domingo, 1 de setembro de 2013

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » Vendo Downton Abbey‏


Estado de Minas: 01/09/2013 


Downton Abbey parte da saga de uma família aristocrática para revelar um painel da sociedade inglesa       (Carnival Films/Divulgação)
Downton Abbey parte da saga de uma família aristocrática para revelar um painel da sociedade inglesa


Tem muita gente assistindo a Downton Abbey. Eu também. A série passa nas quintas-feiras e é repetida aos domingos pelo canal GNT. Tem gente tão curiosa que já comprou todo o seriado inglês, e, em reuniões sociais, pode se gabar de saber o que vai acontecer.

Guardadas as proporções, a série virou uma espécie de O direito de nascer de nossa época. Quando tal novela de rádio cubana foi levada ao ar, lá pelos anos 1950, foi uma comoção internacional. O ex-vice-presidente da Nicarágua e escritor Sergio Ramirez revelou que, no interior de seu país, era possível acompanhar a novela andando pela rua, pois todos os rádios estavam conectados na estória.

Quem vê Downton Abbey não apenas segue a saga da aristocrática família Crawley, mas as transformações sociais e morais por que passam ricos e pobres no período que vai do afundamento do Titanic (1912) a vários fatos históricos marcantes: a 1ª Guerra Mundial, a gripe espanhola, a luta da Irlanda pela independência, o surgimento do telefone e das torradeiras elétricas, a evolução da moda e penteados, etc. Além disso, os Crawleys passam por várias crises: uma filha, quebrando a rigidez dos códigos, resolve ser enfermeira durante a guerra, apaixona-se e se casa com um irlandês; outra filha se entrega a um sedutor turco; a outra é abandonada no altar pelo noivo. E o próprio chefe do clã está à beira da falência.

Não dá para narrar em poucas palavras o que sucede no seriado. Além de me entregar ao prazer normal de assistir a essa impecável narrativa, ocorre-me outra coisa: a ligação possível com algo mais sério e, ao mesmo tempo, divertido.

Vejam como as coisas aparentemente banais podem ser seriamente estudadas. O seriado inglês é perfeito para estudar história, sociologia, psicologia, culinária, moda e a medicina da época. É interessantíssimo, inclusive para analisar o processo narrativo de ontem e de hoje. Façam a experiência: verifiquem o que é narrativa de estrutura simples e narrativa de estrutura complexa. Não estou fazendo autopropaganda. O livro Análise estrutural de romances brasileiros (Unesp), há 40 anos usado dentro e fora da universidade, explica a estrutura tanto de O guarani, A moreninha e O cortiço quanto de Machado de Assis, Graciliano e Clarice Lispector. Mais do que isso, aquele conceito de simples e complexo ajuda a entender a vida em geral e especialmente as novelas de televisão. Sem falar nos best-sellers que estão por aí.

Ainda agora, leio nos jornais que Nicholas Sparks veio à bienal carioca lançar seus livros. Ele diz, descarada e triunfantemente, que seus livros só têm uma fórmula, e ele a repete sempre. Com isso, enche o imaginário de seus leitores e a conta bancária ao vender 90 milhões de exemplares.

O divertido da análise estrutural é que ela materializa e visualiza o que não sabemos. Por exemplo: nesse Downton Abbey, usando recursos simples da matemática (que aprendemos no primário), pode-se dizer que há dois conjuntos: o conjunto da aristocracia e o dos serviçais.

Esses dois conjuntos (como ocorre em O cortiço, de Aluísio Azevedo), apesar de suas regras, interagem entre si. A interação pode ser ilustrada pelo que chamamos de “código culinário”. A comida elaborada na movimentada cozinha pelos serviçais chega à mesa dos senhores com uma mensagem determinada. E quando um casamento é desfeito e os empregados têm direito a comer a comida dos patrões, ocorre algo curioso. Numa análise mais ampla, poderia-se demonstrar como, além da comida, trajes e etiqueta são importantíssimos. Através desses elementos ocorre o “sistema de trocas” afetivas entre aristocratas e empregados.

Esses dois conjuntos que interagem e se modificam, por outro lado, estão sujeitos a transformações, recebem o influxo de personagens e agentes do exterior. Surgem conflitos entre novos ricos e velhos ricos, entre aristocracia inglesa e milionários americanos. Em certo sentido, Julian Felllowest, o autor dessa história, guardadas as proporções e diferenças, age como Balzac e Dostoievski. Eles faziam painéis das mutações de sua época. Não é à toa, dizem muitos críticos, que se entende melhor certa época lendo Machado e Jorge Amado que lendo certos livros de história e sociologia.


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