Jefferson da Fonseca Coutinho
Estado de Minas: 01/09/2013
Lucas Medeiros encontrou na dança força para seguir em frente quando a vida parecia fugir sob seus pés |
Nos salões de ensaio, no palmo entre as barras e os espelhos, os solos são pas-de-deux perfeitos. O corpo masculino e seu duplo trazem escrita feita à luz e movimento. Ali, o sujeito homem, obra do criador, é a existência na pulsação do instante. Falam o olhar, a respiração e o traçado das veias sob a pele ramificada de suor e ritmo. Agregados, únicos, meninos e meninas, dos 8 aos 80, são levados pelo vigor do teatro físico que há no gênero. No templo do linóleo, impermeável, garotos bailam o bom combate. Escambam o preconceito pelo que há de belo na diferença. Nos passos inspirados no romance social britânico Sob a luz das estrelas, do escocês A. J. Cronin (1896-1981), de 1935 – feito filme e musical de sucesso nos anos 2000 –, o Estado de Minas encontrou alguns dos Billys Elliots mineiros e traz, em série até terça-feira, histórias de amor e entrega à arte do homem na dança.
Movimento que vem da alma
Jefferson da Fonseca Coutinho
Lucas Medeiros, 22 anos: a força sagrada da dança que vem do coração |
Com o coração na ponta dos pés de moleque ou no sopro da fala macia de doutor veterano, alunos e professor dão lição de dedicação e coerência nos caminhos incertos da dança. Estrelas meninas, bailarinas, de passado, presente e futuro, acolhem com generosidade os meninos mais perdidos no espaço. Os números da principal escola profissionalizante da dança em Minas Gerais não mentem.
"Crianças felizes, homens melhores"
Publicação: 01/09/2013 04:00
Arnaldo Alvarenga, 56 anos: a dança na cesta básica |
Um ideal. O bailarino que se fez doutor nas artes espera ver “a dança na cesta básica na formação do brasileiro”. As razões de Arnaldo Leite de Alvarenga, de 56 anos, são muitas. De sobra. Uma delas é a fé num ser humano melhor por meio da cultura da dança e tudo que ela envolve. “A dança precisa estar no crescimento das crianças”, defende. “Crianças felizes, homens melhores”, acredita Arnaldo. O artista, professor, coreógrafo e pesquisador é um dos responsáveis pela escola superior de dança da UFMG, que diploma sua primeira turma no próximo ano.
Na adolescência, em tempos difíceis, Arnaldo sofreu bullying na escola. “Na época, não tinha esse nome, mas era isso. Para muitos, por causa da dança, eu era o ‘veado’ do colégio”, lamenta. Arnaldo diz ter perdido a conta das vezes em que “brigou de porrada” com seus agressores na saída do Instituto Champagnat, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte. O garoto inquieto, dançarino, de muita personalidade, não baixou a cabeça. Quanto mais provocado, mais dedicado à inquietude da alma.
Irrequieto, o menino Arnaldo levou os conhecimentos das artes cênicas e da astronomia – outra paixão – para entre os muros da escola. No último ano na casa de ensino, com o espírito de liderança fortalecido, agregou os colegas da eletrônica e desenhistas para seu grand finale: Fausto, poema trágico do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). Arnaldo adaptou, coreografou, pintou, bordou e dirigiu. Em cena, o estudante despediu-se, encarnando Mefistófeles, o demônio.
Bem antes do Instituto Champagnat, nos anos 1960, o menino Arnaldo já aprontava das suas no entorno da Avenida Álvares Cabral, saltando telhados. Um precursor do parkour – arte de deslocamento e de exploração de obstáculos, utilizando-se das habilidades do próprio corpo –, o professor “brincava de pegador nas alturas”, vencendo as obras do prédio da Escola de Direito da UFMG. Num salto da memória, com ares de garoto, Arnaldo conta que já esteve engessado por seis vezes. “Até os 13 anos, fui uma constante no Hospital da Previdência”, diverte-se.
