domingo, 30 de junho de 2013

O tema do sacrifício na obra de Bertolt Brecht - TERCIO REDONDO

folha de são paulo
RESUMO "A Bíblia", primeira peça que Brecht (1898-1956) escreveu, há cem anos, se centra no sacrifício, tema que o dramaturgo revisitaria ao longo de sua obra. Da mesma forma, as narrativas bíblicas, assimiladas pela linguagem comum da Alemanha pós-Lutero, seriam ferramenta essencial para boa parte da obra do autor.
*
"A Bíblia" (Die Bibel) é a primeira peça de Brecht, escrita em 1913, quando ele contava 15 anos e assinava seus textos como Bertold Eugen. Foi publicada em janeiro do ano seguinte na revista "Die Ernte" (A colheita), fundada e editada por ele e por amigos da escola.
O desenvolvimento dramático da peça é bastante convencional e ainda está muito distante dos experimentos que no final da década de 1920 levaram o autor às primeiras realizações em torno da ideia de um teatro épico.
À época, o tema da guerra e do sacrifício também não constituía novidade; na Alemanha, a propaganda nacionalista e militarista se desenvolvia de maneira eficaz e se dedicava com empenho ao elogio da morte heroica no campo de batalha. Como se sabe, iniciada a Primeira Guerra Mundial (1914-18), a juventude alemã apresentou-se em massa para o alistamento voluntário que, no entanto, pouco tempo depois assumiria caráter compulsório e destituído de glória.
Na peça de Brecht, uma cidade holandesa e protestante é sitiada por tropas católicas e está prestes a ser invadida.
Zé Carlos Barreta/Folhapress
Tela de Marcelo Comparini
Tela de Marcelo Comparini
A salvação depende de duas condições impostas pelo inimigo: a conversão de seus habitantes à fé católico-romana e o "sacrifício" de uma jovem, que teria de se entregar por uma noite ao general das forças que fazem o cerco.
A vítima requerida é a filha do alcaide, a qual, na cena de abertura, está em casa junto do velho avô, que lê trechos da Bíblia.
O pai e o irmão da moça são os encarregados de trazer as más notícias e instá-la ao sacrifício, que pode salvar milhares de pessoas.
Mas o ancião, aferrado à ideia de perseverar na fé e salvar a alma -mais importante que "mil corpos"-, exorta-a a ficar e contar apenas com o socorro divino.
SACRIFÍCIO
O tema do sacrifício reaparecerá mais tarde na obra de Brecht. Será questão central, por exemplo, em "Aquele que Diz Sim" ("Der Jasager"), a peça didática de 1930, em que um jovem, impossibilitado de seguir adiante numa viagem em busca de socorro para a gente de seu povoado, é confrontado com a possibilidade de ser sacrificado a fim de que seus companheiros possam continuar o difícil caminho.
"Aquele que Diz Não" ("Der Neinsager"), texto escrito logo em seguida, configura uma reelaboração da mesma fábula, com desfecho distinto. Em "A Medida" ("Die Maßnahme"), também da mesma época, o voluntarismo de um jovem revolucionário põe em risco o trabalho e a vida de seus companheiros. Depois de falhar nas diversas missões que lhe são confiadas, ele tem de encarar a drástica solução que seu grupo lhe determina: a morte.
É muito provável que "Judith", a tragédia de Hebbel, tenha sido a fonte primária de inspiração para "A Bíblia". No Velho Testamento a heroína israelita salva seu povo, igualmente sitiado por adversários poderosos. Contudo ela não é vítima, e sim algoz de Holofernes, o general das tropas de Nabucodonosor.
Hebbel confere-lhe um destino diverso, na medida em que ela, para garantir a vitória de seu povo, sacrifica a castidade.
A despeito da divergência ulterior de Brecht em relação às peças de Hebbel, este deve tê-lo impressionado pela caracterização complexa da situação-limite: há decisões que não podem ser balizadas por um código moral herdado a uma tradição petrificada; a conjuntura cobra mais que obediência abstrata a uma lei que caduca diante da realidade concreta.
