Estado de Minas 16/03/2013
Há 50 anos, chegava a Belo Horizonte
um jovem curitibano de 18 anos, com físico de judoca e rosto de noviço.
Ele desceu do ônibus na rodoviária, depois da viagem longa e cansativa,
encapotado para não sentir frio e sem grana no bolso. Vinha participar
da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, em 1963, que trouxe à cidade
nomes como os irmãos Campos, Décio Pignatari, Luiz Costa Lima, Pedro
Xisto, Roberto Pontual e outros poetas e teóricos interessados em fazer a
poesia brasileira dar um passo além do modernismo e dialogar com outras
referências. O encontro foi organizado pelos poetas Affonso Romano de
Sant’Anna e Affonso Ávila e reunia pessoas dispostas a discutir Ezra
Pound, fazer poemas, fundar revistas, criar linhagens. Nosso cansado
viajante, Paulo Leminski, tornou-se o mascote do grupo. Ele precisou
convencer os organizadores a aceitar sua inscrição, pois o dinheiro que
trazia era a conta para as despesas com alimentação e birita.
A
precocidade da presença do garoto em meio a nomes experimentados da
literatura de vanguarda foi ainda mais impressionante quando se
descobriu que o jovem vinha preparado. Leminski havia estudado no
Mosteiro de São Bento, em São Paulo, dominava a vanguarda e conhecia os
clássicos. Sabia latim, entre outras línguas, ensaiava suas teorias
sobre poesia, participaria de todas as discussões e assinaria o
documento final do encontro. Tudo teve que ser rápido na vida de
Leminski. Em 1989, aos 44 anos, o poeta morria em decorrência de uma
cirrose hepática (a mesma idade e a mesma doença de Fernando Pessoa).
Deixou obra importante em prosa, poesia, ensaios e tradução, mas que foi
aos poucos sendo misturada com a lenda de uma vida intensa e radical.
A
edição da obra poética completa de Paulo Leminski, Toda poesia, que
acaba de ser lançada pela Editora Companhia das Letras, é por isso um
desafio para o leitor, para a crítica e para a literatura brasileira.
Leminski, poeta, foi muito mais que poeta (como ele mesmo antecipou em
um poema), foi uma espécie de pedreira, marco, referência para a arte
brasileira a partir dos anos 1970. Paulo, samurai malandro, foi caso
único, mas que se tornou uma possibilidade: sua poesia é mescla de acaso
e invenção, tem a carga da história e a leveza do instante.
A
primeira característica que parece saltar da obra-vida do poeta é sua
multiplicidade e incapacidade de ser reduzido a definição única.
Leminski era homem culto, sabia muitas línguas e traduziu obras do
japonês, latim, inglês e francês. Tudo o que era erudição se revelava
para ele como instrumento de trabalho. Era um caçador de poesia e, para
isso, valia tanto a herança clássica como as inovações da vanguarda.
Além disso, em busca da comunicação e sem preconceito com a cultura de
massa, levou adiante a inspiração tropicalista, trazendo elementos da
publicidade, da canção, das artes visuais e do comportamento para sua
poesia.
Jogador em meio a referências múltiplas, a obra de
Leminski vai criar tenso diálogo com o concretismo, com o tropicalismo,
com a poesia japonesa, com as correntes teóricas que brotavam da
semiótica e da filosofia de Pierce. Em cada um desses elementos a obra
do poeta parecia encontrar pegadas produtivas: a capacidade de invenção
gozosa, a conversa com a indústria cultural, a fuga do nacional-popular,
a concisão ancorada numa filosofia quase religiosa, a aventura da
interpretação sem fim.
Toda poesia vai fazer chover no piquenique
da poesia brasileira. A obra de Leminski é muito mais importante que
parecia, a se avaliar apenas pelos registros que ficaram de companheiros
de jornada. Ao reunir a produção integral do autor, o livro revela que
Paulo Leminski, talvez escondido pelo charme destrutivo de sua vida, é
um criador que ainda não foi lido como merece. Em outras palavras, não
foi lido como ele mesmo leu seus poetas de eleição. Os ensaios de Paulo
Leminski, que cobram também reunião urgente, deram vazão a um método
único, feito de paixão, comunicação direta e revelações epifânicas sobre
o trabalho de autores como John Lennon, John Fante, James Joyce, Samuel
Beckett, Mishima e Bashô, entre outros.
Rigor sem rigidez A
primeira constatação que a poesia de Leminski faz brilhar na mente do
leitor é sua junção única entre o fortuito (há sempre um raio de
descoberta) e o urdido (o poeta domina seus instrumentos com virtuosismo
quase implacável). É tão sério que se torna divertido. É tão engraçado
que nos convoca a inteligência de ir além do mero prazer da descoberta.
Paulo Leminski não brinca de ser poeta, mas sabe que a poesia é a mais
sublime das brincadeiras inventadas pelo homem. Uma atitude de rigor, um
descompromisso com a rigidez.
Além das características internas,
há um jogo de referências que dispõe os poemas em meio à cultura. Se a
convivência com a herança clássica se revela em suas traduções de
Petrônio e sua convivência com as vanguardas deixa marcas em seus dois
romances (Catatau e Agora é que são elas), Leminski dá um passo além e
se torna o grande mestre de cerimônias da poesia oriental, sobretudo dos
hai-kais e da poética de Bashô. Há muitas sendas na poesia japonesa: a
singeleza, o coloquialismo, a intuição, o senso de temporalidade, a
espacialidade quase teatral, a metafísica do instante. Mas Leminski
oferece ao leitor brasileiro o que há de mais original, o sentido
religioso, iniciático, como se fazer poesia fosse uma das estradas de
acesso ao sublime. Ao se dedicar ao caminho da poesia como arte zen, o
poeta de Curitiba nos orientou para sempre.
A leitura dos poemas
de Leminski é um corpo a corpo com a linguagem. E é sempre bom lembrar
que em matéria de poesia, durante a vida do poeta, era esperada uma
atitude política quase militante. Poesia existia para denunciar, para
criar espírito de corpo, para fazer barricada. Com Leminski a política é
mais embaixo. Maikoviskiano radical, ele atualiza a afirmação de que
não há arte revolucionária sem forma revolucionária. O nosso poeta
desafia, de uma vez só, dos conservadores da ética e da estética. De um
lado, joga duro contra todas as formas de opressão, até aquelas
apaziguadoras da arte que consola, como as canções de protesto e os
poemas de circunstância. E responde: “Em la lucha de clases/ Todas las
armas son buenas/ Pedras/ noches/ poemas”. De outro, incorpora um à
vontade com o mundo que permite a expansão do ideal de militância da
ideologia para a vida.
O próprio poeta, que era bom em títulos,
deu a seu livro mais conhecido o nome de Caprichos e relaxos. Uma
síntese que é um programa em perpétuo deslocamento. Há que caprichar
para poder relaxar; sem relaxo, não há capricho que chegue. Toda poesia
precisa agora convocar a reedição da prosa leminiskiana. Além dos
artigos, ensaios, crônicas e romances, o poeta deixou quatro biografias
de seus heróis mais queridos: Cruz e Sousa, Jesus, Bashô e Trotski. Um
poeta negro simbolista, um profeta judeu revolucionário, um rônin autor
de hai-kais e um revolucionário profeta. Como o poeta que lhes conta a
vida, cada um deles precisou se tornar contemporâneo de si mesmo,
inventar um tempo que os merecesse. Nosso ex-estranho Leminski sempre
escolheu bem as companhias.
jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br
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