Em casa, na Avenida Augusto de Lima, Arnaldo demonstra prazer e gosto em falar do passado. Ainda que de recortes difíceis nas lembranças, como o bullying na escola e os conflitos em família pela imersão no mundo da dança. Como o personagem Billy Elliot, inspirado na obra de A. J. Cronin, Arnaldo precisou dançar escondido. Tristeza breve, apagada pelo orgulho das aulas na Escola de Dança Moderna Marilene Martins, no terceiro andar do Colégio Arnaldo. “Ganhei uma bolsa. Naquela época, catavam-se os homens no laço para a dança”, conta.
Algum tempo depois, a escola ganhou o nome de Trans-Forma Grupo Experimental de Dança, espaço que marcou a história da dança na cidade. Arnaldo se emociona ao relembrar o salão de ensaios na Avenida Carandaí, entre as mangueiras e as curvas da Serra do Curral, numa metrópole horizontal, de outros tempos. Emoção que se repete ao relembrar o professor Carlos Leite, velhinho, severo, movendo as pás do moinho nos bastidores de Dom Quixote, de Cervantes (1547-1616), no Teatro Sesiminas, nos anos 1990, substituindo o técnico que faltou ao trabalho.
Estudioso por natureza, paralelo à dança, além dos estudos em técnica de desenho arquitetônico, Arnaldo se graduou em geologia. Também se formou terapeuta corporal e fez carreira como “pesquisador do corpo do idoso”. Ganhando o pão sempre por meio da dança, Arnaldo chegou a trabalhar com “leitura corporal aplicada na área de recursos humanos” para grandes empresas. A academia foi caminho natural para o menino gentil, aplicado, que devora livros e trabalha para melhorar o mundo.
Mestre e doutor em educação, Arnaldo Alvarenga, o “Mefistófeles” de passagem tumultuada, vilipendiado na escola secundarista, cativou o respeito das mais altas rodas. Orientador de muitos, é autor de livros na área de história da dança, além de professor dos cursos de graduação em teatro e da dança da Escola de Belas Artes da UFMG. Casado com a restauradora Dolores Belico, Arnaldo alimenta em casa outra paixão. Uma pinscher serelepe, habilidosa com as quatro patas, chamada Pina Bausch.
Um sinal do Olimpo
Em 2008, durante culto na Igreja do Evangelho Quadrangular, uma revelação: de acordo com o pastor visitante, um jovem presente, de 17 anos, iria encantar muitas paisagens com sua arte. O líder estranho se aproximou do garoto ainda mais estranho e disse: “Fique de pé, meu filho. Deus tem um plano para a sua vida. Ele se alegra com a sua dança e você ainda vai fazer parte de uma grande companhia e levar a sua dança para vários lugares”. Palavras reunidas que marcaram o coração de Lucas Medeiros, de 22, do Bairro Jardim Alvorada, na Região Noroeste de Belo Horizonte.
Hoje, o bailarino é destaque da Companhia de Dança Palácio das Artes, um dos grupos mais importantes do Brasil, em atividade desde 1971. Há cinco anos, na época da revelação, o mundo parecia ter desabado sobre a família de Lucas. O pai, Kleider Valério de Medeiros, de 47, gerente de hotel, havia enterrado a mulher, vítima de leucemia, ao mesmo tempo em que cuidava da doença rara da filha. A menina adolescente, bailarina, perdia os movimentos da cintura para baixo. Uma maré de desgosto, envolvendo a mãe e a irmã tão queridas, principais referências de Lucas.
“Quando minha mãe morreu, se consolidou no meu coração uma convicção de que, independentemente das circunstâncias, a dança em mim era para toda a vida”, emociona-se. Pouco antes do período de agonias, Lucas já dançava balé, jazz moderno e contemporâneo em pas-de-deux com a irmã. “Na igreja, quando comecei a dançar, senti que podia dizer mais com o meu corpo do que com as palavras.” Depois de estudar por conta própria passos copiados em DVDs e de levar às salas de ensaio os alongamentos aprendidos nas aulas de educação física, Lucas entendeu que era hora de treinar e dançar para valer.
