Cláudio Rogério Carneiro Fernandes, de 53, foram condenados a oito anos
cada um. Todas as penas são em regime fechado, embora os réus possam
recorrer em liberdade. As acusações contra Félix Herman Gamarra
Alcântara, de 71, e Gérsio Zincone, de 77, caducaram, devido ao fato de
serem maiores de 70 anos, embora a Justiça tenha considerados
procedentes fatos pelos quais foram denunciados. A defesa dos acusados
informou já ter recorrido da decisão.
O único caso julgado diz
respeito à morte de José Domingos Carvalho, que faleceu em 2001, aos 38
anos. Segundo sentença de primeira instância, ele foi morto na Santa
Casa de Poços de Caldas para ter os órgãos traficados. Mais de 12 anos
depois de enterrá-lo, seus parentes, assim como de outras supostas
vítimas da organização, vivem hoje uma angústia. Não sabem se foi sua
autorização no papel da MG Sul Transplantes – entidade criada em Poços
de Caldas para burlar a lista de espera oficial de receptores de órgãos e
tecidos, segundo a Justiça – que permitiu ao grupo investigado tirar a
vida do paciente para lucrar com rins, córneas, coração e fígado. “A
gente leva a pessoa para o hospital para ver ela sair bem. Para ser
curada. Não para morrer nas mãos de quem deveria salvar”, desabafa o
pedreiro Júnior Aparecido de Carvalho, hoje com 26 anos, filho da
vítima.
A morte do pai ainda assombra o rapaz, que tinha apenas
14 anos quando o enterrou. “Meu filho, não esquece de ajudar sua mãe e
de preparar os queijos para a gente pescar quando eu sair daqui do
hospital.” Foram as últimas palavras do pai para Júnior. Antes de ser
levado para a unidade de saúde de onde só sairia morto, José Domingos
sofreu mal súbito e desmaiou em casa. Foi transportado para o posto
médico da sua cidade, Bandeira do Sul, e depois para Poços de Caldas, a
19 quilômetros, onde se internou na Santa Casa. Foi lá que a família viu
o homem piorar sem receber o que julgaram ser um tratamento adequado.
“Meu pai ficou ali seis dias, no meio de 10 pacientes. Um dia,
encontramos com ele tentando fugir. Perguntamos o que tinha acontecido e
ele disse: ‘Vou sair, porque estou morto de fome. Ninguém me dá
comida’”, lembra Júnior. Depois do episódio e dos protestos da família, o
homem recebeu um pouco de sopa. “Quase comeu o prato, de tanta fome”,
lembra, entristecido, o filho.
Trechos da sentença que condenou
os médicos responsáveis pelo atendimento do pai de Júnior reforçam as
suspeitas da família. “Verifica-se que o paciente não teve o tratamento
adequado, pois desde o início o interesse das equipes médicas era na
retirada de seus órgãos para fins de transplante. Não se concebe um
paciente com um quadro tão grave ficar internado dias na enfermaria
geral”, escreveu o juiz Narciso Alvarenga Monteiro de Castro, da da 1ª
Vara Criminal de Poços, que julgou o caso, referindo-se ao diagnóstico
de aneurisma da vítima.
No sexto dia de internação, quando os
parentes foram visitar José Domingos, só encontraram o par de chinelos
dele sob a cama. Foi quando a família foi informada da morte cerebral.
“Veio uma psicóloga conversar com a gente por duas horas sobre a doação
dos órgãos. Disse que uma pessoa poderia voltar a ver por causa das
córneas do meu pai. A gente estava muito triste, mas concordou”,
relembra Júnior. Foi só depois do enterro, quando a família se resumiu à
mãe, catadora de café, ao irmão, então com 6 anos e a Júnior, que veio a
segunda pior notícia: a suspeita de tráfico de órgãos. “Foi a Polícia
Federal que nos procurou e contou tudo. Tiraram o meu pai. Tive de ser
pai para meu irmão aos 14 anos. Isso nunca vai sarar.”
