Estado de Minas - 06/07/2013
A
política não costuma fazer bem para os intelectuais. Quando saem do
terreno protegido da academia – ainda que seja cenário sujeito a vaidade
e disputas ferozes – costumam encontrar território mais inóspito.
Afinal, se poucos estão aptos a discutir ideias e conceitos, todos,
absolutamente todos, têm o que dizer da condução dos negócios públicos
numa democracia. Com Fernando Henrique Cardoso não foi diferente.
Depois
de carreira celebrada em universidades do Brasil e do exterior e à
frente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap, do qual
foi fundador e esteio por muitos anos, o sociólogo paulista assumiu
cadeira no Senado em 1983 e foi por duas vezes presidente da República,
com mandatos consecutivos de 1995 a 2002. Foi durante este período que
chegou a pedir que esquecessem o que havia escrito. A afirmação, que
tinha seu contexto, se tornou uma boutade e uma sentença.
Autor
de obra sociológica de destaque, que dá sequência à escola criada na
Universidade de São Paulo (USP), afeita tanto ao rigor conceitual quanto
à pesquisa de campo, Fernando Henrique Cardoso sempre foi um
intelectual em diálogo com a sociedade. Ao lado dos trabalhos
acadêmicos, colaborou sempre com publicações menos técnicas, revistas de
combate e mesmo na imprensa diária.
Vêm dessa inclinação para o
leitor menos especializado os textos reunidos em Pensadores que
inventaram o Brasil. São trabalhos de natureza variada, de prefácios a
conferências, passando por artigos para a revista Senhor Vogue, uma
publicação jornalística vendida em bancas. Em 18 artigos, editados entre
1978 e 2003 – três são inéditos –, Fernando Henrique trata da
contribuição de 10 pensadores que se alinham na tradição dos intérpretes
da formação do Brasil como nação: Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha,
Paulo Prado, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr.
Antonio Candido, Florestan Fernandes, Celso Furtado, Raymundo Faoro.
Fernando
Henrique Cardoso nunca foi humilde, nem em política nem em ciência. Não
se trata de julgamento moral, mas de um estilo. E desde o prefácio do
livro se percebe a tendência em se colocar ao lado dos nomes que vai
tratar em seus textos. Há os que foram seus professores, outros que eram
amigos e ainda alguns que participaram de suas bancas de defesa de
teses na USP. Muitos se tornaram colegas de academia.
Mesmo
aqueles com quem teve relações menos intensas (como Gilberto Freyre e
Raymundo Faoro), ou com os quais não teve contato em razão da distância
de época, são evocados em algumas semelhanças com sua preocupação
intelectual ou política. Mesmo sem precisar, FHC cita seu trabalho
Dependência e desenvolvimento na América Latina, escrito em parceria com
Enzo Falleto, como seguidor da tradição que vai passar a examinar nos
ensaios que integram o livro. A excessiva demonstração de personalidade,
no entanto, não atrapalha o livro. É possível dizer que talvez seja o
que mais atrai em Pensadores que inventaram o Brasil.
Desafio intelectual A
tradição dos intérpretes é forte na inteligência brasileira. A
necessidade de compreensão da origem e destino do país sempre desafiou
nossos melhores intelectuais – sociólogos, historiadores, romancistas,
economistas, juristas e filósofos. Quase uma obsessão, ela se origina de
uma questão básica – Quando o país se tornou uma nação? –,
desdobrando-se em seguida em outras perguntas igualmente definidoras dos
rumos que o país passa a seguir.
Há pensadores que pegam a
questão nacional e a analisam pelo seu revés (as dívidas que vão se
acumulando e impedindo o país de cumprir seu destino) e outros que
trilham o terreno das possibilidades (a originalidade da nossa
formação). A potência desses questionamentos e análises gerou um
conjunto de interpretações ricas e diversas. É nesse aspecto que a
contribuição de FHC é peculiar.
Além de conhecer em profundidade
os autores, seu arrojo em avaliar, julgar, destacar e apontar aspectos
muito particulares dá aos textos um sentido de futuro e diálogo, que
rompe com a pura celebração. Não se trata de um resumão, mas de um olhar
pessoal e muitas vezes criativo sobre a tradição dos intérpretes.
O
primeiro autor analisado é Joaquim Nabuco, objeto de três trabalhos:
uma síntese; o prefácio ao livro Balmaceda, que destaca a preocupação do
autor com a questão latino-americana; e uma conferência proferida na
Academia Brasileira de Letras, que trata de forma mais extensa da
contribuição política de Nabuco. Neste texto, há uma interpretação
original de Fernando Henrique sobre a intensidade pessoal da preocupação
de Nabuco com a questão abolicionista, que, aprofundando a análise do
próprio autor, identifica motivações de natureza psicanalítica no
projeto político de Joaquim Nabuco e em seu horror à escravidão. Sempre
crítico, FHC não deixa de destacar o caráter de dândi, “quase um
estroina”, do Nabuco adulto, em seu deslumbramento com a cultura
europeia.