Ao ouvir a revelação dita pelo pregador, que não o conhecia e não sabia de sua história amadora com a arte, Lucas caiu em águas. “Na hora, entrei em prantos. Já sentia essa vontade, essa vocação. Aquilo me tocou profundamente”, ressalta. Cinco anos passados, imersos nos salões de ensaios, Lucas já não frequenta mais os cultos evangélicos. “Antes, na igreja, Deus era algo externo, que me via de cima. Hoje, com a dança, Deus está dentro de mim”, volta a emocionar-se, trazendo a mão aberta ao lado esquerdo do peito. Pausa na conversa para ensaio de solo em Tudo que se torna um.
No salão no quarto andar do Palácio das Artes, com o balanço nas janelas das copas verdes do Parque Municipal, Lucas é iluminado pela claridade que atravessa as vidraças. Parece um gigante de asas no manejo da muleta feita pá no espetáculo de repertório. Não está só. Nos arredores, entre os veteranos da companhia, estrelas bailarinas como Sônia Pedroso, Lina Lapertosa, Cláudia Lobo e Lívia Espírito Santo. “Privilégio e honra do encontro”, segundo o jovem artista. Lívia e Sônia foram professoras de Lucas. Hoje, são colegas de cena. “São minhas referências, espaço de força e informação”, agradece.
O pai, Kleider, gostaria que Lucas fizesse algo de futuro e dinheiro: “Medicina, direito…”, conta o bailarino. Preconceito é assunto superado. Para ele, os tempos mais difíceis já são poeira no tempo. Ainda que as “piadinhas machistas” vindas de colegas de cursinho o incomodem. Lucas voltou às salas de “aulas normais”. Prepara-se para o vestibular de cinema da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) . “Tenho enfrentado de novo o que eu já tinha até esquecido. Mas, na medida do possível, tento lidar com isso de maneira natural”, suspira.
Ruídos embalam os passos
Pablo Garcia do Carmo, 13 anos: vocação que vem da infância |
Pablo Garcia do Carmo, de 13, pequenino, parecia impossível aos olhos dos pais. Tudo o que é ruído ganhava movimento no corpo miúdo em calças curtas do garoto. O moleque dançava ao som do liquidificador, dos chiados da TV e das britadeiras nas ruas. Não havia som no espaço que não ganhasse passo para o mocinho de pouco mais de metro. Aos 4 anos, a mãe, Luciene da Conceição Morais, de 37, conta “pirueta” de Pablo no hipermercado que resultou em batelada de jarras de acrílico pelos corredores.
“A dança para ele sempre foi tudo. Tentamos levá-lo para o futebol, para o tae-kwon-do, não teve jeito. Ele só queria saber de dançar”, conta a comerciante. De acordo com a mãe, na escola, enquanto os colegas de luta treinavam golpes, Pablo pedia para ir ao banheiro. “Só para sair da sala e ver as meninas do balé.” Em casa, qualquer coreografia da TV – em comerciais, programas e novelas – servia para ser copiada entre os móveis dos cômodos de Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
O balé, “coisa de menina”, para a família estava para se esvair. “Um dia, na rua, Pablo viu uma menininha, bailarina, vestida de azul. ‘Se tem azul, aceita homem’, ele pensou. Pegamos o endereço da escola e ele não parou mais”, diz Luciene. Da Escola da Eliane para o Centro de Formação Artística (Cefar), do Palácio das Artes, foi um pulo. Aprovado pela Fundação Clóvis Salgado (FCS), em 2008, Pablo avança com os estudos para a tão sonhada profissionalização.
