Filme de Silvio Tendler exibido no festival É Tudo Verdade, que começa amanhã, inicia discussões sobre os 50 anos do golpe que derrubou João Goulart
Passados quase 30 anos, o documentário de Silvio Tendler é destaque na retrospectiva que o 18º festival É Tudo Verdade mostra a partir desta semana e que inicia as discussões sobre os 50 anos do golpe que derrubou João Goulart (1919-1976) em 1964.
Herdeiro político de Getúlio Vargas, Jango morreu em circunstâncias não esclarecidas, que serão investigadas pela Comissão da Verdade.
Há indícios de que ele tenha sido assassinado pela Operação Condor (ação conjunta das ditaduras da América do Sul), e a exumação de seus restos mortais, autorizada pela família, pode ser feita.
"Jango era o homem das reformas sociais, ele dividia, tinha um estigma forte", afirma Tendler, ao lembrar hoje os dilemas para a produção do filme, iniciada em 1981.
No ano anterior, ele tinha lançado "Os Anos JK", sobre Juscelino Kubitschek, e conhecido as pressões de militares sofridas pelo seu produtor, o empresário do setor naval Hélio Ferraz.
"JK era mais unanimidade, pegava bem na classe média, nos industriais. Se eu tinha tido dificuldades com JK, imagina com Jango?", diz o diretor. Mas o dinheiro apareceu. A primeira cota veio de Denize Goulart, filha de Jango. Ela fez interferências no filme? "Nenhuma", declara.
A segunda cota foi de um doador que pediu anonimato, mas que Tendler agora revela àFolha. Trata-se de Antônio Balbino (1912-1992), que foi governador da Bahia e ministro nos governos Vargas e Goulart.
"Ele era um advogado muito rico. Quando assinou o cheque, me disse: 'Estou dando esse dinheiro em homenagem ao doutor Getúlio'", conta o cineasta.
Para fechar as contas, entraram o empresário Ferraz e os artistas e técnicos envolvidos no trabalho. Em valores de hoje, Tendler calcula que a fita tenha custado cerca de R$ 200 mil.
"Ninguém fez o filme para ganhar dinheiro. Ele nasceu da paixão", diz. Mas "Jango" acabou dando "muito dinheiro, se pagou em um mês ou dois. Estávamos com 17 cópias pelo país inteiro. Era o filme das Diretas", recorda.
Tendler faz trilogia sobre ditadura e ataca Ancine
'Tenho um compromisso ideológico e cultural com o que faço', diz diretor
Filmes tratarão da resistência pós-64 por advogados e militares e do exílio do "Poema Sujo", de Ferreira Gullar
Nesta entrevista, ele revela mais bastidores da produção de "Jango" e ataca a atual gestão da Agência Nacional do Cinema: "É um lixo", dispara. A seguir, trechos:
É a maior bilheteria do cinema político brasileiro. Sempre soube que foi de 1 milhão de espectadores. A Ancine diz que foi menos, 500 mil.
Ausências no filme
Duas pessoas foram muito paparicadas para fazerem parte de "Jango" e não quiseram dar entrevista: Darcy Ribeiro e Miguel Arraes. Darcy tinha uma birra comigo por conta de "JK". Ele se sentiu censurado, magoado. Arraes foi o mais paparicado. Tenho uma especulação sobre a razão da negativa: ele não se enquadrava muito com o Jango.
General Antônio Muricy
Era o homem operacional do Castelo Branco. Houve um "namoro" com Muricy, no estilo Arraes, mas com final feliz. A filha dele, que era minha aluna na PUC, me levou para conhecê-lo. Ele não queria dar entrevista, mas topou.
Falhas e acertos
Tenho lacunas em "Jango". Foi um equívoco não ouvir o Waldir Pires, o Doutel de Andrade e o Almino Afonso. Do ponto de vista das entrevistas, o filme está bem equilibrado.
Censura
"Jango" empacou na censura. Uma censora deu o conselho: "botem a boca no trombone, senão esse filme não vai ser liberado nunquinha". Fizemos uma sessão a portas fechadas para toda a imprensa, que comprou a briga. O filme chegou a Brasília liberado.
Festival de Gramado
Armaram todo um esquema para eu não ganhar o festival ["Jango" ganhou prêmio especial do júri e o de melhor filme pelo júri popular em 1984]. Mas o tiro saiu pela culatra, porque vieram as Diretas-Já.
Projetos em andamento
Estou fazendo uma trilogia para discutir o pós-64, a resistência. O primeiro é sobre os advogados contra a ditadura. O segundo é a respeito dos militares pela democracia. O terceiro é "Há Muitas Noites na Noite", sobre o exílio, sobre o "Poema Sujo", de Ferreira Gullar.
