Prisioneiro do governo Muamar Kadafi por
oito dias, o jornalista Andrei Netto lança livro sobre a Líbia. Relato
derruba os estereótipos em relação ao país criados pelo Ocidente
Nahima Maciel
Estado de Minas: 16/03/2013
Existe um código de ética não escrito
entre jornalistas encarregados de cobrir guerras: repórter não é herói.
Nem pode, em circunstância alguma, aproveitar a cobertura para se
autopromover. Essa “lei” era muito clara para o gaúcho Andrei Netto
naquela tarde de 8 de março de 2011, quando dois militares abriram as
portas de uma prisão nos arredores de Trípoli, capital da Líbia, para
libertá-lo com a condição de que deixasse o país imediatamente.
O
acordo foi cumprido. Mas para Andrei Netto ficou o compromisso de não
abandonar a cobertura do conflito e, sobretudo, não transformar em
relato aventuresco a sua detenção naqueles violentos porões do governo
Muamar Kadafi. Na verdade, o incidente estragara um trabalho planejado
com cuidado e dedicação.
Três dias depois de ser libertado, o
correspondente de O Estado de S. Paulo, que mora em Paris, recebeu o
convite para escrever um livro. Recusou, pois não seria autor de um
relato oportunista. Decidiu lançá-lo apenas depois de cobrir todas as
etapas do conflito que derrubou a ditadura de 42 anos imposta por Kadafi
à Líbia.
E é com a morte violenta do ditador, em outubro de
2011, que Netto dá início a O silêncio contra Muamar Kadafi, título que
resume a complexa revolução líbia. Pouco a pouco, o ditador passou a
perder o apoio da população devido à sucessão de desmandos que
protagonizou. Ao usar o terror psicológico e a tortura para reprimir e
silenciar a sociedade, o coronel perdeu a sustentação conquistada na
década de 1970. A opressão alimentou a sede de liberdade e democracia.
Diferentemente
do que o mundo especulava, a Líbia, que passou anos isolada da
comunidade internacional, não era reduto de terroristas e líderes
tribais. Netto exibe um país de classe média, com renda per capita maior
do que a brasileira. Seus intelectuais se mostravam politizados,
preparados tanto para pegar em armas quanto para refletir sobre a
construção de uma nação democrática.
No fim de fevereiro de
2011, o brasileiro ingressou ilegalmente no país em companhia do
iraquiano Gaith Abdul-Ahad, correspondente do jornal inglês The
Guardian. Eram os primeiros dias do conflito. Netto entrou pelo Oeste,
na fronteira com a Tunísia, proeza à qual nenhum jornalista havia se
arriscado. O caminho dava acesso à região controlada pelo governo
Kadafi, mas com forte mobilização rebelde.
O plano era chegar a
Trípoli por um trajeto perigoso: apesar de várias áreas já dominadas
pelos revolucionários, algumas cidades eram fortemente pró-Kadafi. Netto
passou por Nalut e Zintan, sempre guiado pelos rebeldes. Fez algumas
reportagens sobre o avanço da revolução até alcançar Sabratha, reduto de
kadafistas, onde foi preso com um colega iraquiano.
A operação
para libertar Andrei Netto envolveu a Embaixada do Brasil e,
principalmente, uma executiva líbia que trabalhava para a Petrobras e
tinha contatos na alta cúpula do governo Kadafi. Ele ficou incomunicável
por oito dias. Nesta entrevista, o repórter revela detalhes de sua
experiência.
Por que você se recusou a escrever o livro assim que recebeu o convite, logo depois de ser libertado?
Julgava
que escrever um livro sobre os oito dias de minha prisão na Líbia seria
oportunista, então optei por escrever um livro no futuro, depois de
cobrir toda a revolução. Ela teve todos os desdobramentos que a gente
sabe, alguns inacreditáveis, outros chocantes, e estive em boa parte
deles. Por isso achei pertinente escrever um livro a respeito, mas minha
preocupação era não ser oportunista.
Escrever em
primeira pessoa costuma expor consideravelmente o autor, no caso de um
livro-reportagem. Por que você optou por esse recurso?
Não
queria fazer isso. Na verdade, sentia-me mal. Mas essa decisão foi
fruto de conversas com colegas estrangeiros. É uma postura de
jornalistas brasileiros não aparecer nos livros. No jornalismo americano
não é assim, no europeu também não. Nesses casos, o jornalista não tem o
temor de ser oportunista ao se colocar na história, ao contá-la na
primeira pessoa. Como brasileiro, não queria fazer isso. Até o momento
em que me dei conta, já escrevendo o livro, de que era impossível
fazê-lo de outra forma. Não conseguia escrever em terceira pessoa,
porque me faltavam elementos essenciais. Depois, entendi o raciocínio
dos repórteres estrangeiros. Não é problema escrever em primeira pessoa,
desde que o autor não seja oportunista em primeira pessoa.
