ENTREVISTA/ANTONIO GERALDO F. FERREIRA »
É preciso espernear
"Quero uma literatura que carregue a vida nos braços, mesmo que bufando"
Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 06/07/2013
Os
10 anos que Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira passou escrevendo – e
reescrevendo – As visitas que hoje estamos (Iluminuras) parecem ter
valido a pena, principalmente depois que o crítico Luiz Costa Lima
escreveu artigo elogiando o livro, considerado uma das revelações do
romance brasileiro contemporâneo. À pequena Arceburgo, no Sul de Minas,
onde o autor mora com a mulher, Ana Lúcia, não param de chegar convites
para palestras e feiras literárias. Embora envaidecido com o assédio
repentino – “pois seria hipocrisia negar isso”, confessa –, Antonio
Geraldo não se deixa levar pelo sucesso. Continua dividindo o dia a dia
com a família, cuidando de duas lojas e se dedicando à literatura. Tanto
que o novo romance, ainda sem data de publicação, já está a caminho.
Paulista
de Mococa e graduado em letras pela Universidade de São Paulo (USP),
você é comerciante em Arceburgo. Como a literatura entrou na sua vida?
A
literatura, como experiência resumida da aventura do ser humano, faz
parte de nossa essência, continuamente reelaborada. Quando um pai
conversa com o filho, cria o enredo que se cruza com os outros enredos
que o menino vai tecendo em seu cotidiano, num entrelaçamento
potencialmente infinito de possibilidades. A literatura não substitui a
existência, mas deve ser transbordante de vida. Meus avós conversavam
comigo, desde muito cedo, com a mesma atenção dispensada aos adultos.
Contavam seus dias, suas memórias, a expectativa do futuro... Não era
alfabetizado, e meu pai lia para mim verbetes de enciclopédia. Ele
parava e explicava o que eu não compreendia, e sua fala era texto,
também. Naquele papel, naquele livro, estava escrita a minha vida. Se
não se mostrar ao aluno, na escola; ao menino, nas ruas; ao filho, em
casa, que aquela folha cheia de letrinhas respira o mesmo ar de seu
mundo, a literatura dificilmente entrará em sua vida. Um professor não
pode, apenas, jogar um livro nas mãos do aluno e cobrar a leitura para
uma data qualquer. É preciso ler com ele, para ele, por ele. Pegar a sua
mão e mostrar que ele também está ali, como sujeito, naquele texto.
Comigo foi assim. É desse modo que ganhará fôlego para buscar, depois, o
próprio caminho como leitor.
Ter estudado letras o influenciou a escrever?
Penso
que sim. Mas a decisão de ser escritor não passa apenas pela
universidade. A maioria dos escritores não estudou letras. José
Saramago, por exemplo, tinha ensino médio, técnico. Mário de Andrade
falava que o erro é o farol que ilumina o caminho da verdade. O problema
mais sério, entretanto, pode ser colocado da seguinte maneira,
aproveitando o mote do escritor paulista: quando se apagam
sorrateiramente as luzes, o vozerio se transforma no perigoso burburinho
da barbárie... Cabe ao intelectual, então, berrar com mais força. É
preciso espernear. Escrever com o pavio curto. Não há outro caminho.
Procuro ser escritor dessa maneira. Quero uma literatura que carregue a
vida nos braços, mesmo que bufando, mesmo que pedindo ajuda. Por isso
escrevo também carregado ao colo das personagens a quem dou voz,
amparado nelas, empurrado por elas, escritor aos trancos, barrancos e
solavancos. Gosto de repetir: o leitor é uma espécie de coautor daquilo
que lê, sempre. A voz do escritor, portanto, mesmo no monólogo mais
autocentrado, deve ecoar o coro às vezes mudo das pessoas que o cercam.
Se vai permanecer, como obra, não importa. Não depende dele.
A decisão de trocar a agitada vida de São Paulo por Arceburgo teve a ver com a literatura?
Claro.
Outro dia recebi um e-mail divertido da professora Letícia Malard, da
Universidade Federal de Minas Gerais. Disse que gostou muito do livro. E
comentou que alguns amigos teciam hipóteses romanescas para o fato de o
sujeito aqui ter se mudado para Arceburgo. Alguns diziam que eu teria
passado num concurso público. Outros, que me casara com a filha de um
fazendeiro. Os últimos supunham que eu fosse rico. Dei a ela a seguinte
resposta, que reproduzo mais ou menos aqui: minha cidade natal, Mococa,
faz divisa de estado com Arceburgo. Estava lá, numa festa de São João, e
conheci Ana Lúcia, minha mulher. Depois abri uma loja, outra loja... E
fui pelejando. Estou pelejando. E lhe disse, por fim, que a conta
bancária que aparece na página 39 do meu livro é verdadeira e aceita
depósitos dizimistas dos crentes dessa perseguida religião a que
chamamos de literatura. Aqueles que quiserem contribuir com minha obra
não deixem de depositar, pelo amor da arte... Quanto ao tempo, é
verdade. O ritmo do interior é outro. Um sobrinho que mora em São Paulo,
certa feita, aqui em casa, olhou para o relógio e se espantou. Ainda
15h30? Em São Paulo, numa hora dessas, já seriam oito da noite...
Você
já disse que a influência de Ariano Suasssuna na sua obra é maior do
que se pode supor. Em que medida isso ocorre? Seus livros trazem também
uma pontinha de Guimarães Rosa?
Suassuna demonstra a
inevitabilidade de pensar o país em sua verdade social e histórica,
abarcando toda a sua extensão cultural. A permanência viva do romanceiro
popular do Nordeste indicou-me, há muito, uma perspectiva criadora
atenta aos tempos históricos entrelaçados numa sociedade de fronteiras
cambiantes. Guimarães Rosa, no caso, influencia todos os nossos
artistas. Não poderia ser diferente comigo. Explico-me. Para os
brasileiros, pelo menos, ele é um dos gigantes da literatura universal.
Influenciará, por isso mesmo, até um escritor que não goste dele.
Autores desse calibre se espraiam na cultura de um povo de tal maneira
que passam a constituir a própria realidade, condição inescapável para
qualquer sujeito que respire por estas bandas. Isso não significa que se
deva copiar Guimarães. O que acabo de dizer é justamente o contrário.
Um nanico pode até imitar os gestos do gigante, mas seu ato será, antes,
risível. Mesmo supondo que outro gigante imitasse o primeiro,
estaríamos ainda diante de mais grotesco arremedo, como se fosse
possível reproduzir no chão, com gestos idênticos, em tamanho natural, a
sombra sobreposta de uma sombra em sua sombra...
AS VISITAS QUE HOJE ESTAMOS
• De Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira
• Editora Iluminuras
• 446 páginas, R$ 53
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