Ancine
A Ancine virou uma burocracia para moer cineastas. Esse terceiro mandato [do Manoel Rangel] é um casuísmo horroroso. Minha geração, que brigou contra senadores biônicos, tem de conviver com o terceiro mandato biônico. Rangel representa a política do cinemão. Hoje você tem uma agência reguladora que é um lixo. Foi feito um manifesto [pró-Rangel] com mais de 50 cineastas. Já imaginou nomear para a Anatel um presidente apoiado por Oi, TIM, Claro, Vivo? É uma vergonha.
Diversão no Brasil
Público fora de cinema não contabiliza para a Ancine. O cinema foi sequestrado pelo cinemão. O cinema está em 9% do território e 99% das salas estão em shoppings. No interior não tem sala de cinema, de teatro, nada para se divertir. Diversão é fumar crack e ver TV.
Filme político
Não se vai a shopping comprar tênis de marca, comer fast food e ver filme político. O espaço para ele são o cineclube, a laje, a escola, as comunidades. E esse público não é contabilizado. Interessa ao esquema do cinemão dizer que nós fracassamos, que as pessoas não querem assistir a esse tipo de filme. É mentira.
"Poema Sujo"
Não preciso de licença do Manoel Rangel para criar. Ele fez tudo para que o "Poema Sujo" não acontecesse. Não digo ele, mas a Ancine. O parecerista da Ancine, que é anônimo, escreveu: "'Poema Sujo' é, no máximo, para passar em TV a cabo fechada, não é para cinema". É um preconceito contra o povo achar que o povo não gosta de poesia. Fui barrado. Os pareceristas trabalham encapuzados, como nos velhos tempos do DOI-Codi. Vamos tirar os capuzes! O cara tem que assinar o que escreve.
Ser documentarista
O documentarista não faz filmes; faz um único filme ao longo da vida; cada filme é continuação do outro. Tenho um compromisso ideológico e cultural com o que faço. Sou muito patrulhado à esquerda e à direita. Por isso sou respeitado por ambos, porque sabem que sou independente. Imparcial só é câmera desligada. Ligou a câmera, não é mais imparcial. A imparcialidade é uma mentira. Mostro, nos meus filmes, um ponto de vista documentado.
Trajetória
Fui muito respeitado nos anos 1980. Os 1990 foram anos de crises, sofrimento, isolamento. Nos 2000 meus alunos começaram a dizer que a temática política estava fora de moda. Nada como o tempo e a paciência: agora, voltei a ser respeitado. Não mudei de ideia para agradar ninguém.
FRASES
"A Ancine virou uma burocracia para moer cineastas. Esse terceiro mandato [do Manoel Rangel] é um casuísmo horroroso"
"Rangel representa a politica do cinemão."
"Veio um manifesto [de apoio ao terceiro mandato de Manoel Rangel] assinado por mais de 50 cineastas. Já imaginou nomear para a Anatel um presidente apoiado por Oi, TIM, Claro, Vivo? É uma vergonha"
SILVIO TENDLER
diretor
diretor
Propaganda exortou ações anti-Jango
DE SÃO PAULOFinanciado pelos Estados Unidos e por empresas nacionais e estrangeiras, o Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) foi criado em novembro de 1961, pouco mais de dois meses após a tensa posse de João Goulart.Era apresentado como um centro de debates, mas sua tarefa era organizar a oposição ao governo do petebista, coordenando articulações políticas e fazendo propaganda contra o presidente.
Quem dissecou os meandros do Ipes foi o historiador René Armand Dreifuss (1945-2003). Em sua obra "1964, a Conquista do Estado" (Vozes, 2008), ele descreve em minúcias as atividades do grupo, suas ramificações nas organizações empresariais, nas Forças Armadas e no Congresso Nacional.
Abundam listas de participantes ilustres, como o empresário Henning Boilesen e o escritor Rubem Fonseca, apresentado como responsável pela área editorial.
Dreifuss contabiliza, por exemplo, 297 corporações americanas no apoio financeiro ao instituto.
Junto com o Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática, criado no final dos anos 1950 e apontado como braço da CIA), o Ipes fazia parte do complexo que se tornara "o verdadeiro partido da burguesia e seu Estado-Maior para a ação ideológica, política e militar", avalia René Dreifuss.
É nesse contexto que devem ser entendidos os sete curtas que o É Tudo Verdade leva aos cinemas.
São fitas de propaganda contra o governo Goulart. Têm a assinatura do fotógrafo e cineasta francês Jean Manzon (1915-1990), que depois faria produções favoráveis ao regime militar.
Em preto e branco, mostram cenas de fábricas e escolas ordenadas e disciplinadas. Em contraste, pobreza e protestos.
Apesar de afirmar buscar "o equilíbrio", os filmes descambam para a agitação pura e simples. Atacam "a desordem", a "economia estrangulada", "a demagogia e a agitação social", o "descalabro administrativo".
As peças alertam contra "a ameaça do comunismo" e exigem ação. Pedem que as elites não sejam omissas. Não pregaram ao vento.
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