Mostrando postagens com marcador Clovis Rossi. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Clovis Rossi. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Golpe é sempre má ideia - Clovis Rossi

folha de são paulo
Exemplo do Irã nos anos 50 serve como reflexão para o que ocorre neste momento no Egito
Num 19 de agosto como ontem, faz exatos 60 anos, a CIA derrubou o primeiro-ministro do Irã, o nacionalista Mohamad Mossadegh.
Na ocasião, parecia uma boa ideia aos olhos dos Estados Unidos e do Reino Unido: afinal, Mossadegh, eleito em 1951, defendia a propriedade iraniana dos recursos naturais, principalmente o petróleo, e havia nacionalizado a Anglo-Iranian Oil Company, um dos símbolos do imperialismo à época.
Era tão popular que o xá Reza Pahlavi, chefe de Estado, teve que se exilar em Roma por alguns dias, em face da reação da massa à demissão de Mossadegh. De todo modo, ele acabou caindo e o xá instalou a sua ditadura pró-Ocidente.
O que parecia uma boa ideia virou um pesadelo para os norte-americanos, porque a ditadura do xá acabou sendo substituída (1979) por um regime ainda mais nacionalista e muito mais antiocidental do que o de Mossadegh.
O governo dos aiatolás iranianos tem, portanto, todas as razões do mundo para desconfiar do Ocidente, por mais que nunca se tivesse confirmado oficialmente o patrocínio da CIA ao golpe de 1953. Nunca até ontem, quando Malcolm Byrne, diretor-adjunto do Arquivo de Segurança Nacional, editou um resumo de "A Batalha pelo Irã", baseado em documentos internos da própria agência.
Nele se lê, com todas as letras, que "o golpe militar que derrubou Mossadegh e seu gabinete da Frente Nacional foi efetuado sob orientação da CIA como um ato de política externa norte-americana".
Com esses antecedentes, é natural que, ainda hoje, 60 anos depois, abundem teorias conspiratórias envolvendo os Estados Unidos.
Exemplo: Alaeddin Boroujerdi, presidente do Comitê de Segurança Nacional e de Política Externa do Parlamento iraniano, jura que "os Estados Unidos e Israel buscam conseguir que os países muçulmanos se enredem em problemas domésticos, para o que usam grupos Takfiri [termo árabe livremente traduzível como quinta coluna'], que são marionetes dos Estados Unidos e de seus aliados regionais".
Pode ser que Boroujerdi tenha razão, embora pareça mais lógico supor que os Estados Unidos queiram desembaraçar os países muçulmanos de problemas domésticos que os estão arruinando. Não têm mais é a força para impor uma solução ou outra, do que dá prova o comportamento no Egito: apoiaram timidamente o governo do islamita Mohammed Mursi, não chamaram de golpe o golpe evidente desfechado pelas Forças Armadas, suspendem manobras militares com os egípcios, mas não suspendem a ajuda militar, e por aí vai.
Eram mais simples os tempos em que a CIA podia operar contra governos não confiáveis, mas o simples, no médio ou longo prazo, acaba se revelando também o errado.
O caso do Irã é exemplar: por ruim que o governo Mossadegh fosse, para os interesses ocidentais, dez vezes pior é o regime dos aiatolás.
E o teor de democracia no Irã, tanto com o xá como agora, é próximo de zero, o que não se podia dizer de Mossadegh.
Moral da história, aplicável ao Egito de 2013: golpes de Estado nunca são uma boa ideia.

    domingo, 18 de agosto de 2013

    Clovis Rossi

    folha de são paulo
    Sem islamitas, sem democracia
    A única eventual saída para a crise egípcia é aceitar a incorporação do Islã ao jogo político
    A única eventual saída para o labirinto em que os militares enfiaram o Egito é os setores laicos e liberais que iniciaram a revolta que levou à queda da ditadura anterior (Hosni Mubarak, 1981/2011) aceitarem o fato de que ou se incorpora o islamismo à vida política ou não haverá democracia nem no Egito nem nos demais países de maioria muçulmana.
    É a constatação, por exemplo, de Luz Gómez García, professora de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade Autônoma de Madri, em artigo para "El País": "Acreditar que a democracia e a revolução são possíveis com a Irmandade Muçulmana silenciada é um absurdo exercício de possibilidades".
    Reforça a revista "The Economist", cujas credenciais liberais a impedem de ter a mais leve simpatia por movimentos tipo a Irmandade Muçulmana:
    "Os generais não podem suprimir os islamitas sem também privar milhões de outros egípcios das liberdades pelas quais ansiaram --e que experimentaram, ainda que brevemente, desde a queda de Mubarak".
    A defecção do principal líder laico e liberal, Mohammed ElBaradei, após o massacre de quarta, mostra que os militares não conseguirão apoio dessas correntes para manter a carnificina indefinidamente.
    O problema para a aceitação da Irmandade Muçulmana como parceiro eventualmente hegemônico no jogo político é a desconfiança que cerca o islamismo político. Sua magra experiência de um ano no poder foi permanentemente acompanhada de afirmações, pouco comprovadas, de que havia uma agenda de completa islamização do país.
    Há razões para a desconfiança, mas há também razões para crer em um certo exagero no anti-islamismo.
    Veja-se, por exemplo, a declaração da dona-de-casa Afaf Mahmoud para a "Economist": "Se ele [o presidente Mohammed Mursi] tivesse prendido todos aqueles que o criticaram, como Mubarak teria feito, talvez ainda estivesse no poder".
    De fato, o teor de democracia no curto período Mursi ficou longe dos 100%, mas seria preconceituoso dizer que ele estava perto de implantar uma ditadura sob a égide da sharia, a lei islâmica.
    Os dez anos de governo do islamita AKP (Partido Justiça e Desenvolvimento) na Turquia também testemunham que islamismo e democracia podem conviver --com percalços, é verdade, em geral não muito maiores do que os que ocorrem em alguns países vizinhos do Brasil.
    Deixar os islamitas fora do jogo levaria a que perdessem a confiança no processo democrático, o que "seria uma má notícia para o Egito e um impulso para a Al Qaeda e outros jihadistas [adeptos da guerra santa contra o Ocidente] que creem que só se pode conseguir o poder com sangue e terror", escreve para "El País" o ex-chanceler de Israel Shlomo Ben Ami, hoje vice-presidente do Centro Internacional pela Paz de Toledo (Espanha).
    Se os liberais resolverem disputar votos com os islamitas em vez de aceitar o sangue, talvez haja uma chance. Talvez.

