Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 07/09/2013
Depois de meio século de dedicação ao Brasil, Rose Marie Muraro revela que está amando e tem muito prazer em viver, mesmo com todas as limitações |
A Rose Maria Muraro com quem me encontrei no início da semana, no modesto apartamento onde vive desde 1969, no Bairro Peixoto, um lugar dos mais tranquilos da Zona Sul carioca, ainda tem o mesmo entusiasmo na voz. Mas exibe algumas pausas quando fala do amor pelo Brasil, do encanto sempre renovado pelos livros, das lutas a favor da emancipação da mulher, do enfrentamento à ditadura militar e tantos outros bons combates. Rose Muraro é uma pessoa que, como poucas, soube viver plenamente.
Mas a inevitável passagem do tempo – ela está com 82 anos –, somada a uma quase cegueira (42 graus de miopia), além da saúde abalada, sem falar da precária condição financeira, a levaram a tornar pública sua situação. Em uma mensagem destinada aos amigos, ela, com a coragem dos que nada devem, pede ajuda para sobreviver com dignidade.
Num dos trechos da carta que comoveu o Brasil e fez com que várias pessoas se manifestassem – inclusive com ajuda em dinheiro – ela afirma: “Depois de 50 anos de dedicação à sociedade brasileira estou hoje numa situação financeira delicada, porque não tenho mais condições físicas para ler nem escrever, pois minha miopia aumentou muito e uma pneumonia me levou a força das pernas. Continuo trabalhando em casa, dando assessoria a um senador e transformando algumas das minhas obras em e-books. Meus familiares estão fazendo o que podem, me dando assistência e ajuda financeira, entretanto, meus custos com remédios, acompanhantes e outras despesas, excedem muito a minha receita”.
Ao Estado de Minas, completando a mensagem, ela disse ainda que está nessa situação porque, ao longo da vida, resolveu pensar como quisesse, de forma independente, e a não seguir uma carreira acadêmica, o que poderia ter sido mais cômodo, como aconteceu com várias colegas. “Talvez este tenha sido o meu erro, pois acabei caindo no INSS, do qual recebo muito pouco. Mas não me arrependo de nada. Se tivesse de fazer tudo de novo, faria. E se deixei vir à tona a realidade pela qual estou passando, mesmo contra a vontade da família no primeiro momento, foi porque sempre fui uma pessoa humilde, que gosta de lidar com a verdade.”
Deitada em uma poltrona reclinada, que fica na sala de visitas do apartamento, tendo de um lado um vaso de flores vermelhas artificiais e do outro um telefone, por meio do qual, principalmente depois que divulgou a mensagem, tem falado com muita gente, Rose Muraro segue ponderando sobre o resultado de suas escolhas. “Não sabia que continuava sendo tão querida neste país. Achei que as pessoas já tivessem me esquecido, porque de uns anos para cá estou quieta no meu canto. Não saio mais, não lanço livros, não viajo dando palestras. Mas não fui esquecida e isto me deixa muito feliz. É comovente.”
Uma das intelectuais mais respeitadas do Brasil, com mais de 40 livros publicados, Rose Marie foi responsável pelo catálogo de duas das maiores editoras do país, a Vozes e a Record. Por elas, sempre corajosa, lançou dezenas de autores, muitos deles hoje consagrados e agradecidos pelo apoio da primeira hora. Sem falar de nomes de ponta da cultura brasileira, como Leonardo Boff, de quem esteve ao lado durante a criação da Teologia da Libertação, que mexeu com os alicerces da Igreja Católica. Mesmo com todas as suas limitações atuais, ela conta que não para de produzir.
E depois de tomar um suco trazido pela secretária Penha, que a tem ajudado muito nesse momento de dificuldades, ela diz que está escrevendo um livro sobre o amor. “No meu entender, é o sentimento mais sublime que existe. O amor é tudo aquilo que vem do nosso eu mais profundo, do nosso inconsciente. Eu vivi e vivo muito o amor. Inclusive, já há 10 anos, tenho um novo companheiro, que é muito mais jovem do que eu”, revela com um sorriso.
Mas levar adiante o projeto do livro não está sendo fácil, pois devido ao problema da visão ela tem que seguir um método trabalhoso: primeiro dita o texto, que em seguida é digitado no computador e depois lido a ela, para as revisões e emendas. “Mas no meu caso tem de ser assim, porque na hora em que parar de produzir, tenho certeza que paro também de respirar, e aí será o meu fim”, diz.
