quarta-feira, 27 de março de 2013

Nina Horta

folha de são paulo

O psicopata americano
No café da manhã do nosso americano, sarado, rico e psicopata, tem muffin de cevada e cereal de aveia
De repente, me lembrei de um livro que li há muitos anos. Minto. Tentei ler e achei tão esquisito, tão fora de propósito, que larguei. É o "Psicopata Americano", de Bret Ellis. Saiu em 1991. Suponhamos que demorou dois anos para ser escrito e publicado, logo já tem uns 25 anos.
Lembro-me de que não devo ter entendido o livro, que só falava em grifes de roupas e comidas, extremamente superficial (de propósito) e violento. Mas, lá no fundo do cérebro, sabia que ele tratava muito de comida e fui dar uma relida.
Para espanto total, o livro que eu tanto estranhei virou quase normal para mim. É como se eu estivesse lendo a "Vogue" misturada com Tarantino. Nem estranhei nada e ainda me interessei e fui até o fim.
Sinal de que o horror da superficialidade e da falta de valores já não se faz estranho, vai mal!
Mas eu estava certa quanto à comida. Já se comia em Nova York o que se come ainda hoje nos restaurantes chiques. O dia e a noite dos personagens giram em torno de almoços e jantares, o status de se conseguir lugar com o maître e a posição da mesa. (Os maîtres eram mais importantes que os chefs.)
A primeira comida que aparece é na casa de uma amiga do psicopata, que serve sushi. Na hora da sobremesa, ela oferece sorbets de kiwi, carambola, figo e pera d'água.
Um desavisado pede sorbet de chocolate e cai na desgraça. Não é o que deveria pedir, errado ou exótico demais. E, ainda por cima, confundiu cappuccino com carpaccio.
No dia seguinte, o café da manhã do nosso americano, bonito, sarado, branco, rico e psicopata, é: um muffin de cevada com manteiga de maçã. Uma tigela de cereal de aveia com germe de trigo e leite de soja. Uma garrafinha de água Evian e uma xicrinha de café descafeinado. Uma xícara de chá de maçã e canela descafeinado.
No almoço (eles já usam muito o guia "Zagat"), conseguem um lugar num restaurante de "pós-Califórnia cuisine". O protagonista já sabe como vai ser: canos expostos, cozinha aparente, pizza feita na vista dos clientes, burritos com vieiras, torradas de wasabi, fusilli e queijo brie com azeite.
Ele pede radicchio com lula e ragu de tamboril com violetas, e o chef os presenteia com pipoca "cajun" e também com um vermelho queimado de um lado só, "medium rare". (Lembram-se dessa mania que deu aqui também por causa do chef do sul dos EUA Paul Prudhomme, que fazia o peixe na grelha, de um lado só, até queimar?)
Um jantar de negócios: boudin branco, frango assado e cheesecake. (A palavra cheesecake soa mal para um deles, é muito comum, fica confuso: "O quê? Cheesecake de que sabor? Quente? Cheesecake de ricota? De queijo de cabra? Enfeitado com flores ou com coentro?")
Éramos assim há mais de 20 anos. Vamos andando ou paramos no mesmo lugar? Como o ser humano é engraçado! Como somos engraçados e excêntricos! O tanto que podemos nos preocupar com comida e suas modas... Tem muito pano pra manga nessas manias, hora de repensar. Eva e Adão já com a maçã. E nós atrás com sopinha de abacaxi esferificado. Quem sabe seja tudo sobre a árvore do bem e do mal?
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