Impressões digitais
Sob os cantos da unha havia tinta, seda, poeira de botecos sórdidos, uma ou outra jovem assistente, fossilizada
Sob os dois cantos da unha havia aglomerações escuras, em que uma escavação arqueológica certamente encontraria: tinta óleo, aquarela, fixador; seda para cigarros, cashmere, pelos de pincel; poeira de botecos sórdidos do centro do Rio, poeira de restaurantes chiques de Nova York, certa poeira oriunda da Amazônia colombiana; uma ou outra assistente linda, jovem e fossilizada.
O conjunto da obra formava uma instalação, uma metonímia do artista, onde se lia seu desprezo pelas coisas chãs: nosso asséptico "zeitgeist", nossa crença na manutenção do corpo e no reinado do Photoshop. Afirmava-se, ali, a prevalência das pulsões sobre a razão e vislumbrava-se a aceitação da morte. Um dedão romântico. Um dedão beatnik. Um anacrônico dedão.
Correndo pela praia, veio o jovem colecionador do mercado financeiro, dono da casa em que o pintor estava hospedado. Sentou, deu um gole num isotônico, tirou o tênis, e a paisagem mudou da água pro vinho --ou, mais precisamente, do vinho pra água. Não seria absurdo se alguém afirmasse que ele tinha corrido até o fim da praia, parado num podólogo e voltado. Aquele dedão também não era apenas um dedão, mas sim uma declaração de princípios. Se você chegasse bem perto, veria, onde o artista cultivava o anárquico tufo de capim, apenas uns furinhos --o jovem colecionador do mercado financeiro arrancava os pelos com pinça, um a um, a cada 15 dias. A unha era um retângulo perfeito, pequena tela brilhante capaz de refletir as nuvens do céu em full HD. Os cantos estavam impecavelmente limpos: uma escavação arqueológica sairia de mãos vazias, dando apenas, talvez, com um leve odor de Pato Purific.
O conjunto da obra era uma metonímia do jovem colecionador do mercado financeiro. Uma ode ao controle, ao planejamento, um pequeno totem anal-retentivo, em homenagem ao mundo administrado. Aquele dedão comemorava o triunfo da razão sobre os instintos, a vitória do homem sobre a natureza, cria-se imbatível, imortal, dava um pontapé na passagem do tempo. Um dedão de alta performance. Um dedão ISO 9000. Um atualíssimo dedão.
Os dois se levantaram e foram em direção ao mar, discutir, com água pelas canelas, quanto custaria para a visão de mundo de um ir parar em cima da lareira do outro.
Eu fiquei ali, sozinho com meus dedões.
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