Assim a heroína de Hebbel ignora a advertência da autoridade religiosa e de sua própria consciência para fazer prevalecer o bem maior que é a salvação da cidade.
Em "A Bíblia", Brecht introduz a questão do sacrifício no cenário das guerras entre católicos e protestantes, mas promove um deslocamento fundamental em sua perspectiva: a ideia religiosa da responsabilidade individual pela salvação da alma é confrontada com a exigência de compromisso social diante de um cenário de catástrofe iminente.
No discurso do pai e do irmão, a fé não é mais objeto de consideração; a urgência da hora exige uma solução que transcende o credo religioso.
Além disso a segunda cena deixa clara a alienação do avô e da jovem, até então poupados das notícias sobre a morte que vitima sobretudo os cidadãos mais pobres, privados de alimento.
O discurso do velho, praticamente reduzido à citação de versículos bíblicos, revela-se contraditório. Folheando aleatoriamente as páginas do texto sagrado, ele profere casualmente a exortação evangélica à compaixão: "Eu porém vos digo, servi a vosso próximo! Reparti o pão com o faminto e apiedai-vos dos que têm necessidade".
Na preleção do avô patenteia-se a dissociação entre o dogma e a materialização de um comportamento socialmente responsável, que as figuras do pai e do irmão apontam como dever humanitário.
Note-se que o motivo do sacrifício será alvo da reflexão brechtiana ao longo de toda a vida. O autor tinha plena consciência de que, além de conduzir eventualmente à morte, a luta ferrenha contra a sociedade desigual acabava por produzir equívocos e situações de extrema rudeza.
No poema "Aos que Virão Depois de Nós" ("An die Nachgeborenen"), pranteia-se a perda da ternura e da gentileza, improváveis ou mesmo impossíveis em meio a tanta violência.
Duas de suas estrofes assumem o tom elegíaco que caracterizará também outros poemas do Brecht exilado, empenhado na luta contra o avanço nazifascista:
Vós, que ireis emergir da
[torrente
À qual sucumbimos,
Considerai,
Quando falardes de nossas
[fraquezas,
Os tempos sombrios
De que fostes poupados.
[...]
Contudo, sabemos:
Também o ódio à vilania
Desfigura as feições.
Também a ira contra a injustiça
Torna a voz roufenha. Ah, nós
Que queríamos preparar
[o terreno para a gentileza
Não pudemos, nós mesmos,
[ser gentis.
Nesse caso o exercício da autocrítica é também ele o reconhecimento de enormes (evitáveis?) sacrifícios e de submissão antecipada ao tribunal da história.
FERRAMENTA
A familiaridade de Brecht com o Velho e o Novo Testamento constituirá ferramenta literária e dramatúrgica importante para boa parte de sua obra. Isso se dá fundamentalmente porque na Alemanha, desde a tradução de Lutero, o texto bíblico integrava um vasto repertório de histórias de conhecimento comum.
De certa maneira, Brecht compartilha a percepção de Lutero com relação à linguagem.
Depois de verter o texto bíblico para o vernáculo e ser duramente criticado por falta de "literalidade", o reformador protestante saiu em defesa de suas opções lexicais e sintáticas, dizendo não ser possível buscar no latim, a língua dos eruditos, o modo genuíno da expressão popular: "É preciso perguntar [como se diz alguma coisa] à mãe de família em sua casa, às crianças na rua e ao homem simples no mercado, olhando para sua boca e vendo o modo como falam [...]; assim eles compreenderão a tradução e perceberão que se fala com eles em alemão".
Não terá sido outro o esforço de Bertolt Brecht ao constituir a fala de inúmeras de suas personagens no teatro, na prosa e mesmo na lírica, ela também marcadamente narrativa.
TERCIO REDONDO é é ensaísta, tradutor e professor de literatura na USP.

Nenhum comentário:

Postar um comentário