K entre nós
Sofro um pouco toda noite pensando em você aí, em Duque de Caxias, brigando com o banco, pelo telefone
GESIEL, DESCULPE te escrever assim, uma carta aberta, no meio do jornal. Sei que talvez cause algum transtorno: comentários de vizinhos, brincadeiras de colegas, parentes ligando, atravancando sua quarta-feira, mas não se preocupe, alguém já disse que "a crônica produz a notoriedade e garante o esquecimento": hoje, somos famosos, amanhã, estaremos forrando o chão das obras e cobrindo os rostos dos atropelados.
Não nos conhecemos. Meu nome é Antonio de Góes e Vasconcellos Prata. O seu é Gesiel Mariano de Barros -pelo menos, é o que está escrito na correspondência bancária que recebo aqui em casa, todo mês. É estranho, pois moro em Cotia e você, segundo sugerem os envelopes, em Duque de Caxias. Mais estranho ainda é que aí em Duque de Caxias haja uma rua com o mesmo nome da minha, uma casa com o mesmo número, num bairro quase homônimo: Residencial Par, o seu, Residencial Park, o meu -mas se o correio não repara nem que vivemos em cidades diferentes, imagina se vai notar esse minúsculo K, perdido na vastidão do Brasil?
Pois eu reparo, todo mês. Pego a correspondência, vejo seu nome no envelope, penso "ih, carta pro Gesiel, de novo..." e digo a mim mesmo: de hoje não passa! Vou ligar pro banco, avisar do equívoco, resolver a situação -mas sou um fraco, Gesiel. Quantas vezes não digo que vou começar uma natação, um romance, abrir uma previdência privada? Pobres de minhas artérias, de minha produção, de minha velhice. Pobre de você, cujas cartas vão parar na fruteira da sala, uma fruteira que nunca viu mangas ou carambolas e vive abarrotada de folhetos de dedetizadoras, cardápios de pizzarias, clipes, tampas de Bic e dois anos de seus -suponho, pois nunca abri- extratos bancários.
Dois anos que sofro um pouquinho, toda noite, antes de dormir, pensando em você aí, no Residencial Par, em Duque de Caxias, brigando com o banco, pelo telefone. "O mais importante e bonito do mundo", contudo, como disse um amigo, outro dia, citando Guimarães Rosa, "é que as pessoas ainda não foram terminadas. (...) Afinam ou desafinam". Pois, semana passada, resolvi afinar-me um pouquinho. Tive um desses surtos civilizatórios: arrumei gavetas, mandei fazer barra nas calças, chamei o homem pra ver a infiltração do banheiro, peguei suas cartas na fruteira e, finalmente, liguei para o banco.
Sabe o que me disseram? Que para regularizar a situação, só com o seu CPF. "Moça, como eu vou ter o CPF do Gesiel?! Eu não conheço o Gesiel! Vocês conhecem! Ele tem conta aí: Gesiel Mariano de Barros, é só conferir!" Ela resmungou, disse que ia ver o que dava para fazer, mas pelo jeito, não viu: ontem chegou mais uma de suas cartas, só me restando, portanto, escrever esta crônica e torcer para que antes de forrar obra ou cobrir defunto, ela passe por você.
Vamos torcer. Ah, e se por acaso estiverem chegando aí cartas para um certo Antonio, favor mandar para seu mesmo endereço, só que em Cotia e colocando um K depois do Par. Sem pressa: não sei como está sua situação bancária, mas com este que vos escreve, pelo menos, você tem 24 meses de crédito. Abraço, Gesiel, e boa Páscoa.
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