Com o apoio dos mais próximos, especialmente da mãe e do pai, Paulo Sérgio Viana do Carmo, de 45, Pablo tem superado como gente grande os desafios de ser o único homem da família na dança. Diz não se importar mais com os comentários entre conhecidos de “ele é bailarino, gente… ele usa saia”. Teve também casal de tios que proibiu o filho de brincar com Pablo. “Você não vai brincar mais com ele, porque dançar balé não é coisa de homem”, disseram. Pablo lamenta. Contudo, mostra-se preparado para lidar com os ruídos do preconceito e da falta de informação.
Uma escola para a vida
Formandos do Cefar: quatro homens e duas mulheres invertem a tradição |
Na sala de ensaio de esquina no Cefar, o grupo de quatro meninos e duas meninas ensaia e chama a atenção. São formandos de mais uma turma do curso profissionalizante de dança da Fundação Clóvis Salgado. Grupo raro com o dobro de homens em relação às mulheres. A proporção de profissionais masculinos formados pela escola do Palácio das Artes nos últimos cinco anos é de dois meninos para cada 10 meninas. Privilégio para a dupla Sara Marchezini, de 22, e Carolina Pego, de 21. Duas moças sorridentes, de encantos típicos das meninas de tutu e sapatilhas cor-de-rosa.
Carolina dança desde mocinha. Passou pelas salas de aula da UFMG, mas não gostou do ensino superior da dança. Este ano, prepara-se para tentar vaga no curso de comunicação das artes do corpo, na PUC de São Paulo. Para a bailarina, é uma alegria ver seus colegas homens felizes com as sapatilhas. “É realmente complicado porque existe o preconceito. Mas, ao mesmo tempo, é maravilhoso ver os meninos vencendo essa barreira”, considera. Sara Marchezini, não menos apaixonada pelos tablados, vê o homem na dança, no Brasil, como um avanço social. “É uma interação importante não só para a arte, mas para a vida de ambos. Homens e mulheres”, avalia.
Os quatro garotos sorriem ao ouvir o depoimento das belas. Ricardo Sabino, de 27, o mais alto do grupo, ator de musicais, busca qualificação nas aulas de clássico. Já esteve em cena nos espetáculos Cinderela, Branca de Neve e Eu não sou cachorro não, produções de Belo Horizonte. O artista revela que a família foi sabendo aos poucos da sua paixão pela dança. “Minha mãe se assustou quando viu pela primeira vez os acessórios que uso na dança. Foi um choque o suporte nas mãos”, diz.
Dalton Correia, de 23, olhos verdes luminosos, alegra-se com a conversa. Diz que, por anos, garoto, levantou às 5h e chegou em casa por volta da meia-noite, todos os dias, para dar conta da jornada dupla de bailarino e operador de telemarketing. Morador de Contagem, na região metropolitana, o formando passa três horas por dia dentro do ônibus 6820. Problemas de aceitação pela escolha profissional superados, Dalton foca no último ano de formação. “Deixei o trabalho para me dedicar aos espetáculos de final de curso.”
“Vi pais, incomodados com as roupas que os filhos usavam, levantarem-se no meio do espetáculo e deixarem a plateia”, diz Elton de Souza, de 22, professor de dança contemporânea nas horas vagas. De Ibirité, também passa cerca de três horas por dia dentro do busão. Um dos 16 bolsistas do Balé Jovem da Fundação Clóvis Salgado (FCS), Elton conta com o apoio da família e dos amigos para levar adiante o sonho de fazer carreira e ser respeitado como profissional da dança.
Vem de Jordânia, no Vale do Jequitinhonha, o último formando de 2013. Henrique Dias, de 27, dança desde os 13. Fez carreira entre os jordanienses com o axé e com o forró. Na terra natal, diz ter sofrido com as piadinhas machistas dos “leigos”. “São leigos. Tratam a arte assim, com chacota, porque não sabem do que estão falando”, justifica, em paz. Por dois anos, em 2008 e 2009, Henrique passou pela escola de dança do Grupo Corpo. Desde 2010 no Palácio das Artes, o bailarino comemora “dias mais amenos”. “A falta de R$ 30 para a inscrição na escola ficou para trás”, sorri.
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