A jornalista Daniela Arbex lança em BH
livro sobre atrocidades sofridas por pacientes do Hospital Colônia de
Barbacena. De 1930 a 1980, morreram 60 mil internos da instituição
Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 06/07/2013
“Senhor Deus dos desgraçados!/
Dizei-me vós, Senhor Deus!/ Se é loucura ... se é verdade/ Tanto horror
perante os céus...”. Esses versos do poema “O navio negreiro”, do poeta
baiano Antônio de Castro Alves (1847 –1871), bem poderiam ter sido
inspirados nas histórias de milhares de brasileiros deserdados que por
diversos motivos – alcoolismo, epilepsia, prostituição, homossexualismo e
perda da virgindade, entre outros “desvios” – foram diagnosticados como
doentes mentais e encarcerados no Hospital Colônia de Barbacena, de
onde a maioria nunca mais saiu.
Construído no início do século 20
no interior mineiro, calcula-se que naquele hospício morreram cerca de
60 mil pessoas entre 1930 e 1980. Elas viviam em condições degradantes,
comparadas às de campos de concentração nazistas.
Os corpos dos
pacientes, às vezes sem identidade e despidos de qualquer dignidade,
eram enterrados em valas comuns ou lucrativamente vendidos a faculdades
de medicina, entre elas a da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Quando o “mercado” saturava, cadáveres eram dissolvidos em ácido
lá mesmo no pátio do hospital, na frente dos internos. Assim, ossadas
podiam ser comercializadas.
Pacientes andavam nus, comiam em
cochos como animais e dormiam entre touceiras de capim, pois um médico
decidiu que assim seria melhor. Calcula-se que cerca de 16 internos
morriam por dia. Crianças se misturavam a adultos, mulheres eram
estupradas. Castigos físicos e choques eram a “terapia”. A expressão
“trem de doido”, atribuída a Guimarães Rosa, nasceu ali. Em 1933, o
escritor e médico morou em Barbacena, onde via chegarem vagões lotados
de pacientes da colônia. A cena está no conto “Soroco, sua mãe sua
filha”, publicado no livro Primeiras estórias, e lembra a forma como
nazistas conduziam judeus para os campos de concentração.
Em
1979, o psiquiatra italiano Franco Basaglia, pioneiro na luta
antimanicomial, visitou Barbacena. Sem meias palavras, declarou: “Estive
hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo
presenciei uma tragédia como essa”.
Toda essa história de
horror, cujas feridas não cicatrizaram – o Estado jamais veio a público
pedir desculpas aos sobreviventes e a suas famílias –, é contada de
forma emocionante em Holocausto brasileiro, livro que a jornalista
Daniela Arbex lança hoje, em Belo Horizonte. Repórter especial do jornal
Tribuna de Minas, ela conta que a ideia surgiu em 2009, durante uma
entrevista com o psiquiatra José Laerte, em Juiz de Fora. O médico lhe
mostrou o livro Colônia, publicado pelo governo de Minas, que trazia
fotos do Hospital Colônia de Barbacena feitas em 1961, por Luiz Alfredo,
para uma série de reportagens da revista O Cruzeiro.
“Fiquei
impactada quando deparei com aquelas imagens. E me perguntei,
estarrecida, por que nem eu nem ninguém da minha geração ignorava o que
ocorrera em Barbacena, tão perto de Juiz de Fora”, diz Daniela. Ela
decidiu escrever a respeito, mas de uma forma diferente: queria recontar
a história a partir do olhar dos sobreviventes da tragédia.
A
jornalista começou a visitar Barbacena, entrou em contato com
funcionários e ex-funcionários do hospital colônia. Para a pesquisa
foram fundamentais conversas com especialistas como o psiquiatra mineiro
Ronaldo Simões Coelho. No fim da década de 1970, quando chefiava o
Serviço Psiquiátrico da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais
(Fhemig), ele foi um dos primeiros médicos a ter coragem de denunciar o
que ocorria em Barbacena. Perdeu o emprego por isso.
“Entrevistei
também outro psiquiatra, Francisco Paes Barreto. Em 1966, no início da
ditadura militar, ele teve coragem de fazer a primeira denúncia pública
contra Barbacena. Por causa disso, acabou processado pelo Conselho
Regional de Medicina (CRM)”, informa Daniela.
Daniela fez
entrevistas com ex-pacientes, de quem ouviu histórias de arrepiar.
Antônio Gomes da Silva permaneceu calado por 21 dos 31 anos em que
passou internado, pois ninguém lhe perguntou se sabia falar. Outra
interna, depois de grávida, começou a passar fezes no corpo para que
ninguém se aproximasse dela ou maltratasse o bebê. Outras mulheres
fizeram como ela. Pouco adiantou, pois os recém-nascidos costumavam ser
arrancados dos braços das mães – assim como fizeram os militares durante
a ditadura argentina, nos anos 1970.
Atualmente, informa
Daniela Arbex, cerca de 170 pacientes continuam internados “como
crônicos” no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB). Mas a
instituição vive história diferente depois de ser transformada em
hospital regional, oferecendo várias especialidades médicas.
“No
entanto, por incrível que pareça, ainda sobrevivem no Brasil modelos de
segregação como o do antigo hospital colônia. Além disso, estamos às
voltas com a internação compulsória, que, na prática, pode ser a
reedição de abusos disfarçada de política pública”, adverte Daniela
Arbex.
Porões da loucura
Em 1979, o
repórter Hiram Firmino foi o segundo jornalista a ter acesso às
dependências internas do Hospital Colônia de Barbacena. Publicada no
Estado de Minas, a série Os porões da loucura, com fotos de Jane Faria,
chocou o Brasil, ganhou o Prêmio Esso e escreveu importante capítulo da
luta antimanicomial travada no país.
“Na realidade, Hiram foi o
grande porta-voz dos pacientes da colônia. A partir de suas reportagens,
os porões de Barbacena começaram a ser abertos”, explica Daniela Arbex.
O documentário Em nome da razão, de Helvécio Ratton, rodado naquele
mesmo ano, também chamou a atenção para as crueldades praticadas na
instituição mineira.
LANÇAMENTO
Holocausto brasileiro, genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil
. De Daniela Arbex
. Geração Editorial, 255 páginas
. Preço médio: R$ 39,90
. Lançamento hoje, a partir das 11h, no Café com Letras, Rua Antônio de Albuquerque, 781, Savassi.
. Informações: (31) 3225-9917
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