André di Bernardi Batista Mendes
Estado de Minas: 07/09/2013
Poemas do novo livro de Iacyr Anderson Freitas já foram traduzidos para a linguagem do corpo e do teatro |
O
poeta Iacyr Anderson Freitas acaba de lançar, pela Editora Escrituras,
Ar de arestas. A trajetória de todo poeta é irregular, o poeta parece
que sempre está prestes a encontrar algo que beira o indizível, daí para
a angústia, de lá para uma dor feita de tranças e tramas. O poeta
desconhece o lugar certo, as desajeitadas mãos do artista mais acariciam
que prendem, moldam quanto mais desaprendem. Iacyr sabe que toda
inocência é perigosa (dali podem surgir poemas), tudo que é fonte traz
de roldão luz e mistério, sombra e breu. O poeta apenas convida, provoca
para brincar de dizer. A poesia serve para ressuscitar as horas mortas.
Não sem dor.
O novo livro de Iacyr, que conta com fotos de Ozias Filho, é uma longa meditação sobre a dor, descrita na sua crueza de realidade inevitável. As desajeitadas mãos do poeta servem para desajustar “minúsculos engates”, servem para descontextulizar, servem para ampliar (tarefa das mais difíceis, embora necessária) o vazio. O poeta redimensiona os números, o zero, os zeros. A palavra incompletude fere com suas pontas, a palavra rude, a palavra indelicada, torna-se, através das mãos delicadas do poeta, branda. Numa alquimia estranha, a palavra brusca perde os seus espinhos.
Como se sabe, para o escultor (dentro de sua alma de artista) existe uma forma insciente, existe uma forma, um corpo, um pássaro pronto dentro de cada pedra. Para o poeta a situação é mais complexa, pois dentro do vazio existe tão somente mais e mais porções de nadas.
Iacyr é, de certa forma, um poeta obscuro, que se sente mais à vontade diante de dificuldades. A tensão elétrica, medida em volts, do coração do poeta não encontra motivos. O problema é o seguinte: o poeta vive coberto de escombros que, para todo caso, é uma palavra linda. O poeta, assim, torna-se criminoso, um assassino de si mesmo, que renasce em cada página.
A posição de um poeta é sempre incômoda: ele está sempre no centro. Ele está sempre em outro lugar. O poeta dorme e acorda sempre no cerne (na parte interna do tronco das árvores, nos recônditos, no âmago da alegria, e da dor). Mesmo quando senta na beira de um rio, o poeta nada no centro de todas as águas, ainda que o lugar da poesia seja uma região adjacente, em todos os sentidos.
As flores nunca formam, as flores nunca serviram de escudo para nada ("pouco adianta empregar/ a expressão à flor da pele"). Existem relâmpagos dentro do escuro, mas a luz que escapa, o que se revela logo se perde, dissipa-se, evapora, vai-se embora, como, por vezes, vai-se embora a esperança. "Desse terror não se escapa/ sem cicatriz ou sequela./ Dos dias perde-se o mapa/ – e o mapa nada revela." Poesia é sinônimo de labirinto. Só entende este início de discurso aquele que porventura viu.
Iacyr potencializa o mal, a dor, para melhor conhecer o inimigo. Não para derrotá-lo, mas para aninhar-se, para melhor encontrar possibilidades de fuga. Existe uma espécie de ausência de proporcionalidade quando o poeta percebe o óbvio. Sem caminho, sem rumo, com uma vereda a ser trilhada, a poesia de Iacyr não mede consequências. A pessoa, quando sente dor, qualquer dor, é a mais solitária A alegria agrega, a dor restringe. A dor é o fato mais consumado.