    quinta-feira, 15 de agosto de 2013

    Clovis Rossi

    folha de são paulo
    A primavera acaba em sangue
    O massacre devolve o Egito à condição de ditadura militar e interdita a democracia
    O massacre de ontem no Egito devolve o país à situação prévia à chamada Primavera Árabe: volta a ser uma ditadura militar.
    Mudam só os nomes: ontem era Hosni Mubarak, agora é Abdul Fatah al-Sisi, chefe das Forças Armadas, o verdadeiro dono do poder, embora o presidente nominal seja um fantoche civil.
    Na verdade, a ditadura se instalou quando foi derrubado o presidente legítimo, o islamita Mohammed Mursi, conforme já foi dito aqui em "Pinochetazo à moda árabe" (folha.com/no1310122).
    Mas ainda se preservava a forma, o que ruiu por completo ontem.
    O que está em curso é a velha tendência de interditar o islamismo, com o que se interdita, na verdade, a democracia.
    Na democracia, governa a maioria, com o perdão pela obviedade. E, nas eleições, o braço político da Irmandade Muçulmana e os islamitas mais radicais da Al Nour ficaram com 65% dos votos, enquanto os grupos seculares/liberais não passaram de 15%.
    Que os militares, que mantiveram a Irmandade na clandestinidade a maior parte de seus 80 e poucos anos de vida, queiram repetir o esquema já é condenável, mas pelo menos é explicável.
    É o eterno braço de ferro entre as duas grandes forças egípcias.
    Mas é escandaloso que os liberais tenham se juntado aos militares para golpear a democracia.
    Veja-se o que escreve Steven Cook, do Council on Foreign Relations, especialista na região:
    "O fato de alguns grupos revolucionários [os da Primavera Árabe] e ativistas da democracia, que se consideram liberais, terem feito causa comum com os remanescentes do antigo regime e com os militares mina sua pretensão de serem democráticos. E também faz deles, se não forem cuidadosos, peões potenciais em um jogo que forças antirrevolucionárias estão jogando com o intuito de restaurar alguma aparência da velha ordem".
    Que se trata de uma volta ao passado, fica ainda mais evidente pela análise feita por Hossam Bahgat, diretor da Iniciativa Egípcia pelos Direitos Individuais, ainda antes do massacre de ontem:
    "Algumas pessoas pensam que o regime policial de Mubarak foi desmantelado, o que é falso. Ele continuou durante a transição militar [entre a queda de Mubarak e a eleição] e, depois, com o presidente Mohammed Mursi. Durante todo esse tempo, nenhuma ação foi tomada para a reforma da instituição policial e dos programas ensinados na academia de polícia. Da mesma forma, nenhuma medida foi tomada contra os oficiais acusados de violação dos direitos do homem."
    O massacre de ontem pode provocar uma "forte condenação", como diz a nota oficial da Casa Branca, mas não deveria provocar surpresa ante a preservação de um estamento militar habituado à violência desde sempre.
    Por falar na nota da Casa Branca, é patético "urgir o governo do Egito --e todas as partes no Egito-- a evitar a violência e resolver suas diferenças pacificamente."
    Equivale a pôr no mesmo pé quem entrou com o sangue e quem entrou com as balas.
    crossi@uol.com.br

      terça-feira, 13 de agosto de 2013

      Clovis Rossi

      folha de são paulo
      O ocaso da rainha Cristina
      Resultado das primárias dá a entender que é quase impossível que a presidente possa obter a re-reeleição
      A hipótese de re-reeleição de Cristina Kirchner parece ter sido sepultada pelos resultados das primárias realizadas domingo.
      É verdade que a FpV (Frente para a Vitória, a coligação inventada pelo kirchnerismo) obteve a maioria relativa dos votos, mas, mesmo que a vitória se repita na eleição para valer, em outubro, não será o suficiente para alcançar os 2/3 em cada Casa do Congresso necessários para reformar a Constituição de forma a autorizar uma segunda reeleição.
      É sintomático que, na retórica usualmente triunfalista do kirchnerismo, um de seus expoentes, o intelectual Ricardo Forster, tenha jogado "para depois de 2015" o debate sobre a reforma da Constituição.
      É o ano em que termina o mandato de Cristina. Para obter um novo período, ela precisaria de uma vitória esmagadora nas eleições de outubro, que renovam metade da Câmara e um terço do Senado.
      As primárias realizadas no domingo eram tidas como uma grande pesquisa de opinião pública para a votação de outubro.
      Se foi assim, Cristina perdeu, mesmo nas contas de um colunista do "Página 12", o jornal que a apoia incondicionalmente: "O governo obteve menos votos do que os calculados, na maioria dos distritos e no total geral", escreveu Mario Wainfeld.
      Acrescentou: "O resultado conseguido pela Frente para a Vitória e seus aliados de ferro esteve abaixo de 30%, que é um piso baixo para a sua história e suas pretensões".
      Se é esse o ânimo entre os simpáticos à presidente, é natural que no polo contrário haja euforia. O jornal "Clarín", a principal oposição ao governo, brada: "O kirchnerismo sofreu ontem a pior derrota eleitoral na década que está no poder, e que, a dois anos do fim do segundo mandato de Cristina Kirchner, parece antecipar o final de um ciclo político".
      De fato, é razoável supor que se trata do início do fim do ciclo mais longo de um único sobrenome na Presidência da Argentina.
      Os Kirchner completarão 12 anos no poder, os quatro primeiros (2003/07) com Néstor, os oito seguintes com Cristina.
      Nem o general Juan Domingo Perón, o patrono do casal, chegou a tanto. Em seus três períodos, totalizou dez anos de governo, tantos quanto Carlos Menem, que governou de 1989 a 1999.
      É óbvio que, em democracia, só se consegue durar tanto no poder mostrando serviço, o que os Kirchner fizeram: içaram a Argentina da mais grave crise econômico-social de sua história.
      Se, agora, o ciclo chega ao fim, é porque Cristina brigou com gente demais simultaneamente, dos ruralistas a seu vice no primeiro mandato, do "Clarín" ao líder sindical Hugo Moyano.
      Essa percepção esteve muito presente na avaliação do grande vencedor das primárias, Sergio Massa (com quem, aliás, Cristina também se desentendeu, depois de tê-lo içado a chefe de gabinete): "Os que nos acompanharam [nas primárias] disseram basta' ao confronto na Argentina".
      Só a eleição legislativa de outubro começará a dizer se Massa será de fato a cara de um eventual novo ciclo.
      crossi@uol.com.br

        domingo, 11 de agosto de 2013

        Clovis Rossi

        folha de são paulo
        O sermão de Mantega ao FMI
        Incidente sobre ajuda à Grécia serve para mostrar plena sintonia entre os governos Dilma e Obama
        Guido Mantega, o ministro da Fazenda, pode não estar vivendo exatamente momentos de glória, mas nem por isso deixou de fazer um belo sermão ao Fundo Monetário Internacional, que, no fundo, reflete a convicção mais profunda do governo Dilma: crescimento é tão ou mais importante que austeridade.
        Mantega aproveitou o mal-entendido com Paulo Nogueira Batista Jr., o representante brasileiro e de um punhado de outros países latino-americanos no Fundo Monetário Internacional, para dizer ao FMI que "o programa de resgate da Grécia e de outros países da periferia da zona euro precisa ser revisto de forma a permitir melhores oportunidades de recuperação para tais países" (refere-se, essencialmente, a Espanha e Portugal, além da Grécia).
        Como se sabe, o programa do Fundo prevê duros ajustes que, em vez de resgatar tais países, ajudaram a afundá-los na recessão.
        Nogueira Batista dissera a mesmíssima coisa, acrescentando que, no ritmo em que vão as coisas, a Grécia não conseguirá pagar suas dívidas e terá que recorrer a um novo calote, inclusive na dívida para com o FMI. A divergência se deu porque Nogueira Batista votou contra a liberação de mais uma fatia do socorro à Grécia, com o que Mantega não concordou.
        É razoável supor que, na fase atual da economia brasileira, que não entusiasma ninguém além de Mantega e Dilma, o sermão do ministro ao Fundo pode parecer pretensioso. Não é.
        O programa para a Grécia é de fato um tremendo fracasso. Algumas provas: o país está entrando no sexto ano de recessão, com o que sua economia sofrerá, no total, uma retração de um quarto, coisa que só países em guerra conhecem; em maio, o desemprego bateu de novo o recorde, atingindo 27,6%, outro indicador que só mesmo catástrofes conseguem produzir; a dívida, que, no momento do pacote de resgate, girava em torno de 163% do PIB, vai bater neste ano em 176%.
        Mesmo que o sermão de Mantega fosse pretensioso, estaria em companhia ilustre, a do presidente Barack Obama. Ao receber o primeiro-ministro grego, Antonis Samaras, na quinta-feira, Obama também constatou que "políticas focadas só em redução de gastos não ajudariam a Grécia a retornar à prosperidade econômica".
        O presidente norte-americano não nega a importância do ajuste fiscal, mas diz que igualmente importante é o foco em crescimento e em emprego.
        Vê-se, pois, que, a dois meses do encontro que terão na Casa Branca, em outubro, os governos Dilma e Obama continuam em plena sintonia no campo econômico, divergências sobre espionagem à parte.
        No fundo, repete-se uma situação que vem sendo recorrente nas cúpulas recentes do G20: os Estados Unidos, com apoio integral do Brasil, pressionando a Europa para um arranjo capaz de combinar austeridade com crescimento econômico.
        O problema é que nem Obama nem Dilma nem Mantega conseguiram pôr de pé uma proposta que seja capaz de devolver o crescimento aos países que estão em crise ou de acelerar o crescimento em seus próprios países.
        crossi@uol.com.br