Mesmo sem sair mais de casa e vivendo dias difíceis, Rose Marie é uma mulher atenta às coisas do dia a dia e à situação do Brasil, pelo qual não esconde a paixão. Para ela, que apostou em Lula, e continua acreditando em Dilma, o país nunca mais será o mesmo depois destes dois governos, pois com eles o povo descobriu o poder que tem. “Basta ver as últimas manifestações, que aconteceram democraticamente, apesar dos bagunceiros infiltrados. Arrisco dizer que 2014, por uma série de razões, será um ano definitivo para nossa história.”
“Patrona em vida do feminismo brasileiro”, como faz questão de dizer, os olhos de Rose Muraro, que tem 5 filhos, 12 netos e quatro bisnetos, brilham quando o tema vem à tona. Conta que foi a primeira mulher a defender o feminismo no Brasil e, já em 1974, quando as outras mulheres ficavam escondidas dentro de casa, ela ia para a rua gritar por seus direitos e nunca teve medo de ninguém, nem dos militares durante o período da ditadura, que a perseguiu a ponto de afastá-la de seu cargo na Editora Vozes, ligada à Igreja.
“ Se hoje temos uma presidenta da República, que é minha amiga, e uma ministra da Casa Civil, Gleise Hoffmann, que foi minha aluna, toda esta história começou naquela época, quando fomos para as ruas”, diz Rose. Daí a pouco, a Penha, que não se descuida da amiga, lhe traz outro suco gelado.
Depressão e humor
“Às vezes me deprimo com a realidade que estou vivendo, mas logo fico boa, porque tenho uma coisa tipicamente carioca, que é a sacanagem, a capacidade de fazer piada com tudo. Mesmo só me locomovendo com a ajuda de um andador e da minha secretária, até mesmo para ir ao banheiro, continuo achando que tudo vale a pena e que a vida é muito boa. Mas não consigo mais me virar sozinha, como fazia antes. Preciso de ajuda para tudo.”
Pela libertação
“Leonardo Boff foi lançado por mim, na Editora Vozes. Fizemos juntos a Teologia da Libertação, que foi um movimento tão importante como o feminismo: a teologia libertou os pobres e o feminismo libertou a mulher brasileira, que até então estava aprisionada nos seus estereótipos. Depois destes dois movimentos, o Brasil nunca mais foi o mesmo. Sou vista como uma líder feminista, mas tenho horror desta palavra, pois sempre preferi o consenso, que, a meu ver, é o melhor jeito se chegar a um bom termo.”
Sapatos do papa
“O papa Francisco é o grande cristão da Igreja Católica depois de João XXIII. Ele é um homem simples, anda com sapatos velhos. Se misturou com o povo aqui no Rio de Janeiro, não quis saber de papamóvel. Ele tem uma visão de mundo fantástica. A meu ver era de um homem assim que a Igreja estava precisando para se renovar, para tentar recuperar o seu rebanho.”
Intelectual impossível
A obra de Rose Marie Muraro se filia a uma tradição latino-americana do intelectual que exerce o papel de livre pensador. Fora da universidade, foi preciso reunir conhecimentos variados que fizessem dela uma voz que destoasse dos especialistas. Onde o acadêmico busca recortes, Rose Marie mirou o que estava além das escolas. Rose estudou matemática e física antes de se dedicar às ciências humanas. Escreveu livros de sociologia, política e antropologia. Publicou obras importantes sobre automação, história e tecnologia. Seus livros sobre a questão feminina abrangem desde elementos antropológicos e culturais até a dimensão política.
Uma de suas obras mais conhecidas, Sexualidade da mulher brasileira, de 1983, marcou época. O estudo, com impressionante aparato científico e de pesquisa, incorporou a dimensão de classe ao discurso do feminismo tradicional. Não era ciência importada, mas feita por brasileira para brasileiras. Se a mulher sofria com o machismo, a mulher pobre sofria duplamente.
Rose Marie Muraro foi ainda importante na definição dos rumos da Igreja Católica progressista, estando sempre próxima dos formuladores da Teologia da Libertação. Como editora, chegou a ganhar um prêmio internacional pela capacidade de resistência num dos momentos mais burros da história brasileira recente. Com sua visão limitada por dezenas de graus de miopia, Rose sempre enxergou longe.
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