A trajetória descrita por um astro em torno de outro, vista de longe, gera espanto e causa dissabor. O poeta aceitou o desafio de examinar a vida crua, o sol exposto. O poeta, sem pensar, encara o céu de frente. "Um sol que saiba pulsar,/ saiba ferir sem calor,/ ruminando com esgar/ até mesmo a própria dor." Iacyr deixa de lado, fecha um baú de promessas, aquele céu irreal de anjos e fadas. O mar, para Iacyr, ganha outros tamanhos e amplos sentidos. O mar "perde" a sua aura inocente: "É sal somente." As sementes deixam de ser meras sementes e deixam de lado promessas revestidas de benesse: "E possa alguma semente/ vingar da desesperança,/ embora ninguém atente/ ao incêndio que a alcança." Iacyr queimou-se num fogo brando, mas persistente. Fogo será sempre fogo. A vida é cheia de quinas. Em cada plano, em cada sonho existem armadilhas feitas de pontas e pregos.
Entre sombras Outra situação, não menos impactante. As fotografias de Ozias Filho muito servem para indicar o caminho das pedras. Sombrias, belíssimas, as imagens, ao final de cada poema, cumprem uma missão inglória, pois pegam os olhos de leitor para não deixá-lo respirar. As imagens carregam doses extremas de claustrofobia. Elas causam um incômodo estranho, necessário para o contexto intrincado dos poemas, numa bela e intensa profusão de teias, fios e amaranhados sinistros. Em fevereiro de 2012, na Universidade de Lisboa, o ainda inédito Ar de arestas foi traduzido para a linguagem corporal do Laboratório de Movimento e Performance I’Mmoving, coordenado pela coreógrafa Marina Frangioia. Os frutos dessa ousadia impregnaram as lentes do fotógrafo Ozias Filho e se encontram registrados no livro.
"O delírio desgoverna." Um bicho com fome, quando come, uma serpente dando o bote, o barulho de um trovão. Eis algumas frações do que existe de mais puro, de mais visceral. Eis um retrato fidedigno da vida captado pelo poeta Iacyr, "até que se ouça o refrão/ de oito infernos resumidos." Iacyr não brinca em serviço, não mede esforços e dispensa qualquer analgesia. Iacyr fala, escancara um processo feito de dores, de situações extremas, "rompe-se o dique de um rio/ todo coberto de mortos". Mas Iacyr sabe dos seus limites. Seu estilo (extremamente fino) passa longe do grotesco, do mau gosto, do exagero e do verso fácil. Iacyr, com suas rimas fortes, muito bem trabalhadas e retrabalhadas, tira leite das pedras.
Eu poderia dizer: o poeta inventa, cria e recria um simulacro para sua própria verdade; ou ainda, o poeta cria substratos de uma anomia compulsória. Mas não. Isso não abre as chaves, isso não faz chover, e isso não chove, não molha. Estas palavras não alcançam, quando muito apenas explicam. Como o amor, dor é dor, e está dito. Melhor seria desdizer, para florescer. O livro de Iacir carrega escondido um vasto jardim de delícias latentes para quem quiser ser e estar. É simples. A poesia deste bom poeta reinventa, imagina partes, vestimentas para a o vazio.
Poesia é a melhor muleta, a melhor mula, que é quase um cavalo, que, por sua vez, é o melhor dos bichos. Como do vinho surge a melhor água, sem vice-versa. Só sabe cantar quem esquece. Poesia é isso: uma alavanca para progressões, um aparato, um instrumento – uma arma? – de (duras) delícias e descobertas. Iacyr Anderson Freitas nasceu na cidade mineira de Patrocíno do Muriaé. Publicou vários livros de poesia, ensaio literário e prosa de ficção, tendo recebido várias premiações no Brasil e no exterior.
AR DE ARESTAS
• De Iacyr Anderson Freitas, com fotografias de Ozias Filho
• Editora Escrituras
• 80 páginas, R$ 30
O novo livro de Iacyr, que conta com fotos de Ozias Filho, é uma longa meditação sobre a dor, descrita na sua crueza de realidade inevitável. As desajeitadas mãos do poeta servem para desajustar “minúsculos engates”, servem para descontextulizar, servem para ampliar (tarefa das mais difíceis, embora necessária) o vazio. O poeta redimensiona os números, o zero, os zeros. A palavra incompletude fere com suas pontas, a palavra rude, a palavra indelicada, torna-se, através das mãos delicadas do poeta, branda. Numa alquimia estranha, a palavra brusca perde os seus espinhos.