Sobre Euclides da Cunha, em pequeno artigo que fez
parte da série publicada na Senhor Vogue, FHC, além de uma resenha de Os
sertões, que caracteriza como um grande mea culpa nacional, destaca o
olhar de sociólogo do autor. Ao lado do amplo painel científico e
político, está presente o cuidado em descrever o cotidiano do sertanejo,
seu mundo concreto, sua forma de crer, seu perfil psicológico, quase
como – bem antes da hora – “um sociólogo dos movimentos sociais”.
De
Paulo Prado, também objeto de artigo para a mesma revista, Fernando
Henrique destaca o método impressionista e seu encanto com o estilo, que
vale como estética, não como ciência, o que explicaria os equívocos do
autor sobre o futuro que invocava para nossa raça triste.
Sobre
Gilberto Freyre seria de se esperar de um sociólogo uspiano formado no
marxismo uma pancadaria geral, como sugere de certa forma José Murilo de
Carvalho no posfácio do livro. No entanto, em textos compreensivos e
simpáticos, FHC destaca as qualidade literárias do pernambucano (algo
que os sociólogos da USP nunca sequer arranharam) e a importância da
vida privada, muito antes de a história das mentalidades ter se tornado
moda na França e depois em todo o Ocidente acadêmico. O autor destaca
ainda que o mito da identidade brasileira criado por Freyre é tão
poderoso exatamente por ser o mito que todos nós gostaríamos de
acreditar que fosse verdade.
Teoria e prática Os
quatro autores que se seguem em Pensadores que inventaram o Brasil são
os mais próximos de Fernando Henrique, pela vinculação com a mesma
universidade em que se formou e pela matriz marxista que inspira suas
obras. De Florestan Fernandes, além de depoimento sobre a inauguração da
disciplina de sociologia na USP (com preocupação cientificista que
levava os professores a darem aulas de jaleco branco), destaca a sólida
formação teórica, que fez com que seu mestre nunca descambe para um
marxismo mecanicista.
Sobre Antonio Candido, chama atenção para o
estudo Os parceiros do Rio Bonito, sobre o mundo caipira paulista, que
ficou em segundo plano em razão do interesse posterior do autor com a
questão literária. Da obra de Caio Prado Jr., FHC destaca a conexão
percebida pelo autor entre a Colônia e a expansão do capitalismo
comercial. Em outras palavras, Caio Prado tem a atualidade de sua obra
sobre o período defendida pela capacidade de perceber a articulação
entre interesses externos (da metrópole) e a exploração interna. Para o
sociólogo, o interesse pela geografia permitiu a Caio Prado ir além dos
simplismos e propor uma interpretação “colada à realidade”.
O
artigo sobre Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, é o mais
singelo do livro e apenas sintetiza os argumentos do autor, destacando o
otimismo do autor às vésperas do Estado Novo varguista e dando o
sentido exato à sempre deturpada análise do “homem cordial”. Fernando
Henrique Cardoso, entretanto, faz questão de afirmar a importância da
obra de Sérgio em relação a Gilberto Freyre, sublinhando que se trata de
trabalho de pensador democrata, “coisa que Gilberto Freyre não era”.
FHC reconhece que politiza a interpretação de Raízes do Brasil, e faz
questão de lembrar do olhar do autor para a “revolução que viria de
baixo para cima” em função do processo de urbanização, que revelaria
novos protagonistas políticos. Otimismo com as massas tem tudo a ver com
Sérgio Buarque de Holanda (que 50 anos depois assinaria a ficha de
filiação nº 1 do Partido dos Trabalhadores), mas estaria bem distante do
projeto que impulsionaria o próprio sociólogo ao poder, representando a
bandeira classe média da social-democracia.
Os dois autores que
completam o livro, Celso Furtado e Raymundo Faoro, permitem a FHC
trazer seu diálogo para a contemporaneidade. Depois de analisar a
importância do pensamento histórico-econômico de Furtado e
histórico-político de Faoro, o sociólogo aponta elementos que merecem
ser mais bem trabalhados atualmente. Assim, tanto a inserção econômica
do país no mercado global como a mudança da forma de expressão do
patrimonialismo, mais que negar seus formuladores originais, desafiam a
dar continuidade ao seu pensamento.
Pensadores que inventaram o
Brasil é um livro que diz de uma tradição forte, mas também de seu
autor, que recusa o papel de professor ou mero comentador para puxar as
contribuições dos seus intérpretes favoritos para os problemas
contemporâneos. Pode-se não concordar com o estilo muitas vezes
autorreferente ou com as conclusões que apontam às vezes cabotinamente
para as atitudes do presidente e do intelectual FHC. Mas não seria
honesto discordar do método e da competência da leitura.
Pensadores que inventaram o Brasil
• De Fernando Henrique Cardoso
• Editora Companhia das Letras
• 304 páginas, R$ 39,50
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