sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Michel Laub

folha de são paulo
Falta de noção
A incapacidade de ver no espelho parte do problema apontado se deve a deficits emocionais e cognitivos
Toda vez que vejo um comercial de banco dando lições de consciência social, de sustentabilidade e de amor pelos nossos filhos, ou até declarando que dinheiro não é tão importante nesta vida, reconheço que os publicitários ainda são capazes de nos surpreender.
Mas fico pensando se a hipocrisia é tão identificável em domínios menos óbvios que os intervalos da TV aberta. E se evocá-la não é uma espécie de argumento "ad hominem", que despreza a ideia discutida para atacar a pessoa ou instituição que a defende.
No caso do vídeo célebre de Marilena Chaui desancando a classe média (http://goo.gl/FKmFN), há duas opções. A primeira é esquecer a mão pesada da ideologia, e aí até concordo com parte do que é dito sobre as esferas pública e privada no país.
A segunda é descartar o conjunto porque, bem, imputar aos outros vaidade e gosto por "signos de prestígio" não é a melhor escolha para quem atingiu o estrelato num meio como a universidade brasileira. Tudo ilustrado pela cena em que esta integrante das classes menos favorecidas --que diz só distinguir "um fusca de um Fiat"-- ouve do motorista de um "gigante prateado" (quase um vilão da Embrafilme fumando charuto à beira da piscina): "E você pensa que vou estacionar meu Mercedes em qualquer lugar?".
Claro que é difícil separar a hipocrisia do discurso sob o qual ela se esconde. O fígado reclama, por exemplo, quando um escritor, que publica por grandes editoras, é resenhado em grandes jornais e recebe grandes quantias em prêmios literários bancados por grandes patrocinadores, tenta emplacar uma imagem de resistência contra poderes que só ele enxerga.
Mesmo assim, nem tudo tem origem na má-fé. A hipocrisia costuma ser identificada com lugares e épocas --a Inglaterra vitoriana, os Estados Unidos dos anos 1950. Há chance de o Brasil contemporâneo entrar com destaque na lista, mas pode haver um erro conceitual aí: o que me parece escancarado pela internet, na qual podemos ouvir a voz das maiorias antes limitadas a seus botecos e rancores, é uma característica humana universal e atemporal.
O apelido moderno dela é falta de noção. Que é diferente da falta de caráter. Quando um crítico de rock cinquentão ironiza a idade de Caetano Veloso ao lançar um disco de rock, ou quando tuiteiros soltam fogos pela morte de Margaret Thatcher depois de se indignarem com as comemorações pela doença de Lula, é possível que não vejam incoerência na própria postura.
A lógica que os faz pensar assim faz algum sentido. Dá para dizer que crítica não é igual a produção artística, ou que o infortúnio de alguém idoso e distante é diverso do de alguém próximo e na ativa. Mas ir um passo além desses argumentos, enxergando como principal traço deles a tentativa de manter uma autoridade facilmente contestável, demanda um pouco mais de repertório.
Não apenas em termos culturais. A incapacidade de ver no espelho parte do problema apontado também se deve a deficits emocionais e cognitivos. Leiam os textos, ouçam a fala de certos pregadores de costumes em atividade. Quem se expressa daquele modo não parece capaz de segurar garfo e faca ao mesmo tempo, quanto mais de ser hipócrita --sensibilidade que exige alguma técnica e esperteza, quando não a consciência irônica da própria dubiedade.
A falta de noção, ao contrário, é um rochedo de certezas melancolicamente sinceras. Uma forma de amoralidade que não se dá por escolha, e sim por destino: há algo de trágico em todo idiota, mesmo os que passam a vida apontando o dedo para acusar a idiotice alheia, e isso talvez mereça mais solidariedade do que julgamento.
Como não tenho vocação para santo, porém, e nem farei ressalvas do tipo "também estou acusando os outros, quem sabe a falta de noção é minha", não consigo evitar reações menos caridosas. Se em público é obrigatório manter um silêncio respeitoso, magnânimo em relação a estes nossos irmãos vitimados pela sorte, em privado dá para exercitar a vingança sem culpa, na boa e velha forma de condescendência e consumo irônico.
Ao menos faz bem para a saúde. Deixem eu me divertir um pouco com regras que, à luz da pose, da sintaxe e da conduta privada de quem as dita, equivalem a um daqueles vídeos com uma nutricionista gaguejando, um alemão mostrando suas prateleiras cheias de videocassetes ou Carla Perez em "Cinderela Baiana".

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