Segurança reforçada para juiz
Após sentença que expôs médicos e
autoridades, magistrado despacha armado e segurança do Fórum de Poços
foi reforçada. Sentença aponta tráfico de órgãos e fraude em lista de
espera
Mateus Parreiras
Enviado especial
Poços
de Caldas, Bandeira do Sul e Carvalhópolis – O clima no Fórum de Poços
de Caldas desde que foi divulgada a sentença que condenou médicos da
Santa Casa local por tráfico de órgãos humanos é de tensão. A decisão
não só expôs o que seria uma organização criminosa operando na saúde,
mas também a “inoperância do poder público” nas investigações sobre a
máfia dos transplantes. Esse comportamento estendeu prazos e levou penas
a prescreverem, segundo um dos juízes. “O Ministério Público (de Poços
de Caldas) não é confiável: perde quase todos os prazos sobre esses
casos (envolvendo a organização criminosa), não oferece denúncias. A
Polícia Civil (da cidade) não dá andamento devido às investigações, não
encontra testemunhas”, reclamou o juiz da 1ª Vara Criminal da cidade,
Narciso Alvarenga Monteiro de Castro, em entrevista ao Estado de Minas
no último dia 21. O juiz prefere não falar mais sobre o caso, segundo
ele para evitar polêmica, mas é nítida a preocupação com sua segurança e
com a do Fórum de Poços de Caldas. O magistrado agora preside as
audiências com um revólver na cintura, debaixo do paletó; seu local de
trabalho e guarda de processos recebeu mais vigilantes e policiais.
Depois
que o magistrado chegou à cidade, em 2011, e a promotoria local foi
afastada dos processos, dando lugar a integrantes do Centro de Apoio às
Promotorias de Justiça Criminais (Cao-Crin), sediado em BH, os casos
começaram a ser reabertos e um deles foi julgado, com a condenação de
quatro réus em primeira instância. A equipe do Estado de Minas descobriu
em quatro processos detalhes das operações criminosas descritas pela
Polícia Federal e Ministério Público. O grupo que os promotores
classificam como “máfia”, além de envolvimento em mortes e tráfico de
órgãos de pelo menos oito pacientes entre 2000 e 2001, teria ligações à
época com a Santa Casa de Misericórdia de Poços de Caldas, onde
ocorreram óbitos e cirurgias irregulares. Duas auditorias de empresas
particulares, feitas a pedido da Câmara Municipal, em 2002, confirmaram
desvios na instituição, que concentra quase 90% de suas ações pelo
Sistema Único de Saúde.
De acordo com as investigações, as
fraudes envolvendo órgãos humanos se dariam por meio de uma instituição
clandestina, a MG Sul Transplantes, criada pelo grupo de médicos que
atuava na Santa Casa e em outros hospitais. A instituição serviria para
gerenciar a captação e transplante, burlando a lista oficial de espera
por órgãos, gerenciada em Minas pelo MG Transplantes. De acordo com as
apurações do Ministério Público que constam dos processos ativos, os
pacientes dos médicos acusados, que faziam hemodiálise na cidade ou eram
tratados por profissionais do rol de contatos da organização,
integravam uma fila pirata de possíveis receptores. A reportagem teve
acesso a essa relação, com pelo menos 81 nomes, sendo 11 deles das
cidades paulistas de Aguaí, Divinolândia, Espírito Santo do Turvo,
Limeira, Mineiros do Tietê, Mogi-Mirim, Mogi-Guaçu, São João da Boa
Vista, São José do Rio Pardo e Vargem Grande do Sul.
Caminhos formais
foram driblados
Em
uma operação regular de transplante, o hospital identifica o doador,
avisa a equipe de transplantes e os órgãos captados seguem para o
paciente que aguarda com maior prioridade ou com compatibilidade ideal
na listagem estadual do MG Transplantes. Se nenhum dos candidatos de
Minas Gerais se encaixar no perfil, órgãos e tecidos podem ser remetidos
a outro estado. É o hospital que fez a cirurgia de transplante que
recebe a maior verba da tabela do SUS.
O que a MG Sul
Transplantes fazia, segundo as investigações, era concentrar captação e
receptores, para que lucrasse o máximo possível do SUS pelas
intervenções, chegando a haver registros de anestesias em cadáveres – as
apurações levantam a possibilidade de que algumas vítimas ainda estavam
vivas quando tiveram os órgãos extraídos – e cobrança por transplantes,
que são gratuitos na rede pública. As operações nem sempre eram
bem-sucedidas, uma vez que duas das oito vítimas investigadas morreram
recebendo órgãos.
A descrição da forma de atuação da quadrilha
pelo Ministério Público revela detalhes de crueldade. Segundo as
apurações, pacientes que poderiam se recuperar em unidades de terapia
intensiva (UTI) eram mantidos propositalmente definhando em enfermarias,
sem medicamentos e até sem alimentação, até que sua situação piorasse.
Nesse estágio, eram levados às UTIs, apenas para manterem os órgãos em
funcionamento. Enquanto o esquema convencia famílias a permitir a
doação, por meio de psicólogos treinados e em ambientes com imagens de
religiosas, era providenciado o candidato adequado da listagem pirata.
