A patriotada do grampo
A doutora Dilma e seu chanceler reagiram com indignação à revelação dos repórteres Glenn Greenwald, Roberto Kaz e José Casado de que a National Security Agency grampeia as comunicações nacionais e manteve um orelhão em Brasília. Essa contrariedade terá o mesmo peso da reação europeia às denúncias de Edward Snowden, o funcionário da Booz Allen que trabalhava no mundo das escutas: zero.
No século passado, um secretário de Estado americano mandou fechar o serviço de quebra dos códigos de outras nações dizendo que "um cavalheiro não lê a correspondência de outro". Era o tempo em que o presidente Franklin Roosevelt escondia um gravador em sua sala. Tinha o tamanho de um frigobar. Em 1960, o mundo viveu uma crise quando a União Soviética derrubou um avião U-2 que voava a 20 quilômetros de altura, fotografando-lhe o território. Hoje U-2 é uma banda, todas as gravações de Roosevelt, John Kennedy e Richard Nixon cabem num iPod e o Google Maps fotografa o mundo.
Os americanos grampeiam e continuarão grampeando os outros, assim como fazem, com menos recursos, os ingleses, franceses e, sobretudo, os chineses. Esse aspecto tecnológico é irreversível. Pode-se negociar o compartilhamento de informações ou mesmo criar barreiras sempre vulneráveis, mas o governo brasileiro não fez o bê-a-bá, pois nem satélite próprio tem. Se os companheiros não sabiam que a NSA grampeia suas comunicações, nem jornal leem. Há alguns anos, a diplomacia canadense recusou-se a permitir que a Receita Federal examinasse um contêiner com equipamentos de comunicações que chegara à Alfandega do Rio. (O material voltou.)
Para os cidadãos americanos, ouvir os outros é o jogo jogado. Eles só se ofendem quando descobrem que, com o dinheiro dos seus impostos, o governo xereta suas vidas.
O desconforto provocado pelo poderio tecnológico é secundário diante de um problema maior, agravado pelo companheiro Obama. A comunidade de inteligência americana, capturada pela privataria da porta giratória que recicla militares, funcionários da NSA e da CIA, transformando-os em empreiteiros, está desmoralizando seu serviço diplomático.
Grampeando o mundo, os interesses americanos fecharam os céus da Europa para o avião do presidente boliviano Evo Morales. Foi um ato de prepotência vitoriana a serviço da estupidez. Ao contrário do que se supunha, Edward Snowden não estava a bordo. Resultado: a arrogância facilitou a concessão do asilo ao americano pelo governo da Venezuela. A NSA quer armazenar nos seus computadores uma memória superior à soma da capacidade de todos os discos existentes no mundo, mas nem ela nem a CIA sabiam quem estava no avião do boliviano.
No outro lado do balcão, a doutora Dilma levou quase 24 horas para reagir à truculência europeia contra Morales e só se manifestou quando seus colegas da Argentina, Equador e Venezuela já haviam protestado.
O Itamaraty pode estar interessado em polir a viagem de Estado que a doutora Dilma fará a Washington em outubro. Negar asilo a Snowden foi até boa ideia, mas demorar para perceber a ofensa à Bolívia foi um exagero. Como diria a doutora Dilma, no que se refere à estupefação diante dos grampos, o que há é puro teatrinho.
Elio Gaspari, nascido na Itália, veio ainda criança para o Brasil, onde fez sua carreira jornalística. Recebeu o prêmio de melhor ensaio da ABL em 2003 por "As Ilusões Armadas". Escreve às quartas-feiras e domingos na versão impressa de "Poder".
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