A era dos extremos
No Brasil, usar plebiscitos como base para todas as decisões resultaria em criacionismo nas escolas
Numa ótima entrevista ao "Roda Viva" de 10/6, dias antes da onda de protestos começar, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha falou das esferas centrais na análise da vida nas cidades: a sabedoria --técnica, científica-- e a política. Na primeira, quase tudo é possível. A engenharia moderna é capaz de cavar túneis, construir pontes, proteger arranha-céus contra terremotos, fazer o gás sair da bica do fogão.
Já a segunda é um problema. Se São Paulo tivesse feito a escolha política por transporte público nos anos 1930, época em que Prestes Maia começou a modelar uma cidade voltada para avenidas e carros, hoje seria mais fácil enfrentar dificuldades que parecem, mas não são técnicas --do espaço para trens e corredores de ônibus à vazão das águas nas enchentes.
Muito se discute os desdobramentos da crise atual. O caminho escolhido até agora por governos e Congresso é o da generalidade. Nada a opor: sem ela, dificilmente ocorrem mudanças necessárias. Se a política estiver certa, a técnica --campo do específico e possível, sem o qual nada pode ser concretizado-- se adapta.
Torço para que seja o caso do Estado de São Paulo, que suspendeu aumentos nos pedágios, ou dos royalties do petróleo para a educação, que não seriam aprovados sem o barulho das ruas.
Ocorre que em algum ponto a especificidade precisa ser ouvida. Subsidiar pedágio é tanto um bem-vindo barateamento de fretes quanto (mais) um incentivo ao transporte individual. E o problema da educação não se resume a verbas: capacitar professores e reformar o currículo são pautas intrincadas, que dispensam slogans de passeata.
Indo além nos exemplos, não é difícil a generalidade virar delírio. Quando custos, prazos e viabilidade jurídica e administrativa deixam de ser minimamente considerados, surgem as isenções ruinosas que pipocam pelo país ou a Constituinte sepultada em 24 horas.
Uma das dificuldades de frear a demagogia nasce justamente de um dos motores dos protestos. Os impasses da democracia contemporânea, apontados por pensadores como Ivan Krastev e Manuel Castells, não são recentes.
Também não se resumem ao debate sobre partidos e eleições: a tão citada ideia de mediação, base do atual modelo representativo, vem sendo posta em cheque nas artes (vozes críticas perderam importância), na história (cuja narrativa foi tomada por grupos antes alijados pelo discurso oficial), na relação com a imprensa (vista por muitos como poder em si, mais do que como intermediário entre o público e o grande poder).
A cultura antiautoridade, que se torna hegemônica nos anos 60 e ganha na internet sua plataforma perfeita --por ser acessível, interativa e horizontal--, é responsável por alguns dos maiores avanços do Ocidente, dos quais os direitos civis são o caso mais visível.
Por outro lado, ela facilmente se transforma numa cultura antiespecialista. Que vem a ser uma cultura antisaber. É outra característica ambígua da democracia: por ser um regime de maiorias, suas manifestações e demandas são as do pensamento médio, ou seja, leigo. Quando não obscurantista: no Brasil, ao contrário do que pensam radicais de bistrô e assemelhados, basear todas as decisões em plebiscitos resultaria --para começar-- em criacionismo nas escolas.
É para proteger minorias, planejamento estratégico e demandas complexas que existem as instâncias intermediárias, idealmente baseadas no acúmulo de conhecimento científico, histórico e social. O representante típico delas tem tido pouca voz: com seu tom de bom aluno, suas planilhas áridas, sua racionalidade sem carisma, ele está perdendo a batalha --por cansaço ou intimidação-- para a militância numerosa, barulhenta e apaixonada.
Nenhum sistema resiste privilegiando apenas a técnica ou a política. A ditadura brasileira foi o paraíso de engenheiros e economistas, que puderam implantar seus projetos sem oposição. Já Pol Pot matava quem usasse óculos no Camboja, pois números e lógica nunca são engajados o bastante.
Há um momento em que é preciso sair dos extremos, mesmo os proporcionalmente menos graves de uma democracia que, como a brasileira, bem ou mal funciona. Até porque um lado não vive sem o outro. Técnica sem política é o caminho para o elitismo autoritário. Política sem técnica é um convite à bagunça paralisante.
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