Pode-se dizer que o Brasil tem correspondentes de guerra? Ou essas coberturas são muito pontuais e esporádicas?
O
jornalismo de guerra brasileiro, embora conte com grandes caras, como o
José Hamilton Ribeiro, não tem uma tradição perene. Nosso comportamento
é errático. A gente não cobre sistematicamente todos os conflitos.
Quando cobre – às vezes –, não o faz com o mesmo grau de profundidade,
porque determinado país não tem relação tão estreita com o Brasil e a
gente se sente um pouco distante. Ou, então, não cobre por limitações
financeiras em momentos de crise. Não conseguimos sistematizar, ao longo
de nossa história, uma tradição de cobertura de guerra. Um dos sintomas
disso é que também não há tradição de leitura de guerra no Brasil. O
país ainda tem um caminho a trilhar até alcançar o Reino Unido, os
Estados Unidos e a França, por exemplo. Eles, realmente, estão alguns
passos à frente.
Algum dia vamos ter esse tipo de cobertura?
Isso
já vem ocorrendo. As coberturas da Primavera Árabe tiveram constante
presença brasileira, bem intensa. Em determinado momento do conflito na
Líbia, havia mais de uma dezena de brasileiros lá. Isso é muito
positivo. Americanos, ingleses e franceses se surpreendiam com o fato de
brasileiros estarem tão perto. Eles sentiram a chegada e a presença da
imprensa brasileira.
É interessante a sua relação com o
repórter do The Guardian. Vocês se tornaram parceiros na empreitada de
tentar chegar a Trípoli. Como fica a concorrência durante as coberturas
de guerra?
Diria que as duas coisas acontecem. A
competição está lá, viva, e a gente continua querendo dar melhor o
material do que o jornal concorrente, sem dúvida. Agora, isso tem peso
menor. Por questões de segurança, pela integridade física dos
repórteres, essa competição tem de ser amenizada, ser menos radical. Ao
trocar informações a respeito de riscos eventuais, a gente está, de
alguma forma, amenizando os riscos.
Diferentemente de
outros países da Primavera Árabe, a Líbia pegou em armas e enfrentou
guerra civil, assim como a Síria. O que é diferente na Líbia de hoje em
relação às outras nações?
A Líbia é mais moderada.
Determinados segmentos da população são até liberais, embora tenham
certo preconceito em relação a essa palavra. E não há sectarismos dentro
da sociedade líbia. Não há sunitas, xiitas e alauitas dividindo a
população. É um povo de islamismo mais moderado e homogêneo. Isso reduz o
risco de conflitos internos. Os distúrbios que ocorrem atualmente são
criados por militantes e brigadas extremistas jihadistas, mas eles são
minoria. Talvez a vantagem da Líbia nessa pós-revolução seja a
homogeneidade do país e a moderação da população. Isso faz com que eles
tenham grande apego à democracia e à liberdade, querem realmente
construir um estado democrático. Se vai ser possível, a gente não sabe,
pois há muitas variáveis naquela região. Talvez essa seja a maior
diferença. O extremismo é mais forte no Egito e na Síria.
Você acredita na Primavera Árabe?
Essa
pergunta é muito difícil de responder. Seria fácil ficar em cima do
muro. A maioria dos analistas e jornalistas fica em cima do muro ou opta
pelo pessimismo. Mas sou otimista, acho que os povos árabes que vivem
sob governos autoritários têm o direito de reivindicar liberdade e
democracia. Isso, claro, vai ter um custo, o que desestabilizará os
países e a região. Serão necessários alguns anos para se retomar a
estabilidade. Mas acredito, sim, que a Primavera Árabe pode ser o sopro
de democracia que ocorreu nos anos 1990 no Leste europeu, por exemplo.
Chegou a hora da democracia no Oriente Médio e no mundo árabe. A maior
parte das populações desses países persegue, sim, a liberdade, a
democracia e a autonomia.
Você ficou surpreso com o fato de a revolução líbia ter sido conduzida por intelectuais?
Sim,
mas a surpresa se deve à minha própria ignorância. Nós todos éramos
muito ignorantes a respeito da Líbia. O mundo achava que a Líbia era o
país fechado onde viviam terroristas. Na realidade, essa imagem é
absolutamente falsa e desrespeitosa. Há uma vida intelectual muito
grande lá. Trata-se de um país de classe média, que não é miserável, tem
renda per capita elevada e gente moderada. Alimentamos estereótipos
completamente fora da realidade, gerados por um governo autoritário,
radical e terrorista. Tomávamos o governo pelo povo. Este era o erro: o
governo não representava o povo. Daí a sua falta de legitimidade.
O SILÊNCIO CONTRA MUAMAR KADAFI
. De Andrei Netto
. Companhia das Letras, 368 páginas, R$ 49,50
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