Impasse na saúde
Governo federal desiste de ampliar duração dos cursos de medicina; nova proposta também tem problemas, mas não deveria ser rejeitada
Primeiro foi a constituinte exclusiva para implementar uma reforma política. Sugerida de afogadilho como resposta às manifestações de junho, a ideia foi abandonada em menos de 24 horas.
Em seguida, o governo Dilma Rousseff agarrou-se à defesa de um plebiscito para definir a agenda de mudanças na legislação eleitoral do país, no intuito de alterar as regras da disputa de 2014. Sem que fosse factível, a proposta foi enjeitada semanas depois.
Agora foi oficializado um terceiro recuo, desta vez na área da saúde. Diante da enorme resistência dos médicos, o governo desistiu de ampliar de seis para oito anos a duração dos cursos de medicina.
O plano era polêmico. Nos dois anos adicionais de faculdade, o estudante faria espécie de estágio compulsório na atenção básica do SUS (Sistema Único de Saúde), em local designado pela instituição de ensino. Somente após esse período o aluno poderia obter o registro profissional.
Faz sentido cobrar essa contrapartida de quem se beneficia da rede gratuita de universidades públicas. A exigência soa abusiva, contudo, para o aluno que pagou por seus estudos em instituições privadas. É problemático, além disso, obrigar alguém a morar em determinado local, contra sua vontade.
Após reunião com uma comissão de especialistas formada para debater o tema, o ministro da Educação, Aloizio Mercadante, anunciou anteontem que a nova proposta do governo é tornar obrigatória a residência médica, a ser cumprida inicialmente no SUS, já a partir de 2018 --regra válida, portanto, para quem ingressou na faculdade a partir de 2012.
Trata-se de sugestão mais palatável que a primeira, por conservar alguns méritos e livrar-se dos aspectos mais problemáticos.
A residência é muito importante na formação e na especialização do profissional. É nesse período, em geral de dois a cinco anos, que o aluno treina na prática a teoria que aprendeu na faculdade. Hoje, porém, dos 388 mil médicos do país, pelo menos 88 mil trabalham sem título de especialista.
Decerto menos controversa, a nova proposta nem por isso está livre de críticas. É desaconselhável, por exemplo, mudar as regras de credenciamento de quem já está na faculdade. Mais importante do que isso, será difícil o governo assegurar vagas para todos os residentes e garantir a adequada supervisão do formando nesse período.
São pontos que merecem debate, mas não bastam para rejeitar a medida. Representantes de algumas associações médicas, no entanto, já afirmam que a queda de braço não será interrompida. Enquanto o governo se apequena com improvisos e recuos, a intransigência classista se engrandece.
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As penas de Manning
Era difícil ser diferente. Bradley Manning, 25, o soldado que em 2010 entregou mais de 700 mil documentos confidenciais da diplomacia e das Forças Armadas dos EUA ao site WikiLeaks, recebeu de uma corte militar a condenação por crimes de espionagem.
Deve-se ao analista de inteligência do Exército o conhecimento de diversos atos ilegais cometidos pelas tropas norte-americanas em guerras no Iraque e no Afeganistão e de detalhes sobre os presos na base de Guantánamo.
Ao divulgar essas e outras informações, revelando segredos de Estado, o soldado estava ciente de que cometia crimes militares. Tanto que admitiu ser culpado de dez das 22 acusações imputadas a ele.
A juíza que conduziu o caso foi mais rigorosa. Manning foi condenado por 19 delitos. Suas penas, que ainda não foram definidas, podem chegar a 136 anos de prisão.
Não deixa de ser significativo, contudo, que o soldado tenha sido absolvido da acusação mais grave: a de colaborar com o inimigo, passível de pena de morte.
Eventual condenação por esse crime abriria grave precedente. No limite, qualquer vazamento para organizações jornalísticas poderia receber a mesma punição --já que terroristas podem encontrar as informações e se beneficiar delas.
Ainda assim, é negativo o saldo do julgamento --especialmente pelo contexto em que se inscreve.
Manning não é um caso isolado. Desde 1917, o governo dos EUA recorreu apenas 11 vezes à Lei de Espionagem, oito das quais na gestão do presidente Barack Obama.
Entre os acusados está Edward Snowden, o ex-técnico da CIA que revelou o amplo esquema americano de monitoramento de comunicações pela internet.
É evidente que todo governo tem o direito de garantir sua segurança nacional, e motivos não faltam para que esse item seja prioritário na agenda norte-americana. Mas a existência de certos limites deveria ser igualmente óbvia.
No caso de Bradley Manning, os EUA decerto se excederam. Antes de ser julgado, o soldado passou três anos em prisão preventiva. Por cerca de dez meses, foi confinado nu em uma cela solitária --no que o comissário da ONU para tortura classificou de punição cruel, desumana e degradante.
A definição das penas de Manning mostrará onde o governo dos EUA pretende fixar o ponto de equilíbrio entre a justa proteção nacional e a preservação de liberdades tão caras ao país, como a de expressão e a de imprensa.
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