          terça-feira, 6 de agosto de 2013

          Clovis Rossi

          folha de são paulo
          A economia e a cartomante
          Está querendo saber quais são as perspectivas para a economia brasileira neste segundo semestre? A maneira mais confiável de saber é pedir a uma boa cartomante que leia as cartas.
          É método seguramente mais científico do que as previsões dos economistas que o Banco Central utiliza em seu boletim Focus.
          É a conclusão inescapável a tirar da tabelinha anexa, "roubada" de artigo de domingo do economista Samuel Pessôa. Nela se vê que, ano após ano, os "chutadores" da economia erraram crassamente os palpites que eles, pretensiosamente, chamam de previsões.
          Não são errinhos de pequena monta. Variam de 1,8 ponto percentual (em 2011) a 2,8 pontos percentuais (2009). Estou excluindo 2013 porque o ano ainda não terminou e, portanto, não dá para saber qual será o volume do erro.
          Se você considerar que cada ponto percentual do PIB corresponde, grosso modo, a aproximadamente R$ 44 bilhões, vê-se mais facilmente o brutal tamanho do desvio.
          Imagine uma situação em que você projeta, no início do ano, faturar, digamos, uns R$ 150 bilhões adicionais em relação à riqueza que já possui (era a previsão dos economistas para o PIB brasileiro ao começar 2012). Aí, termina o ano é você verifica que o acréscimo não passou de uns R$ 44 bilhões.
          Dá para perceber o tamanho do despropósito que são os chutes que o Banco Central incorpora ao seu boletim Focus?
          Samuel Pessôa, no artigo do qual tirei a tabela, passa a impressão de que os "chutes" são inocentes. Afinal, errar é humano.
          Mas quem entende mais que ninguém desse jogo de manipulação de dados, o megaespeculador George Soros, me ensinou, anos atrás, em Davos, que boa parte das análises econômicas são enviesadas para atender aos interesses de quem as faz ou da instituição para a qual trabalha.
          Segundo Soros, se uma instituição financeira precisa que o dólar suba, para ganhar dinheiro, as análises de seus economistas serão necessariamente no sentido de que uma alta da moeda norte-americana é inexorável, na expectativa de convencer os agentes de mercado de forma a que a profecia se realize.
          Mesmo que se adote o ponto de vista ingênuo de que os erros são inocentes, o tamanho deles e a sequência interminável com que são cometidos demandariam olhar para as previsões com muita desconfiança, em vez de tomá-las como palavra de oráculos infalíveis.
          O jornalismo, aliás, deveria ser o primeiro a advertir o leitor, ao publicar previsões, que não há parentesco entre elas e a realidade.
          Não fazê-lo equivale a publicar uma falsidade, antevendo que se trata de uma falsidade, já que os erros se repetem todos os anos.

          quinta-feira, 1 de agosto de 2013

          Emergentes submergem - Clovis Rossi

          folha de são paulo
          Emergentes submergem
          As grandes estrelas da economia global nos últimos muitos anos começam a perder brilho
          As duas publicações que fazem a cabeça dos mercados e influem sobre governos no mundo inteiro acabam de decretar o fim do encantamento com os tais emergentes.
          A primeira foi o "Financial Times", com um obituário curto e grosso escrito por Jonathan Wheatley. "Uma desconfortável verdade está se fazendo sentir no mundo dos investidores em mercados emergentes: está morta a história de crescimento do mercado emergente."
          A "Economist" é menos dramática, mas não deixa de apontar que chegou ao fim "a dramática primeira fase da era dos mercados emergentes". Por "dramática primeira fase", entenda-se que as economias em desenvolvimento saltaram de representar 38% da produção econômica mundial para 50% na primeira década do novo século.
          O Brasil, obviamente, é um dos emergentes que, agora, parecem estar submergindo --e submergindo mais que seus pares.
          Diz a "Economist": "O Brasil correu adiante com a ajuda de um boom' das commodities e do crédito doméstico; sua atual combinação de teimosa inflação e lento crescimento mostra que a velocidade-limite subjacente de sua economia é muito menor do que se pensava."
          Para o meu gosto, é uma frase definitiva demais para o médio prazo. Mas, para o biênio 2012/13, é indiscutível. Não é que o Brasil esteja crescendo menos que os demais Brics, as grandes estrelas do mundo emergente até recentemente. Cresceu menos que todos os sul-americanos, que não são propriamente queridinhos dos mercados.
          As estatísticas da Cepal, a comissão da ONU para a América Latina, mostram que, em 2012, o Brasil, com seu 0,9%, cresceu mais apenas que o Paraguai, que retrocedeu 1,2%. Neste ano, a previsão da entidade é de novo de penúltima colocação em crescimento, ganhando apenas da conturbada Venezuela.
          O Brasil perde, portanto, até de países (Bolívia, Equador e Argentina) cujas políticas econômicas são vistas com misto de desprezo e desconfiança por agentes de mercado.
          A morte da "história de crescimento" dos emergentes permite um ajuste de contas com os exageros de avaliação que marcaram seu glorioso reinado de uma década, pouco mais ou menos.
          Essa história de que a China ultrapassaria fatalmente os Estados Unidos, por exemplo, já começa a ser reavaliada. De fato, a China explodiu nos últimos 20 anos, mas sua economia, se medida em paridade de poder de compra, é apenas 18% da norte-americana.
          Da mesma forma, a reverência aos Brics como novo bloco de poder no planeta omitiu reiteradamente o fato de que o grupo só existe como sigla, não como coletivo que atua em conjunto.
          Sem esquecer que a China é estrondosamente mais forte que seus quatro sócios. Para ficar em um só indicador: as reservas internacionais dos Brics são imponentes (US$ 4,6 trilhões), mas três quartos delas (US$ 3,5 trilhões) pertencem a um só país, obviamente a China.
          Só espero que não se caia no exagero oposto, de dar os emergentes como inutilidades. Continuarão crescendo, menos, mas crescendo.

          quinta-feira, 25 de julho de 2013

          Em matéria de substância, o papa ainda deve tudo - Clovis Rossi

          folha de são paulo

          O papa, sinais e substância


          É impressionante a unanimidade a favor do papa Francisco.
          Até um crítico contundente da hierarquia da igreja, o teólogo Leonardo Boff, condenado ao silêncio pelo antecessor de Francisco, entusiasma-se com o novo pontífice.
          Boff chegou a dizer, em entrevista ao jornal espanhol "El País", que Francisco "não é um nome, é um projeto de igreja. Uma igreja pobre, humilde, despojada do poder, que dialoga com o povo". O teólogo espera que Francisco "inaugure a igreja do terceiro milênio". Uau.
          Acho que é cedo para essa beatificação em vida do papa.
          Tudo bem que ele tenha emitido sinais simpáticos. Tudo bem que símbolos são importantes. Mas vamos combinar que símbolos só se tornam de fato decisivos quando acompanhados de substância.
          E vamos combinar também que, em matéria de substância, o papa ainda deve tudo. Nem se diga que a pregação de uma igreja ao lado dos pobres já é substância. Desde pelo menos a "Rerum Novarum" de Leão 13, velha de 122 anos, a retórica da igreja tem forte conteúdo social.
          Se a prática seguiu ou não a retórica, é uma outra história que não dá para discutir em uma mera coluna de jornal.
          Em termos de simbolismo, parte da mídia italiana deslumbrou-se com o fato de que Francisco levava a própria pasta ao subir as escadas que o depositariam no avião da Alitalia que o traria ao Brasil. De fato, nunca vi um chefe de Estado praticando exercício semelhante ao subir ou descer de aviões oficiais.
          É um símbolo, ok. Mas realmente definitório seria o papa enfrentar o dossiê que talvez estivesse na pasta ou que certamente está em seu escritório no Vaticano.
          Ajuda-memória: o jornal oficial do Vaticano, L'Osservatore Romano, chegou a definir o papa anterior como "um pastor cercado de lobos". Alusão a uma sucessão de escândalos que envolveram dinheiro, disputas de poder, condutas inadequadas, vazamento de documentos de Bento 16.
          O próprio Bento 16 encarregou um estudo alentado da Cúria Romana --a fonte dos escândalos--, o que foi feito por três cardeais não eleitores porque já haviam superado a idade limite para votar no conclave. O dossiê ficou pronto às vésperas da eleição de Francisco e foi entregue a ele ao assumir.
          A lógica elementar indica que o documento pede uma faxina na poderosa Cúria Romana, para evitar que o novo papa, como o antecessor, fique cercado de "lobos". Faxina, aliás, pedida publicamente por alguns cardeais antes de se trancarem na Capela Sistina para a votação que elegeu Bergoglio.
          O novo papa não teve tempo ou condições de mexer na Cúria, o que significa dizer que a igreja continua ancorada em intrigas medievais, muito longe de uma "igreja do terceiro milênio" antevista por Boff.
          A propósito de Boff: o correspondente de "El País" no Brasil, Juan Arias, um dos mais respeitados vaticanistas de todos os tempos, antecipou ontem a hipótese de que Francisco receba no Rio o teólogo virtualmente excomungado por seu antecessor. Aí, sim, seria o início da uma revolução.
          crossi@uol.com.br
          Clóvis Rossi
          Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às terças, quintas e domingos no caderno "Mundo". É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo" e "O Que é Jornalismo". Escreve às terças, quintas e domingos na versão impressa do caderno "Mundo" e às sextas no site.

