sábado, 17 de agosto de 2013

Alfabeto de Deus - Gustavo Fonseca


Alfabeto de Deus

Livros de Marcus du Sautoy e Ian Stewart convidam a conhecer os encantos intelectuais da matemática, dando sequência à tradição inglesa de levar boas informações sobre a ciência dos números a leitores não especialistas
 

Gustavo Fonseca

Estado de Minas: 17/08/2013 


Numbers 1-0, escultura do artista americano Robert Indiana, atualmente instalada na região das instituições financeiras de Londres   (Chris Helgren/Reuters  )
Numbers 1-0, escultura do artista americano Robert Indiana, atualmente instalada na região das instituições financeiras de Londres


Uma velha piada entre matemáticos diz que, se até os 25 anos você não produziu nenhum trabalho relevante na área, é melhor começar a fazer outra coisa na vida. Uma verdade cruel que a história dessa disciplina não cansa de confirmar, ainda que muitos grandes matemáticos tenham desenvolvido suas melhores ideias em idade mais avançada. Menos previsível, porém, do que o declínio criativo dos matemáticos é a maneira como eles lidam com esse fato. Em alguns casos extremos, como o do inglês G. H. Hardy (1877-1947), mentor e parceiro intelectual do gênio indiano Ramanujan, o suicídio parece a única solução.

Tendo constatado em fins dos anos 1930 que não conseguia mais desenvolver boas ideias matemáticas, Hardy, já então um consagrado professor de Cambridge, decidiu se matar, mas sem sucesso. Com o intuito de ajudá-lo a recuperar o gosto pela vida, mesmo sem o brilho intelectual da juventude, seu amigo e biógrafo, C. P. Snow, o convenceu a escrever um livro detalhando como pensa um matemático. O resultado, o clássico A mathematician’s apology (Em defesa de um matemático), de 1940, deu início à tradição entre os matemáticos ingleses de popularizar seus trabalhos com livros acessíveis ao público leigo.

Nos últimos anos, dois matemáticos ingleses, herdeiros de Hardy, têm levado a tarefa adiante com grande aceitação não só no Reino Unido, mas em todo o mundo: Marcus du Sautoy, professor de Oxford e autor do best-seller A música dos números primos: a história de um problema não resolvido na matemática, e Ian Stewart, professor emérito da Universidade de Warwick e autor dos best-sellers Uma história da simetria na matemática, Mania de matemática e Aventuras matemáticas, entre outros sucessos. Prolíficos, os dois autores continuam nessa empreitada de explicar de modo mais acessível ideias matemáticas complexas e, felizmente para os leitores brasileiros, seus mais recentes lançamentos ganharam edição nacional: Os mistérios dos números: uma viagem pelos grandes enigmas da matemática (que até hoje ninguém foi capaz de resolver), do professor Du Sautoy, e 17 equações que mudaram o mundo, do professor Stewart, ambos pela Editora Zahar.

Du Sautoy divide seu livro em cinco capítulos, cada qual dedicado a um tema específico da matemática. No primeiro, “O estranho caso dos infinitos números primos”, retoma sua paixão pelos primos (aqueles números que só podem ser divididos por eles mesmos e por 1, como 2, 3, 5, 7, 11, 13...), os quais considera os mais importantes e enigmáticos da matemática. No segundo, “A história da forma imprecisa”, leva o leitor em uma viagem pelas formas da natureza: das bolhas aos flocos de neve, encerrando pela desafiadora questão sobre a forma do Universo. No terceiro, “O segredo da sequência vencedora”, Du Sautoy desvenda os mistérios da lógica e da probabilidade, dando dicas valiosas aos apaixonados por jogos de azar – do Banco Imobiliário até os jogos de cassino. No quarto, “O caso do código impossível de ser quebrado”, apresenta os raciocínios matemáticos que levaram à elaboração de códigos de segurança na internet e na rede bancária, por exemplo. Por fim, no quinto, “Em busca da predição do futuro”, explica como as equações matemáticas são oráculos perfeitos, prevendo todo tipo de fenômeno, inclusive aqueles de que nossa sobrevivência depende, como os relacionados à preservação do planeta.

Sendo o mais honesto possível, Du Sautoy deixa logo de lado na introdução os discursos de que a matemática é fácil e igualmente compreensível por todos e provoca o leitor: “A matemática que apresento varia do fácil ao difícil. Os problemas não resolvidos que concluem cada capítulo são tão difíceis que ninguém sabe como solucioná-los. Mas eu acredito firmemente que devemos apresentar as pessoas às grandes ideias da matemática. Nós nos entusiasmos quando deparamos com Shakespeare ou Steinbeck. A música ganha vida quando ouvimos Mozart ou Miles Davis pela primeira vez. Tocar Mozart é uma coisa difícil; Shakespeare pode ser desafiante, mesmo para um leigo experiente. Mas isso não significa que devemos reservar a obra desses grandes pensadores somente para os iniciados. Com a matemática ocorre o mesmo. Logo, se parte da matemática parecer difícil, aproveite o que puder e lembre-se da sensação de ler Shakespeare pela primeira vez”. E o que o leigo aproveita dos livros de Du Sautoy, bem como de seus programas de divulgação da matemática na BBC, muitos dos quais disponíveis no YouTube com legendas em português, sem dúvidas compensa o esforço exigido em certos momentos. Esforço esse de certa forma aliviado com a apresentação ao fim de cada capítulo de problemas que nem mesmo os grandes matemáticos conseguiram resolver ainda, à espera da mente criativa de algum (provavelmente) jovem apaixonado pelos mistérios dos números.

