sexta-feira, 12 de julho de 2013

Hesitação e ambiguidade - Maria Cristina Fernandes


Valor Econômico - 12/07/2013

Por Maria Cristina Fernandes | De Paraty

A roupa folgada, a calvície grisalha e a miopia miúda escondida pelos óculos de aros grossos dão a Milton Hatoum o disfarce de velho morador de Pinheiros, bairro da zona oeste de São Paulo onde chegou há oito anos. De seu apartamento até a edícula de um consultório verde-água, que aluga para trabalhar, caminha 200 metros. Dali escapole para as docerias da vizinhança. De vez em quando é surpreendido em seu anonimato. A jornalista Mariana Ramos, neta do escritor Graciliano Ramos, mora duas ruas abaixo. Teve um acesso de tietagem quando se descobriu vizinha de Hatoum.

O bairro onde prédios sofisticados, como a caixa envidraçada que abriga o Conselho Britânico, convivem com velhos sobrados e bodegas é cenário recorrente do livro de crônicas que acaba de lançar pela Companhia das Letras, "Um Solitário à Espreita".

Insone, Hatoum caminha cedo pelas ruas de Pinheiros. Cronista da velha guarda, não tem Facebook, mal usa e-mail e ainda escreve à mão. Transforma o motorista de táxi da rua Sumidouro, a louca que fala sozinha debruçada no portão de sua casa, e casais que discutem nos bares da vizinhança em personagens de suas crônicas, a maior parte delas publicadas em "O Estado de S. Paulo".

Faz 15 anos que Hatoum voltou a morar em São Paulo. Na cidade, casou-se, pela terceira vez, com Ruth, editora de livros que lhe deu dois filhos, João e Gabriel.

Foi na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, que o escritor manauara, nascido em 1952, desembarcou nos anos 70 vindo de tumultuada transição em Brasília. A capital federal, onde concluiu o ensino médio e conheceu os porões da repressão, é cenário de outras crônicas, assim como Paris, cidade onde também viveu nos anos 1980.

No prefácio de um dos livros de crônicas que Hatoum tem como referência, de Jurandir Ferreira ("Da Quieta Substância dos Seus Dias", IMS, 1991), o crítico Antonio Candido fala do cronista como aquele que recolhe "a duração da cidade graças à arqueologia da lembrança".

Por São Paulo, Brasília e Paris caminha seu próximo romance, que escreve há quatro anos, sem data para acabar. Desde a publicação de "Dois Irmãos" (2000), livro que já vendeu 150 mil exemplares e o colocou na condição de um dos ficcionistas contemporâneos mais lidos do país, Hatoum vive de literatura.

Ruma para ser o primeiro de seus livros não ambientado em Manaus, ainda que de lá, além do escritor, venha o narrador. São e não são a mesma pessoa. Em suas crônicas esboça histórias que estarão em seu romance e revisita outros que povoaram livros já publicados, mas se estrepa quem folheá-las em busca das digitais de sua ficção.

A avó Samara da crônica "Conversa com a Matriarca" esperava na varanda a chegada dos filhos da farra nas noites de sábado, assim como Zana, de "Dois Irmãos", mas nenhuma delas cabe nas avós nem em Naha, mãe do escritor. Uma única pessoa, diz, não dá um bom personagem. Tem que juntar um pedaço daqui outro de lá e inventar. Quase sempre. "A memória é o lugar da hesitação e da ambiguidade", diz, no texto sobre o professor que lhe apresentou a Graciliano Ramos.

Já causou dissabores entre familiares que se reconheceram em seus personagens. A mãe, que Hatoum descreve como uma matriarca católica fervorosa, lhe contava sem pudor as histórias que lhe chegavam de rincões e alcovas de Manaus e do Líbano, de onde provém 100% da ancestralidade do escritor. E nunca o perdoou por ter dado à empregada estuprada por um dos "Dois Irmãos", o nome de Domingas, recolhida em carne e osso e uma pitada de ficção das famílias endinheiradas de Manaus.

As mulheres do romancista são fogosas, autoritárias e possessivas. As do cronista, de tão vaidosas com os filhos, são capazes de lhes gerar traumas. Os homens são melancólicos, quase ausentes. Margeiam Rassan Hatoum, pai do escritor.