          domingo, 21 de julho de 2013

          O sexo persegue o Vaticano - Clovis Rossi

          folha de são paulo
          Novo escândalo envolvendo importante prelado e o abuso contra crianças estarão na pauta do papa?
          O papa Francisco chega ao Brasil à sombra de mais um escândalo no Vaticano, ligado à sexualidade. Ou, no caso, à homossexualidade.
          A edição da revista "L'Espresso" nas bancas desde quinta-feira trata do caso que, ao que tudo indica, provocou uma menção de passagem do próprio papa ao "lobby gay" faz pouco. Trata-se do dossiê sobre monsenhor Battista Ricca, prelado para o IOR (Instituto para Obras Religiosas), o banco do Vaticano, foco permanente de escândalos.
          Mas o dossiê da revista não trata do IOR e, sim, da "conduta escandalosa" de Ricca e de seu íntimo amigo Patrick Haari, um capitão do Exército suíço. O termo "conduta escandalosa", sempre de acordo com "L'Espresso", aparece em dossiê enviado ao Vaticano pelo núncio apostólico em Montevidéu, Janusz Bolonek, relatando fatos ocorridos durante estada na capital uruguaia de Ricca e de Haari.
          O porta-voz do Vaticano, padre Federico Lombardi, negou validade à reportagem de "L'Espresso", mas a direção da revista disse que não adianta fingir que não há dossiê.
          Não é o único problema ligado a sexo que o papa em tese será obrigado a abordar durante a visita ao Brasil, se ele pretende mesmo --como disse outro dia Frei Betto-- fazer de sua estada "a semana inaugural do papado".
          O Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas está se preparando para questionar a Igreja Católica sobre seu comportamento ao tratar de abusos sexuais de crianças por parte de clérigos --uma mancha que vem de longe, foi subestimada no papado de João Paulo 2º, enfrentada com mais energia por Bento 16 e acabou sobrando para seu sucessor.
          Agora, o Comitê pelos Direitos das Crianças, com base em Genebra, prepara uma lista de temas para apresentar ao Vaticano, desafiando-o a fornecer os registros das compensações financeiras dadas às vítimas de abuso e os acordos secretos que foram feitos para preservar a reputação da igreja.
          É justo dizer que o papa Francisco parece ainda mais determinado que seus antecessores a lidar vigorosamente com o tema, tanto que já propôs endurecer a legislação a respeito, movimento muito mais significativo do que trocar papamóvel por jipe, dormir em um quarto simples e outros detalhes do gênero. São gestos simpáticos, mas que não tocam nas feridas ainda abertas na pele da igreja.
          Se a Jornada Mundial da Juventude seguir o "script" imaginado por dom Cláudio Hummes, o papa muito provavelmente será sabatinado em torno desses temas. O cardeal Hummes disse à rádio Vaticana que não basta falar aos jovens ou celebrar a missa com eles. É preciso que "os jovens façam as perguntas sobre os temas que quiserem; devem mostrar-nos o que lhes interessa saber, quais são as grandes questões que levam no coração e na mente".
          Parece impossível que os jovens católicos (e os não católicos também, é claro) gostariam de saber do novo papa como vai limpar a mancha dos abusos sexuais e, também, se tratará do homossexualismo de uma maneira menos preconceituosa. A ver.

            domingo, 14 de julho de 2013

            Clovis Rossi

            folha de são paulo
            Revolucionários ou burgueses?
            Olhares estrangeiros sobre protestos no Brasil e no mundo chegam a conclusões contrapostas
            Dois acadêmicos estrangeiros, de posições contrapostas, chegam a conclusões igualmente contrapostas --mas, curiosamente, ambas verossímeis-- a propósito dos protestos no Brasil (e no mundo). O que não significa que sejam verdadeiras, já que paira um imenso ponto de interrogação sobre as manifestações.
            Refiro-me a artigos do esloveno Slavoj Zizek, popstar da filosofia, para a "London Review of Books", e do cientista político Francis Fukuyama, famoso por ter decretado "o fim da história" com o triunfo definitivo do capitalismo e da democracia liberal, este para o "Wall Street Journal".
            Para Zizek, os protestos são anticapitalistas. "São todos reações a facetas diferentes da globalização capitalista. A tendência geral do capitalismo global de hoje é no sentido de um expansão ainda maior do império do mercado, combinada com o progressivo fechamento do espaço público, a redução dos serviços (saúde, educação, cultura) e uma gestão sempre mais autoritária do poder político", escreve.
            Não é difícil, de fato, ler os protestos no Brasil com essa lente. Pediram melhores serviços públicos, entre eles os de saúde e educação, e uma reforma política que desse aos mortais comuns um papel de maior protagonismo ante um poder político fechado em si mesmo.
            Resta saber se são protestos contra o capitalismo como sistema, como crê o esloveno, ou contra abusos que podem ser remediados sem jogar o sistema em si no lixo.
            De todo modo, é igualmente aceitável a conclusão de Zizek de que as manifestações são uma "tomada de consciência de que a forma atual da democracia representativa não é suficiente para combater os excessos do capitalismo e, portanto, a democracia deve ser reinventada".
            Não deixaria de ser uma revolução.
            Fukuyama não vê revolução, mas "fermentos":
            "O elemento em comum nas recentes desordens na Turquia e no Brasil, como também na Primavera Árabe de 2011 e nos contínuos protestos na China, é a ascensão de uma nova classe média global. Onde quer que se tenha afirmado, essa classe média provocou fermentos políticos, mas quase nunca tem sido capaz de determinar por si só mudanças duradouras".
            O cientista político duvida que seja diferente agora.
            Ao contrário de Zizek, Fukuyama não vê anticapitalismo, mas o seu oposto no perfil dos manifestantes:
            "Grande número de estudos conduzidos em vários países, entre os quais algumas pesquisas do Centro Pew e dados da Pesquisa Mundial sobre Valores da Universidade de Michigan, demonstram que pessoas com nível de instrução mais alto atribuem maior valor à democracia, à liberdade individual e à tolerância com estilos de vida diferentes."
            Ou, posto de outra forma, os manifestantes seriam "burgueses que reclamam não só segurança para a própria família, mas também liberdade de escolha e mais oportunidades".
            No fundo, é aquela velha história de que tudo depende da cor das lentes com as quais se olha algum fenômeno.

