Desmoralização a jato
Uso de aviões da FAB por presidentes da Câmara e do Senado expõe alheamento aos clamores por ética e austeridade na esfera pública
Quando chegavam ao auge as manifestações que se difundiram pelo país, no mês passado, circulou pela internet uma lista de reivindicações com vistas a limitar os privilégios dos congressistas.Pleiteava-se, entre outras medidas, que deputados e senadores se submetessem às mesmas leis válidas para os cidadãos comuns, que fossem remunerados apenas durante a vigência dos mandatos e que seus planos de aposentadoria seguissem as regras aplicáveis aos trabalhadores do setor privado.
Sem debater o mérito das propostas, não há dúvida de que refletem o desgaste da imagem do Congresso perante a população.
Não obstante, as mais altas lideranças parlamentares do país parecem alheias à percepção generalizada de que os políticos se beneficiam de um regime de sinecuras cujas regras eles próprios se encarregam de formular.
Prova disso é que, em plena temporada de protestos, o presidente do Senado Federal, Renan Calheiros (PMDB-AL), e seu colega da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), solicitaram serviços de jatos da Força Aérea Brasileira (FAB) para deslocamentos com finalidades recreativas.
Calheiros requisitou um avião para viajar com sua mulher, de Maceió (AL) a Porto Seguro (BA), com o objetivo de prestigiar a festa matrimonial da filha do líder do governo no Senado.
Já Henrique Alves requereu a aeronave para levá-lo de Natal (RN) ao Rio --em companhia de sua noiva, de um filho, de amigos e de enteados-- para assistir à partida final da Copa das Confederações.
Registre-se que casos análogos vieram à tona nos últimos anos, envolvendo também autoridades ligadas aos Poderes Executivo e Judiciário.
O decreto 4.244/2002, que disciplina o assunto, permite o uso de aviões da FAB por autoridades quando houver "motivo de segurança e emergência médica, em viagens a serviço e deslocamentos para o local de residência".
Calheiros tentou justificar-se considerando que cumpria "um compromisso como presidente do Senado". Alves alegou ter um encontro marcado com o prefeito do Rio --inexistente na agenda oficial divulgada por ambos.
O presidente da Câmara decidiu ressarcir a União com R$ 9.700, valor que seria pago pelos convidados caso usassem bilhetes regulares. Tratando-se, porém, de jato fretado, o preço de mercado seria de pelo menos R$ 158 mil.
Parafraseando o bordão das manifestações, "não é só pelos 20 centavos". É pela urgência de reabilitar padrões éticos na esfera pública e avaliar a pertinência de seus custos --num país em que o parlamentar já é o segundo mais caro do mundo.
EDITORIAIS
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Desrespeito europeu
Foi uma grave quebra das boas práticas diplomáticas a interdição do espaço aéreo imposta por alguns países europeus ao avião de Evo Morales, presidente da Bolívia.
Morales regressava de Moscou a seu país, após ter participado de uma cúpula de gás. Ele afirma que seu avião foi impedido de sobrevoar Itália, França, Espanha e Portugal.
Surpreendido em pleno voo, teve de retornar a Viena, na Áustria, onde permaneceu por 13 horas, até que fosse debelada a suspeita de que estivesse a bordo da aeronave o técnico de informática americano Edward Snowden, acusado de espionagem pelo governo dos EUA.
Por se tratar de avião em missão de Estado, a legislação internacional estabelece a necessidade de autorização prévia de sobrevoo. Na prática, essa permissão se dá de forma expedita e quase automática --são raríssimos os casos semelhantes ao que ocorreu com o mandatário boliviano.
Segundo Morales, os quatro países europeus agiram sob pressão dos Estados Unidos. Washington não comentou o episódio, mas o presidente Barack Obama tem afirmado que haverá represálias a qualquer país que aceite conceder asilo a Snowden.
Verdade que Morales havia se manifestado de maneira favorável em relação ao delator. Ainda em Moscou, ao ser questionado por jornalistas se concederia asilo ao fugitivo americano, disse: "Sim, por que não?".
Ainda que favorecida pelo próprio presidente boliviano, a suspeita de que Snowden se dirigia à Bolívia não justifica o tratamento humilhante dispensado ao chefe de Estado de uma nação integrada à comunidade internacional.
Com razão, a maioria dos países sul-americanos condenou duramente o incidente. Um dos últimos a fazê-lo, o governo Dilma Rousseff afirmou que a atitude contra Morales atinge "toda a América Latina" e afeta "o diálogo entre os dois continentes".
Bom sinal que a França tenha se desculpado com Morales. Portugal limitou-se a dizer que o veto ocorreu por considerações técnicas, e a Espanha negou a proibição. A Itália não havia se pronunciado até ontem à noite.
Para superar o estremecimento diplomático, uma explicação transparente dos países europeus se faz necessária, sobretudo no que respeita à suposta participação de Washington. Sem isso, sairá reforçada a tese de que os serviços de inteligência americanos agem muito além dos limites aceitáveis.
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