Naha e Rassan acharam uma loucura, mas não se opuseram quando o filho decidiu deixar Manaus, aos 15 anos. Queria estudar arquitetura, curso que não existia na cidade. Tivesse ficado, acabaria herdando a loja do pai, como Graciliano fora forçado a fazer 50 anos antes, quando seus irmãos morreram de peste bubônica e o pai o requisitou de volta a Palmeira dos Índios.

Hatoum guarda em casa ainda hoje o reclame publicitário que seu pai expunha na loja, "Preços sem competência", o mesmo que Sebastião, pai de Graciliano, mandava publicar em "O Índio", jornalzinho de Palmeira, anunciando as mercadorias sem concorrência de A Sincera.

Quando leu "Vidas Secas" pela primeira vez, no ginásio, alumbrou-se com a aspereza e a concisão de Graciliano. Mais de 40 anos depois, esse alumbramento o levou à conferência de abertura da Flip em que discorreu, ao longo de 40 minutos, sobre Paulo Honório, Luís da Silva e Fabiano. No texto, que a Companhia das Letras vai transformar em e-book, Hatoum fala do país que se modernizava aprofundando suas iniquidades como raiz do pessimismo de Graciliano.

Alagoas contrastava com a fartura úmida, mas igualmente desigual, da Amazônia onde cresceu Hatoum. Daí a prosa mais abundante e lírica. A infância do escritor foi passada numa Manaus cuja elite ainda provinha dos barões da borracha. Seus avós desembarcaram no Norte a partir da segunda metade do século XIX. Percorreram como mascates os rios Negro e Solimões, onde acabava o Brasil.

Os imigrantes nordestinos levados ao Acre e ao Amazonas pela corrida da borracha penhoravam-se nas vendas dos seringalistas. Regateavam sua escravidão nas barcas dos árabes que se abasteciam na rua 25 de Março, em São Paulo. Ao repertório de sua família, Hatoum somou os relatos de Euclides da Cunha sobre seringueiros, que "trabalham para escravizar-se".

Com a borracha, Manaus viveu um fausto precoce em uma época em que São Paulo ainda era uma província. Essa riqueza ainda não isolava pobres e ricos, como acabaria acontecendo mais tarde em toda parte.

Na escola pública, Hatoum conviveu com os manauaras pobres que vinham das cidades flutuantes, por onde andava com seu avô materno. Em uma crônica, conta a história de um colega negro que, ao acompanhá-lo na apresentação de sua banda, foi barrado em clube grã-fino. Quarenta anos depois, Hatoum o encontra no meio da rua em Manaus. O filho de lavadeira e estivador havia se doutorado em Chicago e se tornara advogado famoso na cidade.

Pararam para tomar um suco de graviola. À saída, passam na frente do clube, onde viram um velho sentado numa cadeirinha.

"Meu amigo parou e estendeu o cabo do guarda-chuva para o velho, que o apertou como se fosse a mão de um homem. Meu amigo riu:"

"- Toda quinta-feira ele cumprimenta o meu guarda-chuva. A primeira vez que joguei uma nota de dez reais no chão, ele se ofendeu e disse que não era mendigo. Mas depois vi que apanhou a nota e pôs no bolso. Outro dia me pediu vinte e eu dei."

"- Mas é um mendigo?"

"- 'É o cara que me barrou', disse o advogado. 'Não se lembra de mim'."

Quando Hatoum voltou à cidade nos anos 1980, depois de cinco anos vivendo entre Espanha e França, a Zona Franca já havia operado transformações na elite local.

Dos soluços de lucidez dessa elite surgiu o Tartarugão, estádio de futebol construído no fim dos anos 1960, com projeto do arquiteto mineiro Severiano Mário Porto.

O uso da madeira na proteção da chuva e do sol mostrava como aquele mineiro, radicado em Manaus por mais de 30 anos, havia compreendido o que era viver em uma cidade encravada na floresta amazônica.

Pois esse estádio foi derrubado para dar lugar a outra obra faraônica, com capacidade menor, como outras que foram construídas no país da Copa. Um ano antes das revoltas que varreram o país, Hatoum lhe dedicou a crônica "Estádios Novos, Misérias Antigas". Lá despejou, em tom de enfurecida premonição: "Quando a multidão enfurecida cobrar a dignidade que lhe foi roubada, digam com um cinismo vil que se trata de uma massa de baderneiros e terroristas".


Nenhum comentário:

Postar um comentário