              quinta-feira, 11 de julho de 2013

              Clovis Rossi

              folha de são paulo

              Reformas, nas mãos dos corruptos

              Quando era criança, ouvia seguidamente uma frase de minha avó, filha de italianos, quando as coisas não andavam bem:
              "Piove, governo ladro", resmungava a afável dona Josefa.
              Eu achava graça no fato de minha avó culpar o governo (leia-se, os políticos) supostamente ladrão até pela chuva.
              Não acho mais, agora que verifico que oito de cada dez brasileiros têm a mesma opinião de dona Josefa sobre os políticos em geral. É o que mostra o Barômetro 2013 da Transparência Internacional.
              Para 81% dos brasileiros consultados, os partidos políticos são corruptos. A nota para os partidos é de 4,3, quando 5 é o sinal de que são "extremamente corruptos". Os parlamentos, compostos necessariamente por políticos, não se saem melhor, como é óbvio: são corruptos para 72% e ficam com nota 4,1.
              É nas mãos dessa gente que acabou ficando a reforma política depois que a presidente Dilma Rousseff desistiu, a jato, de um processo constituinte exclusivo. Se o grito das ruas, ainda que implicitamente, era por "novas formas de atuação dos poderes do Estado, em todos os níveis federativos", como disse a presidente, então as ruas perderam.
              É quase impossível que instituições tão desprestigiadas quanto os partidos e os parlamentos encampem "novas formas de atuação".
              Até porque o Barômetro-2013 é um feio retrato de todas as instituições públicas brasileiras, exceto os militares, apontados como corruptos pela menor porcentagem dos pesquisados (30%).
              Sorte nossa que a rua brasileira, bem ao contrário da egípcia, não pediu um golpe militar, instrumento que torço para que esteja definitivamente enterrado.
              A polícia é vista como corrupta por 70% dos entrevistados, e mesmo o Judiciário não escapa de um resultado ruim (50%).
              Corruptos para menos da metade dos consultados são apenas as Organizações Não Governamentais, a mídia, as entidades religiosas, os homens de negócio e o sistema educacional. Ah, os serviços de medicina e saúde, outro ponto da agenda agora, são corruptos para 55%.
              É natural que, no conjunto, o Brasil seja percebido, este ano, como muito ou um pouco mais corrupto que no ano anterior por 47% dos entrevistados, enquanto outros 35% acham que o país ficou na mesma, ou seja, com idêntico --e elevado-- teor de corrupção de 2012.
              A pesquisa põe números científicos na crise da democracia representativa, tema de 11 de cada 10 comentários recentes, a partir do momento em que as ruas promoveram cenas explícitas e maciças de desconfiança nas instituições.
              Não é um problema só brasileiro, o que já foi dito neste espaço uma e mil vezes. O relatório diz:
              "No mundo todo, os partidos políticos, a força dirigente das democracias, são percebidos como as instituições mais corruptas".
              É um cenário dramático porque, pelo menos no Brasil, as chances de que os partidos se reinventem tendem a zero. O que só reforça a necessidade de buscar formas alternativas de participação popular no jogo político-administrativo.
              Clóvis Rossi
              Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às terças, quintas e domingos no caderno "Mundo". É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo" e "O Que é Jornalismo". Escreve às terças, quintas e domingos na versão impressa do caderno "Mundo" e às sextas no site.

              terça-feira, 9 de julho de 2013

              Clovis Rossi

              folha de são paulo
              Cinco olhos, todos em você
              Governo brasileiro tem mesmo que levar adiante iniciativas na ONU contra 'depredação' da privacidade
              De todas as reações ao megaesquema de espionagem denunciado pelo agora célebre Edward Snowden, a mais efetiva foi a do governo brasileiro: além da óbvia "indignação" e do igualmente óbvio pedido de explicações aos Estados Unidos, "o Brasil lançará nas Nações Unidas iniciativas com o objetivo de proibir abusos e impedir a invasão da privacidade dos usuários das redes virtuais de comunicação, estabelecendo normas claras de comportamento dos Estados na área de informação e telecomunicações para garantir segurança cibernética que proteja os direitos dos cidadãos e preserve a soberania de todos os países."
              É o que tem que ser feito. Indignação raramente resolve problemas diplomáticos. Explicações, os EUA já deram: o esquema é legal, pelo menos à luz da lei norte-americana.
              Além disso, a nota do Itamaraty admite, implicitamente, que algum esquema de monitoramento continuará de pé mesmo que "se estabeleçam normas claras de comportamento dos Estados". Por isso, o objetivo é "proibir abusos", não o esquema em si.
              Vigiar o terrorismo é necessário, mas os Estados Unidos, depois do 11 de Setembro, adotaram mecanismos que representam uma "imensa depredação de nossa privacidade", como escreve para "El País" Timothy Garton Ash, da Universidade de Oxford.
              Também em "El País", no domingo, o jornalista Duncan Campbell dá novos detalhes da gigantesca operação de coleta de dados: "A organização multinacional de escutas Reino Unido/EUA, criada por vários tratados secretos do pós-guerra entre Estados Unidos e Grã-Bretanha, chama-se hoje a si própria Os Cinco Olhos', [que são] os serviços de inteligência de sinais dos Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia".
              Que esses "cinco olhos" olhassem para o Brasil pode causar indignação, mas não surpresa: embora o Brasil não seja centro de terrorismo, a complexa integração dos sistemas de comunicação eletrônica faz com que possam passar pelo Brasil ligações do Irã para a China, por exemplo, países sempre suspeitos para os EUA.
              É razoável supor que seja essa a explicação que o governo norte-americano prometeu à Rede Globo dar ao Brasil: o objetivo é espionar os outros, não os brasileiros. Basta? Nem remotamente.
              Nos documentos que Campbell obteve, "encontram-se numerosos comentários que demonstram que a maior satisfação, para os agentes dos serviços de inteligência, é vigiar tudo, abrir o maior número possível de sistemas de privacidade".
              Mais: "Ainda que apliquem com exatidão as normas legais quando intervêm comunicações de seus próprios cidadãos, não têm esse cuidado quando se trata de cidadãos estrangeiros".
              A vigilância, informa ainda Dempsey, "não serve somente para combater o terrorismo e o crime, mas também para obter informações econômicas, políticas e pessoais de todo tipo".
              Natural, pois, que o Brasil e os brasileiros sintam-se apunhalados pelas costas.
              Por isso, é indispensável que o governo vá além da indignação.

              domingo, 7 de julho de 2013

              Clovis Rossi

              Folha de São Paulo
              A inaceitável caça ao islamismo
              Interditar a via eleitoral a partidos islâmicos só pode dar certo se se aceitar ditaduras
              O golpe no Egito reabriu a temporada de caça aos islamitas, do que dá prova a prisão não apenas do presidente Mohammed Mursi --presidente legítimo, é sempre bom deixar claro--, mas também de um punhado de lideranças de seu partido e da Irmandade Muçulmana, a matriz de todos os grupos islâmicos no Oriente Médio.
              É não apenas condenável como cria o risco, se se estender, de marginalizar a participação político-eleitoral de mais ou menos um quarto da população mundial, a que é seguidora do islã.
              No caso específico do Egito, movimentos islâmicos ficaram nos dois primeiros lugares na eleição parlamentar, a primeira democrática na história do país: o Partido Justiça e Liberdade, braço eleitoral da Irmandade, levou 43,4% dos votos, enquanto o mais radical Al-Nour recebeu 21,8% da preferência.
              Portanto, dois terços dos egípcios confiam nos partidos de fundo islâmico. É verdade que o Al-Nour juntou-se aos protestos contra Mursi, mas não por discordar de seu islamismo e, sim, para aproveitar o desgaste do presidente para "tomar a dianteira junto ao segmento islamita da população", como escreve Nathan Brown, do Programa de Oriente Médio do Instituto Carnegie.
              Derrubar Mursi pode ter sido festejado pelos liberais laicos que a ele se opunham, mas manter a Irmandade longe do poder só se alcançará se o Egito continuar sendo a ditadura que sempre foi, exceto nos últimos 12 meses.
              Veja-se, por exemplo, a análise de Avi Issacharoff para o sítio "The Times of Israel", país que acompanha com lupa tudo o que ocorre nos vizinhos e, geralmente, tem uma percepção mais aguda do que no Ocidente mais distante:
              "O movimento [a Irmandade Muçulmana] permanece o maior e mais forte corpo político no Egito. De fato, se outra eleição presidencial fosse realizada hoje, a Irmandade ainda teria a melhor chance de vencer."
              Além de indecente, o golpe não resolve, como é óbvio, os problemas que minaram a gestão Mursi. Escreve, por exemplo, Marc Lynch (George Washington University):
              "Ninguém deveria celebrar um golpe militar contra o primeiro presidente egípcio livremente eleito, não importa quanto ele tenha fracassado ou quanto se odeie a Irmandade Muçulmana. Tirar Mursi do campo não chegará nem perto de enfrentar as falhas que infernizaram a catastrófica transição egípcia nos últimos dois anos e meio. A intervenção militar é uma admissão do fracasso de toda a classe política egípcia, e os que agora celebram provavelmente já sabem que eles podem logo mais arrepender-se do golpe."
              Interditar o islamismo, teme o sítio geoestratégico Stratfor, pode levar grupos mais radicais "a abandonar a política convencional em favor da luta armada", como de resto aconteceu na Argélia, nos anos 90, em circunstâncias parecidas.
              Tudo somado, a melhor lição do que é democracia vem justamente dos perseguidos islamitas, em editorial de seu jornal marroquino, "At Tajdid": "A história demonstra que os islamitas voltam sempre. A solução é dar aos cidadãos o direito de castigá-los ou premiá-los [nas urnas]".