Vítima também entre receptores
As
dúvidas sobre os procedimentos envolvendo doações e transplantes dentro
da Santa casa de Poços no início dos anos 2000 não se resumem a como
eram tratados os doadores. Na pequena Carvalhópolis, de 3,5 mil
habitantes, a professora Silmara Mezavila Tavares Teixeira, de 37 anos,
também guarda no peito uma pergunta que não se cala. A mãe dela, a
funcionária pública Alice Mezavila Tavares, de 50, recebeu um dos rins
do aposentado Adeleus Lúcio Rozin, de 58, mas morreu em 15 de abril de
2001, em uma das operações que estão sob suspeita. “No mesmo dia em que
ela morreu, dei à luz minha filha. Não sei e ninguém me conta se minha
mãe foi embora sabendo que tinha ganhado uma neta”, lamenta a mulher.
Desde
a adolescência, a mãe de Silmara tinha insuficiência renal crônica e o
transplante era a única esperança. “Ela queria muito fazer a operação,
coitadinha. Não passou pela cabeça a chance de ela morrer”, afirma. A
morte de Alice ocorreu devido a uma infecção generalizada contraída no
hospital, onde dividia espaço com mais seis pacientes, segundo os
parentes. “Ninguém nos cobrou nada. Mas as coisas eram muito precárias
lá”, recorda-se.
O doador Adeleus, que o Ministério Público
afirma ser outra vítima da máfia dos transplantes, teve os rins e
córneas doados para pacientes da região. O fígado foi para uma receptora
de Belo Horizonte. Seu processo, no entanto, não tem prazo para ser
julgado, pois apurações se perderam. Não é o único problema no processo:
de acordo com laudo da perícia do Sistema Único de Saúde (SUS), não há
registros do exame de tomografia que teria acusado a morte cerebral do
paciente. A equipe envolvida no caso era formada pelos acusados Cláudio
Rogério Carneiro Fernandes, Celso Roberto Frasson Scafi e Gérsio Zincone
– cuja pena prescreveu.
Na sentença que condenou quatro médicos
pela morte de José Domingos Carvalho, o juiz comenta que as apurações
sobre o óbito de Alice Mezavila Tavares estavam em “lenta tramitação na
Polícia Civil de Poços de Caldas, dada a vista ao Ministério Público”.
Segundo laudo do SUS, não houve registro dos dois procedimentos
cirúrgicos que se deram após o transplante de rim da paciente, nem
relatos de sua evolução. Não constam tampouco informações exatas sobre a
data da morte. Omissões e perguntas que unem as vítimas num só coro,
que clama por justiça.
Envolvidos optam por silêncio
Os médicos
citados no processo foram procurados, mas nenhum deles quis comentar as
acusações. O consultório de Alexandre Zincone estava fechado. Félix
Gamarra foi procurado na Santa Casa, mas a informação era de que ele não
atendia no hospital, apesar de a equipe do EM ter ouvido de uma
atendente da instituição, por telefone, que o médico estava em consulta.
Por meio de nota, a Santa Casa informou que nenhum dos investigados
atua mais na unidade, que também nega envolvimento com uma suposta máfia
dos transplantes. A reportagem foi ao hospital, mas não foi recebida e
nem foi designado um porta-voz para comentar o caso.
Ontem, a
equipe do EM procurou os promotores de Poços de Caldas na sede do
Ministério Público local, o Edifício Manhattan, mas ninguém se
prontificou a comentar o afastamento dos promotores locais dos casos. A
assessoria de imprensa do MP também foi procurada, mas não enviou nota
ou permitiu contato com o promotor responsável em Belo Horizonte. “A
transferência do processo aconteceu porque os promotores da área
criminal julgaram por bem transferir o caso para BH”, limitou-se a
informar a assessoria, acrescentado que “isso pode acontecer e não
prejudica o desenrolar do processo”.
A Polícia Civil informou,
em nota, que todo procedimento relacionado ao fato em Poços de Caldas
está em segredo de Justiça. O delegado regional de Poços, Gustavo
Henrique Magalhães, rebateu as críticas de morosidade e afirmou que não
há interferência sobre as investigações. “O que o juiz ou o Ministério
Público nos pedem é feito. O problema é que temos cinco delegados e
cinco escrivãos, com 800 casos cada. Esses são fatos de mais de 10 anos,
que estavam com a Polícia Federal. Investigar tudo agora é muito
complexo. Muitas pistas já se perderam”, disse.
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