quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Frei Betto - Brasil e Nero‏

O rei está nu, e a base aliada não sabe agora com que roupa comparecerá nas eleições de 2014 



Estado de Minas: 21/08/2013 

Ando às tontas com a conjuntura brasileira. Na economia, os índices lembram uma gangorra. Os investidores trafegam em areia movediça. O Banco Central, frente ao dólar, lembra meu avô com seu cão Nero. Preso no quintal, este se inquietava quando à casa se aproximava uma visita. Os latidos prenunciavam a abertura do portão. Tão logo meu avô dava as boas-vindas ao visitante, Nero, assanhado, livrava-se da coleira que o prendia ao canil e avançava sobre o estranho. Meu avô cobria o animal de safanões, desdobrado em desculpas. A trégua era pouca. De novo, vinha Nero acelerado, rosnando, avançando sobre o estranho que lhe despertava o ciúme.

O dólar sobe, o BC se empenha em abatê-lo, os investidores estrangeiros dão sinais de abandonar o barco Brasil, o governo acena com benesses e discursos otimistas. Como denunciou o papa Francisco, se a bolsa cai, acende-se nas elites o alarme da inquietação. O ouro transformado em pó de mico. Se, em consequência, a miséria aumenta, quem se importa, exceto os que não têm ações e sofrem a fome? Dois pontos a menos na bolsa causam mais preocupação na mídia que 2 mil pessoas levadas à morte por dia por falta de nutrientes básicos. Enquanto a economia navega ao sabor de ventos imprevistos, o governo se arma de medidas contracíclicas a fim de manter acorrentado o dragão da inflação. Como meu avô se esforçava com Nero. “Qualquer desatenção, faça não. Pode ser a gota d’água”, alerta Chico Buarque. Tudo de olho nas eleições de 2014, o norte que imanta a bússola Brasil.

Até maio tudo parecia sob controle, com altos índices de aprovação bafejando o ego do governo. Até que as ruas transbordaram de manifestantes. A nação, deitada em berço esplêndido, acordou. Houve melhorias em 10 anos de governo do PT? Sem dúvida. Aí estão os índices de Desenvolvimento Humano dos Municípios (IDHMs) divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea); a queda significativa do valor da cesta básica; o aumento da renda e da longevidade dos brasileiros. Vejam nossas ruas: entupidas de carros facilitados por créditos abundantes e prestações que quase se estendem ao Juízo Final.

Tudo parecia o país de Alice, uma maravilha! A desoneração da linha branca permitiu a grande número de famílias brasileiras de baixa renda adquirir geladeira, fogão, máquina de lavar e outros eletrodomésticos. No interior do Nordeste, o jegue deu lugar à moto e, na Amazônia, o remo ao motor de popa. Qual fênix livre das cinzas da pobreza, o brasileiro criou asas e alcançou melhores condições de vida. Os aeroportos, repletos, perderam o glamour de espaço reservado à elite. Chinelos de dedos são vistos nas salas de espera e, fora do país, o comércio aprende meia dúzia de palavras em português para bem receber esses turistas que, por semestre, despejam bilhões de dólares nos balcões das lojas.

Alice se transformou em bruxa? O que sucedeu? Se tudo ia bem, por que tantos protestos? O governo subestimou o senso crítico do povo. Não criou canais de diálogo com os movimentos sociais (tolerados, mas não valorizados), nem com a base aliada. Súbito, viu Nero insatisfeito soltar-se da corrente. O que deseja essa gente? Simples, caro Watson. Em países desenvolvidos, como Inglaterra, Holanda e Suécia, primeiro o governo assegurou à população bens coletivos, como transporte, educação e saúde. A “linha pública” precedeu a linha branca. No Brasil, enveredou-se pela via contrária. Temos geladeiras, mas há que tomar cuidado para não beber muita água gelada. Pode irritar a garganta e causar rouquidão.

O Sistema Único de Saúde (SUS), nosso sistema público de saúde, tem a (des)qualidade de nossos ônibus urbanos, e os planos privados de saúde se equivalem a uma matrícula mensal em escola particular. O governo alegava falta de recursos para atender às demandas dos bens coletivos. O povo, paciente, acreditou. Até que o Brasil se transformou num imenso parque desportivo: Copa das Confederações, Copa do Mundo, Olimpíadas e Paraolimpíadas. Como na história infantil de João e o pé de feijão, estádios fabulosos brotaram como por encanto do chão. Até o Maracanã mereceu nova reforma, para gáudio das empreiteiras. Ora, como não há dinheiro para ampliar o metrô, qualificar a educação e tornar acessível aos pobres o bom atendimento de saúde?

O rei está nu, e a base aliada não sabe agora com que roupa comparecerá nas eleições de 2014. O governo federal vacila, ou melhor, oscila entre permanecer refém da promíscua aliança consagrada pelo toma lá dá cá e as reformas de estruturas – política, tributária, agrária etc. – pelas quais a nação clama há um século e, em resposta, escuta apenas promessas que jamais se tornam realidade. Pior que um bando de vândalos sair pelas ruas quebrando o patrimônio público e privado é usar recursos públicos para alimentar a ganância insaciável da especulação financeira e dos que mamam nas tetas do Estado graças a licitações fajutas e a obras faraônicas nas quais a corrupção grassa sem que os olhos da fiscalização enxerguem e o braço da punição alcance.

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