                quinta-feira, 4 de julho de 2013

                Clovis Rossi

                folha de são paulo
                O voo de Evo e a burrice europeia
                Cerco ao presidente da Bolívia viola convenção internacional e provoca uma crise cretina
                Os países europeus, sob evidente pressão dos Estados Unidos, criaram uma crise extemporânea e burra com a América Latina, ao "sequestrarem" o avião do presidente Evo Morales, para usar expressão de seu vice, Álvaro García Linera, que é exageradamente colorida, mas não deixa de conter algo de verdade.
                Retórica à parte, é incontestável que os países que negaram autorização para que o avião presidencial boliviano sobrevoasse seus territórios violaram a Convenção de Viena sobre Relações Internacionais, de 1961, que João Paulo Charleaux, da "Conectas", ONG de Direitos Humanos, resumiu em seu Facebook.
                Diz a convenção: "Os locais da missão [diplomática], mobiliário e demais bens neles situados, assim como os meios de transporte da missão, não poderão ser objeto de busca, requisição, embargo ou medida de execução".
                O mesmo texto estabelece a ilegalidade de uma revista no avião presidencial, a menos que seja autorizada pelos ocupantes, o que não foi o caso de Evo. Consta que a Espanha, por exemplo, autorizaria o pouso, desde que pudesse verificar se Edward Snowden estava ou não a bordo. A convenção determina ainda que "(...) terceiros Estados não deverão dificultar a passagem através do seu território dos membros do pessoal administrativo e técnico ou de serviço da missão e dos membros de suas famílias".
                Não adianta agora o chanceler francês Laurent Fabius telefonar para seu colega boliviano David Choquehuanca para pedir desculpas e insinuar que o presidente François Hollande não fora informado da decisão de negar a passagem do avião de Evo pelo espaço aéreo francês.
                O incidente uniu os incendiários bolivarianos (Rafael Correa, o próprio Evo, Nicolás Maduro, Raúl Castro) aos moderados Ollanta Humala e José Mujica, passando pela oscilante Cristina Kirchner e terminando na brasileira Dilma Rousseff.
                Esta demorou a se manifestar porque, pelo que a Folha apurou, está em uma fase em que não quer ver na mesa nenhum papel que não diga respeito diretamente às manifestações e às reações a elas. O Itamaraty chegou a ser criticado pela esquerda do PT por seu silêncio.
                Mas, quando finalmente saiu a nota oficial do Planalto, seu tom foi até mais duro do que a reação inicial dos parceiros. A nota não só assume que o episódio "atinge toda a América Latina", tal como vinham dizendo os incendiários, como diz que pode prejudicar futuras negociações comerciais com os europeus.
                Ou seja, pode provocar consequências mais que retóricas, ainda mais que os europeus não escondem o desejo de retomar as negociações para um acordo de livre comércio UE/Mercosul.
                Ameaça, por fim, propor "novas iniciativas" em diferentes instâncias regionais, embora o Planalto não tenha delineado nenhuma concretamente, a não ser uma reunião de emergência da Unasul.
                Pode ser que os países do Sul se contentem com um pedido de desculpas, exigido na nota de Dilma, e que tudo não passe de tempestade de verão (europeu). Ainda assim, foi uma burrice imperdoável.
                crossi@uol.com.br

                  terça-feira, 2 de julho de 2013

                  Clovis Rossi

                  folha de são paulo
                  Quando a rua é golpista
                  A praça Tahrir está substituindo o Parlamento e chamando os militares de volta ao poder
                  Nesta hora em que se tornou praticamente compulsório tomar a voz das ruas como a de Deus, é bom deixar claro que há momentos em que a rua é golpista. No Egito, é assim.
                  A praça Tahrir, que foi o ponto de encontro que derrubou a ditadura de Hosni Mubarak há dois anos, agora lançou-se abertamente à deposição de Mohammed Mursi, o primeiro presidente eleito democraticamente na história egípcia.
                  "A praça Tahrir é o verdadeiro Parlamento, e é nela que um voto de desconfiança ao presidente está sendo dado", escreve Boaz Bismuth, para o conservador jornal israelense "Israel Hayom".
                  Essa anarquia provoca uma inversão das alianças feitas para derrubar Mubarak: naquela ocasião, os jovens liberais e de esquerda que lideravam os protestos aceitaram a tímida adesão da Irmandade Muçulmana contra um regime que tinha o respaldo das Forças Armadas (até que os Estados Unidos retiraram o apoio ao ditador).
                  Agora, os jovens liberais e de esquerda pedem que os militares destronem Mursi, que saiu dos quadros da Irmandade Muçulmana.
                  Nem é um apelo disfarçado. O socialista Hamen Sabbahi, um dos dois grandes líderes da oposição (o outro é Mohammed ElBaradei) incitou o Exército a intervir para "fazer respeitar a vontade do povo". O Exército ouviu e deu prazo de 48 horas ao presidente para atender a rua.
                  Vamos ser claros: é golpe. Não se inventou ainda outra maneira de medir "a vontade do povo" que não seja a velha e boa eleição livre e justa. No Egito ou no Brasil.
                  A de Mursi foi assim, pela primeira vez na história do Egito. Só outra consulta similar pode anulá-la.
                  Que a gestão do presidente não foi propriamente brilhante não há dúvida. O crescimento nos primeiros nove meses do presente ano fiscal foi de apenas 2,3%, insuficiente para um país que já vinha em crise no final do período Mubarak. O desemprego, em consequência, subiu de 12,5% no primeiro trimestre de 2012 para 13,2% em 2013.
                  O deficit fiscal aumentou 48% na comparação com o ano anterior e o endividamento externo já bateu em 80% do Produto Interno Bruto.
                  Um mau desempenho econômico deve servir como propaganda para a oposição, mas não para derrubar um presidente legítimo, ainda mais um que está há apenas um ano no cargo e teve uma herança maldita.
                  O Ocidente, que deu apoio à derrubada de Mubarak, repetirá a sustentação agora que a vítima será um presidente legítimo?
                  Seria um erro. A Irmandade Muçulmana de Mursi tem sólida e antiga implantação popular. Velha de 85 anos no Egito, substituiu o Estado junto a setores populares de que sucessivas ditaduras jamais cuidaram devidamente. É por isso que ganhou a eleição há um ano.
                  Aliás, vale a mesma observação para países vizinhos também afetados pela chamada Primavera Árabe, que resultou na ascensão dos braços da Irmandade em cada um deles. Ou seja, ganharam pela presença constante, não pela suposta ou real agenda islamita de que tanto se desconfia no Ocidente.
                  Interditar a Irmandade "manu militari" equivale, pois, a revogar a Primavera.
                  crossi@uol.com.br

