Respeito aos mortos
Três casos recentes mostram que falta cuidado à imprensa ao tratar de vítimas da violência.
No afã de encontrar uma explicação para crimes surpreendentes e com um apetite irrefreável por detalhes, busca-se todo tipo de informação, sem ponderar sua relevância ou refletir se a publicação pode, desnecessariamente, aumentar o sofrimento dos que ficaram.
Alexandre (1971-2013)
O dentista Alexandre Peçanha Gaddy foi assaltado em seu consultório, em São José dos Campos (SP), na noite de 27 de maio.
Ele foi levado para o banheiro, amarrado com fios de computador a uma cadeira e queimado vivo. Quando os bandidos saíram, ele conseguiu se soltar e gritou por ajuda. Chegou vivo ao hospital, mas não resistiu às queimaduras, que tomaram 60% do seu corpo. Tinha dois filhos, de 5 e 12 anos.
No dia seguinte ao enterro, a Folha dizia ter "apurado" que a polícia investigava a hipótese de suicídio, porque Alexandre tinha feito um seguro de vida recentemente.
A informação, vendida ao leitor como grande apuração, era a mera reprodução acrítica do que dizia a polícia. Não é estranho planejar a própria morte de forma tão cruel? Se a intenção era morrer, por que ele pediria socorro?
A hipótese publicada por alguns jornais, não apenas a Folha, serviu apenas para aumentar o estresse da família. "Minha avó ficou sabendo pela imprensa que a polícia investigava suicídio. Ela tem 88 anos e usa marca-passo", conta Christianne Gaddy, 40, irmã da vítima.
No início deste mês, a polícia deu o caso como encerrado. Dois assaltantes e três menores envolvidos no crime estão presos.
Bianca (1995-2013)
No último dia de julho, "Cotidiano" noticiou: "Garota mata ex-namorada e esconde o corpo debaixo da cama em Goiás". Tratava-se do assassinato da universitária Bianca Mantelli Pazinatto, esfaqueada por duas amigas adolescentes.
Mais uma vez, a fonte era a polícia, que dizia que uma das garotas tinha namorado Bianca e queria reatar a relação. Na mesma reportagem, um tio da vítima contava que a família nunca soube que a amiga "queria namorar a Bianca".
Não havia, portanto, informação suficiente para sustentar o título, que definia a vítima como "ex-namorada" de seu algoz.
Não foi um erro apenas da Folha, que pelo menos teve a preocupação de procurar a família depois. Ouviu do agricultor Hércules Pazinatto, 39: "Não bastasse a morte da nossa filha, ainda lidamos com essa maldade. Se tinha algo nesse sentido de gostar, era da parte da moça que a matou".
O pai fez questão de contar que Bianca namorava um rapaz de 19 anos e que, antes dele, tivera outro namorado por dois anos.
Marcelo (2000-2013)
A grande imprensa não embarcou na rápida solução encontrada pela polícia para o mistério da chacina da Vila Brasilândia. A hipótese de que o filho matou toda a família e depois se suicidou foi colocada, acertadamente, com ressalvas.
O problema nesse caso foi a busca desenfreada por detalhes da vida familiar, na tentativa vã de explicar o que poderia ter levado um garoto aparentemente tranquilo a praticar tamanha violência.
Esquadrinhou-se a vida de Marcelo Pesseghini, suas amizades, quais videogames ele gostava de jogar, a doença que o atormentava desde o nascimento.
A capa da "Veja São Paulo", no domingo passado, citava o "boato" de que a mãe de Marcelo tinha um caso com um colega da polícia. Não poupou o pai, que também teria uma amante no trabalho.
"Sabe-se que os pais do menino, por suspeitas mútuas de infidelidade, não viviam bem como casal", concluiu a revista. Qual a utilidade dessa informação?
"A imprensa já estava fixada no Marcelinho. Agora, é a mãe. É uma barbaridade", diz Sebastião de Oliveira Costa, 54, tio-avô do menino.
Com certa resignação, ele completa: "Fazer o quê? Quem morre não fala mais nada".
Suzana Singer é a ombudsman da Folha desde 24 de abril de 2010. No jornal desde 1987, foi Secretária de Redação na área de edição, diretora de Revistas e editora de "Cotidiano". Escreve aos domingos na versão impressa.
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