Difícil e bela

Ian Stewart, por sua vez, se propõe um desafio ainda maior: recontar boa parte da história perpassando 17 equações que, por razões as mais diversas, mudaram o mundo. A proposta, que a princípio pode parecer mais uma excentricidade de matemático, se revela uma jornada fascinante logo no primeiro capítulo, dedicado ao teorema de Pitágoras. Em seguida, Stewart salta ao século 17 para narrar a invenção dos logaritmos por John Napier e Henry Briggs, passando depois à disputa da autoria do cálculo entre os gigantes Isaac Newton e Gottfried W. Leibniz, no fim do mesmo século. Uma rixa que opôs ingleses e alemães por décadas e com a qual Stewart põe fim definitivamente ao mito dos matemáticos como homens plenos de racionalidade, alheios aos vícios e às paixões tão humanas.

Em consonância com o colega Du Sautoy, Ian Stewart se propõe a mostrar que, “felizmente, você não precisa ser um gênio para apreciar a beleza e a poesia de uma boa e significativa equação”. O que é verdade, mas deve-se dizer que sólidos conhecimentos em matemática e em física ajudam – e muito – a ler essa coletânea dedicada a equações. Afinal, por mais claro e acessível que seja um texto sobre assuntos como a segunda lei da termodinâmica, a teoria do caos e a equação de Schrödinger – fundamental para a mecânica quântica –, é pouco realista esperar que não iniciados tenham alto nível de compreensão. Stewart, porém, em momento algum deixa transparecer qualquer ilusão quanto a isso. Na verdade, subjacente a todo o livro, novamente em sintonia com Du Sautoy, está a ideia de que a dificuldade inicial não deveria ser um empecilho definitivo, servindo, isso sim, como motivador para um aprofundamento no universo científico.

Sua estratégia para fisgar o leitor, mais uma vez a mesma do colega Du Sautoy, é tão simples quanto eficaz: abordar temas de apelo popular, como música e televisão, carros de Fórmula 1 e computadores portáteis, ou aspectos de nosso cotidiano pós-moderno, como a navegação por satélite, os raios lasers e a internet. Com isso, Stewart abre ainda a possibilidade de o leitor escolher os capítulos dedicados aos seus interesses, sem necessariamente ter de seguir todos os capítulos do livro. Um apaixonado por astrofísica, por exemplo, pode se ater aos capítulos sobre a lei da gravitação de Newton e sobre a teoria da relatividade de Einstein, bem como um estudioso de economia pode ir direto ao último capítulo, sobre a equação de Black-Scholes, que visava a minimizar riscos no mercado financeiro, mas, provando-se não ser um oráculo perfeito, levou à falência em fins da década de 1990 o mais prestigiado fundo de investimentos dos Estados Unidos, o Long-Term Capital Management.

Como Hardy, tanto Du Sautoy quanto Stewart deixam transparecer em cada linha de seus textos o amor à matemática, essa busca humana milenar de enxergar padrões em um mundo aparentemente caótico. Assim, de certa maneira, ambos continuam o projeto iniciado com A mathematician’s apology não apenas de esclarecer ao público leigo o que realmente fazem os matemáticos, quais suas motivações, seus objetivos, mas também atrair mentes capazes de ler o alfabeto com que Deus escreveu o universo, segundo a famosa definição da matemática feita por Galileu Galilei. O próprio Du Sautoy, como revela em Os mistérios dos números, foi decisivamente influenciado pelo clássico de Hardy num período crucial de sua formação pessoal e intelectual: “Li esse livro quando estava no colégio, e foi uma das coisas que me fizeram decidir pela matemática”.

Sempre bem-humorados e simpáticos em suas palestras e programas de rádio ou de TV, Du Sautoy e Stewart também ajudam a desfazer o velho mito do matemático carrancudo, angustiado e obsessivo, sempre envolto em números e equações, incapaz de viver sem seu trabalho e de simplesmente apreciar a vida. Um mito que Hardy, infelizmente, ao conseguir por fim se matar alguns anos depois do lançamento de A mathematician’s apology, apenas reforçou.

17 equações que mudaram o mundo

De Ian Stewart
Editora Zahar, 408 páginas, R$ 49, 90

Os mistérios dos números: uma viagem pelos grandes enigmas da matemática (que até hoje ninguém foi capaz de resolver)

De Marcus du Sautoy
Editora Zahar, 304 páginas, R$ 44, 90

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