                    domingo, 30 de junho de 2013

                    Dilma dilapidou sua herança - Clovis Rossi

                    folha de são paulo
                    Nos anos Dilma Rousseff, despencou a confiança dos brasileiros nas instituições (públicas e também privadas).
                    É o que mostra o "13º Barômetro Edelman de Confiança", elaborado pela Edelman, considerada a maior firma de relações públicas do mundo, presente em 66 países (Brasil inclusive) com 4.500 empregados.
                    Na pesquisa publicada em 2011, mas feita em 2010, o ano em que Dilma se elegeu e o Brasil cresceu espetaculares 7,5%, os brasileiros estavam no topo dos que confiavam nas suas instituições, entre os 26 países em que o levantamento é feita anualmente. A pontuação brasileira era de 80 em 100, quando a média geral não passava de 55.
                    No ano seguinte, o primeiro de Dilma, o Brasil passou a ser o 14º, abaixo da metade da tabela, portanto, com uma queda espetacular de quase 30 pontos (de 80 passou para 51). Em vez de bem acima da média, ficou exatamente nela, que foi de 51 pontos.
                    Na pesquisa deste ano, mas feita em outubro passado, a posição brasileira melhorou algo: passou a ser o 12º colocado com 55 pontos, abaixo da média, que subiu para 57.
                    É razoável suspeitar que esses números ajudam a entender os protestos deste junho. Como perderam rapidamente a confiança nas instituições, os brasileiros saíram às ruas. A desconfiança nas instituições, de resto, aparece com clareza em outra pesquisa, esta do Datafolha, feita logo após o início dos protestos e que mostra o desprestígio de todas as instituições públicas (Parlamento, Executivo, partidos políticos).
                    Pena que o Datafolha não tenha pesquisado o prestígio (ou falta dele) do setor privado.
                    Se serve de consolo para Dilma e os demais atores políticos e empresariais brasileiros, registre-se que o desencanto não é uma jabuticaba, que só existe no Brasil. É disseminado pelo mundo ou ao menos pelos 26 países que a Edelman analisou.
                    "Menos de um de cada cinco consultados acredita que um líder empresarial ou governamental responderia realmente a verdade quando confrontado com uma questão difícil", diz o relatório.
                    Dramático, não? Posto de outra forma, significa dizer que mais de 80% do público nos 26 principais países do planeta acha que seus líderes mentem quando a coisa aperta.
                    Era inescapável dar como título da pesquisa 2013 a expressão "Crise de Liderança". É exatamente o que o mundo está enfrentando já faz algum tempo.
                    Choca verificar que, mesmo nesta era de capitalismo descontrolado, é algo maior a confiança nos homens de negócio do que nas instituições oficiais. São 18% os que acreditam que líderes empresariais dirão a verdade mesmo diante de questões críticas. Mas apenas 13% acham que os líderes políticos fariam o mesmo.
                    Repete-se a situação quando a pergunta é sobre a capacidade de tomar decisões éticas e morais: os empresários são capazes para 19% dos consultados, ao passo que apenas 14% acham que os homens públicos têm idêntica predisposição.
                    Alguma surpresa com o fato de que movimentos maciços de protesto venham se espalhando pelo mundo?
                    Clóvis Rossi
                    Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às terças, quintas e domingos no caderno "Mundo". É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo" e "O Que é Jornalismo". Escreve às terças, quintas e domingos na versão impressa do caderno "Mundo" e às sextas no site.

                    quinta-feira, 27 de junho de 2013

                    O dia em que a corte ficou nua - Clovis Rossi

                    folha de são paulo

                    O governo recua, os juristas batem cabeça, as verbas não são usadas, vota-se só por medo
                    É assustador quando uma garota de 25 anos (Leila Saraiva, do Movimento Passe Livre) constata "um despreparo gigantesco do governo" para tratar de mobilidade urbana, afinal o tema que incendiou originalmente a rua.
                    Palavra de testemunha ocular, posto que Leila participou da reunião da presidente Dilma Rousseff com o MPL.
                    Seria um comentário assustador, qualquer que fosse o presidente. Mas torna-se exponencialmente grave quando a mandatária em questão gosta de ser vista como gerente, como técnica.
                    Pior ainda é que comentário semelhante poderia ser aplicado ao tratamento da questão política, o verdadeiro nó que amarra o país, não só de parte do governo federal, mas de todas as esferas de poder.
                    É despreparo uma governante lançar solenemente uma proposta --a tal reforma política via processo constituinte exclusivo-- para derrubá-la menos de 24 horas depois, supostamente por ter se convencido de que era inconstitucional. Pode ser, pode não ser, uma vez que juristas, políticos e até ministros do Supremo Tribunal Federal bateram cabeça em torno da inconstitucionalidade da proposta.
                    Joaquim Barbosa, o chefe do Poder Judiciário, por exemplo, deu todos os sinais, embora em linguagem tortuosa, de que prefere uma constituinte exclusiva, a partir de um argumento irrefutável: o Congresso ordinário já demonstrou à saciedade que não tem a menor vontade de mexer no jogo que beneficia seus membros.
                    O recuo de Dilma significa que ela deixa a tarefa de "oxigenar o sistema político" nas mãos de quem o poluiu até níveis insuportáveis.
                    O Congresso deu, aliás, na mesma terça-feira, mais provas de que também é afetado por "gigantesco despreparo". Votou quase por unanimidade o fim da PEC 37, mas não por convicção. Havia ao menos 200 deputados favoráveis a ela, mas todos (menos nove) enfiaram a viola no saco com medo da rua. Ainda bem que o fizeram, mas não pode ser o volume da voz da rua o único elemento para decidir o voto.
                    Que o Congresso está agindo só para acalmar a massa, à espera de que ela se canse, prova-o o fato de que Renan Calheiros --ele também na mira da rua-- não mencionou entre as medidas que quer votar com urgência a eliminação, por exemplo, dos "auxiliares de embarque" regiamente pagos, à disposição dos congressistas nos aeroportos. É apenas um dos incontáveis privilégios inaceitáveis de que gozam os políticos --e nenhum será tocado se o voto for distrital ou seguir como está, se o financiamento das campanhas for público ou não.
                    Para fechar o círculo, no mesmo dia em que a presidente anunciava mais verbas para mobilidade urbana, o "Valor Econômico" demonstrava que o programa Mobilidade Urbana-Grandes Cidades, lançado em abril de 2012, não saiu do papel: "De um total de R$ 10,2 bilhões de repasse da União disponíveis a fundo perdido, menos de 7% foram contratados. Ou seja, há R$ 9,5 bilhões parados no Ministério das Cidades".
                    O "gigantesco despreparo" é, pois, do Estado brasileiro.
                    crossi@uol.com.br

                      terça-feira, 25 de junho de 2013

                      Clovis Rossi

                      folha de são paulo
                      Chamem o Beppe Grillo
                      Proposta de assembleia exclusiva para reforma política é a única capaz de domar a "casta"
                      A presidente Dilma Rousseff cravou ontem o último prego no caixão do sistema partidário brasileiro, ao sugerir um plebiscito para convocar uma assembleia exclusiva para tratar da reforma política.
                      Embora faltem detalhes, como é natural em se tratando de uma decisão tomada às pressas, para responder à pressão da rua, parece óbvio que os atuais parlamentares não participarão da reforma. Se eles pudessem fazer uma reforma séria, não seria preciso convocar coisa alguma. O Congresso atual bastaria para fazê-la.
                      Trata-se do reconhecimento da mais alta autoridade da República de que os protestos em curso são "uma manifestação a mais da crise mundial da democracia representativa", como escreveu ontem o embaixador Rubens Ricupero.
                      Aqui mesmo, domingo retrasado, tratei do tema, sob o título "O fracasso da democracia" (http://folha.com/no1295954).
                      É saudável que Dilma assuma agora a necessidade de uma ampla reforma política, que jamais será feita pelo sistema atual, voltado exclusivamente para seus próprios interesses, nem sempre legais.
                      Cabe toda uma discussão a respeito do que deveria entrar na reforma política, mas, para enlaçar o tema com os protestos, sugiro que os descontentes com o sistema atual prestem atenção ao que aconteceu na Itália.
                      Lá, os partidos que ajudaram o país a sair dos escombros da Segunda Guerra Mundial para a posição de sexta potência do planeta em um prazo relativamente curto implodiram nos anos 90, sem que a democracia implodisse junto. Ao contrário, a Itália é de tremenda vitalidade, do que dá prova o surgimento do M5S (Movimento 5 Estrelas), liderado por um cômico, Beppe Grillo.
                      Nasceu e cresceu na internet, como as manifestações deste junho brasileiro, mas ganhou as ruas na campanha eleitoral do início deste ano, tendo como centro de seu programa a crítica demolidora aos partidos políticos convencionais, de direita ou de esquerda.
                      Com essas características, deu o passo que talvez o Movimento Passe Livre e seus primos devessem dar em algum momento: jogou-se às urnas e delas saiu com um quarto dos sufrágios, como o partido isoladamente mais votado. Só perdeu para coligações, as de centro-esquerda e de centro-direita.
                      O momento ideal para isso seria, em tese, a assembleia exclusiva para a reforma política. Mas, antes dela, é fundamental impedir que a "casta", como os italianos chamam a sua classe política, anestesie o impulso reformista que a presidente assumiu ontem.
                      É escandalosamente óbvio que os partidos políticos existentes farão o possível, o impossível e o indevido para bloquear qualquer reforma que reduza --ou, preferencialmente, elimine-- privilégios absurdos que foram construindo com o tempo.
                      Só temem a pressão vinda das ruas porque sabem que, entre eles, mesmo que sejam adversários, são perfeitamente capazes de se entender, como dão prova as espúrias alianças formadas pelos presidentes oriundos do PSDB primeiro e do PT depois.
                      crossi@uol.com.br

                        quinta-feira, 20 de junho de 2013

                        Clovis Rossi

                        folha de são paulo
                        O povo vai bem, o país vai mal
                        Pesquisa de instituto dos EUA mostra 55% de insatisfeitos com o Brasil, daí os protestos
                        O cada vez mais imperdível Delfim Netto puxou para sua coluna de terça-feira no "Valor Econômico" uma pesquisa que talvez ajude a entender o que está acontecendo no Brasil.
                        Pena que a pesquisa seja de uma organização norte-americana, o Centro Pew de Pesquisas, e não de uma instituição brasileira, o que, por sua vez, talvez ajude a entender a perplexidade ambiente.
                        Enquanto estávamos anestesiados pela popularidade de Dilma Rousseff (e de alguns outros governantes), o Pew perguntou, em vários países, se o pesquisado estava ou não satisfeito com o modo como andavam as coisas. No Brasil, 55% responderam que estavam insatisfeitos (44% satisfeitos). Não por acaso, 55% foram os que disseram ao Datafolha, no início dos protestos, que estavam a favor deles.
                        A pesquisa revela insatisfação em aumento. No ano em que Dilma ganhou a eleição (2010), havia empate técnico entre satisfeitos (50%) e insatisfeitos (49%).
                        Em 2012, aumentava 10% o nível de insatisfação.
                        Mas o levantamento mostrava uma aparente contradição: enquanto 74% diziam que sua situação financeira era boa, 79% afirmavam que a economia iria melhorar e 79% apostavam em que seus filhos estariam melhor que eles.
                        Dá até para inverter célebre frase do general Garrastazu Médici, presidente de 1969 a 74, que, após visita ao Nordeste assolado pela seca, decretou: "O país vai bem, o povo vai mal".
                        As pesquisas do Pew permitem dizer que o "povo vai bem, mas o país vai mal", não?
                        A contradição talvez se desfaça quando se colocam fatos que explicam a insatisfação com o país e a satisfação com a situação financeira pessoal.
                        Quando há virtual pleno emprego e renda em aumento (lembre-se que a pesquisa é de 2012, quando a inflação em alta ainda não comia tanto o salário como agora), a maioria sente-se bem.
                        Mas mesmo quem tem emprego e renda é torturado no cotidiano por um país em que o trânsito é infernal, a violência é aterradora, há eternas carências graves na educação e na saúde, os serviços públicos são precários, para não usar uma palavra feia.
                        Na verdade, deveria haver espanto não com os protestos de agora mas com o fato de que nunca tenha havido manifestações de massa contra esse massacre cotidiano (as que ocorreram foram por motivos institucionais).
                        Por que agora, então? Esta pergunta demanda mais tempo de pesquisa para uma resposta minimamente satisfatória.
                        Mas uma pista talvez esteja na pesquisa do Datafolha, ontem publicada, segundo a qual o público perdeu totalmente a confiança em instituições (Congresso e partidos políticos por exemplo) que deveriam fazer a intermediação entre a sociedade e o Estado.
                        Por isso, partiu para o que a presidente chamou, com razão, de ultrapassagem "dos mecanismos tradicionais das instituições, dos partidos políticos, das entidades de classe e da própria mídia".
                        A questão seguinte, para a qual ainda não há resposta, é se os "mecanismos tradicionais" saberão se reciclar (duvido) e como o protesto atuará em função da reciclagem ou falta dela.

                        terça-feira, 18 de junho de 2013

                        Clovis Rossi

                        folha de são paulo
                        A vaia saiu às ruas
                        Uma faixa no Rio dá o motivo de fundo dos protestos: não é por centavos, é por direitos
                        Aviso ao leitor: esta é apenas uma primeira aproximação ao que está acontecendo no Brasil. Sou obrigada a concordar com Ângela Randolpho Paiva, do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, que admitiu honestamente à GloboNews: "Estamos atordoados".
                        Com razão. O Brasil não é um país de sair à rua, salvo em Mundiais. Que saia agora, em massa, ainda por cima para protestar também contra as obras da Copa, é de atordoar qualquer um.
                        Mas jornal circula todos os dias, e não consigo silenciar à espera de recolher os elementos indispensáveis a uma análise mais aprofundada. É preciso pincelar algumas ideias, apesar de os protestos do dia estarem apenas começando, por imposição dos horários de fechamento.
                        O que já está evidente é que a vaia ouvida no sábado no estádio Mané Garrincha saiu às ruas. Não adianta o petismo e a mídia chapa-branca tentarem dizer que a vaia partiu da elite, única em condições de pagar o preço abusivo dos ingressos.
                        Nas ruas do Rio ontem, havia uma vaia clara, na forma de uma faixa: "Fora Dilma/Fora Cabral".
                        Tanto o Rio quanto Brasília, é sempre bom lembrar, são praças fortes do lulismo. Que apareça um cartaz como esse, ainda que isolado, é eloquente do estado de insatisfação de uma parcela importante do público.
                        Mas é fundamental ter em conta duas coisas:
                        1 - Dilma não é o alvo isolado dos protestos. Nem sei se é o alvo principal. Mas é alvo.
                        Alvos também são os políticos em geral, de que dá prova a concentração em Brasília diante do Congresso Nacional. O volume de público no Rio, governado pelo PMDB, e em São Paulo, governado pelo PSDB, demonstra que a classe política brasileira está fracassando na sua missão de representar o público, pelo menos o público mobilizado.
                        A massa no Rio era, aliás, impressionante; desde as Diretas Já, não se via algo parecido.
                        2 - Há uma aparente contradição, de todo modo, entre a aprovação popular dos governos Dilma e Alckmin, aferida em pesquisas recentes, e o volume e a permanência dos protestos. Haveria uma maioria silenciosa? Talvez, mas o fato de que 55% dos consultados pelo Datafolha digam que aprovam os protestos é um forte chamado de atenção.
                        Por fim, sobre o que querem os manifestantes, já muito além do passe livre, quem parece ter razão é Juan Arias, o excelente correspondente de "El País": "Querem, por exemplo, serviços públicos de primeiro mundo; querem uma escola que, além de acolhê-los, lhes ensine com qualidade, o que não existe; querem uma universidade que não seja politizada, ideologizada ou burocrática. Querem que ela seja moderna, viva, que os prepare para o trabalho futuro".
                        Mais: "Querem hospitais com dignidade, sem meses de espera, onde sejam tratados como seres humanos, e querem, sobretudo, o que ainda lhes falta politicamente: uma democracia mais madura, em que a polícia não atue como na ditadura".
                        "Querem um Brasil melhor. Nada mais."
                        Como dizia a faixa que abria a passeata no Rio: "Não é por centavos; é por direitos".