Como se sabe, para o escultor (dentro de sua alma de artista) existe uma forma insciente, existe uma forma, um corpo, um pássaro pronto dentro de cada pedra. Para o poeta a situação é mais complexa, pois dentro do vazio existe tão somente mais e mais porções de nadas.
Iacyr é, de certa forma, um poeta obscuro, que se sente mais à vontade diante de dificuldades. A tensão elétrica, medida em volts, do coração do poeta não encontra motivos. O problema é o seguinte: o poeta vive coberto de escombros que, para todo caso, é uma palavra linda. O poeta, assim, torna-se criminoso, um assassino de si mesmo, que renasce em cada página.
A posição de um poeta é sempre incômoda: ele está sempre no centro. Ele está sempre em outro lugar. O poeta dorme e acorda sempre no cerne (na parte interna do tronco das árvores, nos recônditos, no âmago da alegria, e da dor). Mesmo quando senta na beira de um rio, o poeta nada no centro de todas as águas, ainda que o lugar da poesia seja uma região adjacente, em todos os sentidos.
As flores nunca formam, as flores nunca serviram de escudo para nada ("pouco adianta empregar/ a expressão à flor da pele"). Existem relâmpagos dentro do escuro, mas a luz que escapa, o que se revela logo se perde, dissipa-se, evapora, vai-se embora, como, por vezes, vai-se embora a esperança. "Desse terror não se escapa/ sem cicatriz ou sequela./ Dos dias perde-se o mapa/ – e o mapa nada revela." Poesia é sinônimo de labirinto. Só entende este início de discurso aquele que porventura viu.
Iacyr potencializa o mal, a dor, para melhor conhecer o inimigo. Não para derrotá-lo, mas para aninhar-se, para melhor encontrar possibilidades de fuga. Existe uma espécie de ausência de proporcionalidade quando o poeta percebe o óbvio. Sem caminho, sem rumo, com uma vereda a ser trilhada, a poesia de Iacyr não mede consequências. A pessoa, quando sente dor, qualquer dor, é a mais solitária A alegria agrega, a dor restringe. A dor é o fato mais consumado.
A trajetória descrita por um astro em torno de outro, vista de longe, gera espanto e causa dissabor. O poeta aceitou o desafio de examinar a vida crua, o sol exposto. O poeta, sem pensar, encara o céu de frente. "Um sol que saiba pulsar,/ saiba ferir sem calor,/ ruminando com esgar/ até mesmo a própria dor." Iacyr deixa de lado, fecha um baú de promessas, aquele céu irreal de anjos e fadas. O mar, para Iacyr, ganha outros tamanhos e amplos sentidos. O mar "perde" a sua aura inocente: "É sal somente." As sementes deixam de ser meras sementes e deixam de lado promessas revestidas de benesse: "E possa alguma semente/ vingar da desesperança,/ embora ninguém atente/ ao incêndio que a alcança." Iacyr queimou-se num fogo brando, mas persistente. Fogo será sempre fogo. A vida é cheia de quinas. Em cada plano, em cada sonho existem armadilhas feitas de pontas e pregos.
Entre sombras Outra situação, não menos impactante. As fotografias de Ozias Filho muito servem para indicar o caminho das pedras. Sombrias, belíssimas, as imagens, ao final de cada poema, cumprem uma missão inglória, pois pegam os olhos de leitor para não deixá-lo respirar. As imagens carregam doses extremas de claustrofobia. Elas causam um incômodo estranho, necessário para o contexto intrincado dos poemas, numa bela e intensa profusão de teias, fios e amaranhados sinistros. Em fevereiro de 2012, na Universidade de Lisboa, o ainda inédito Ar de arestas foi traduzido para a linguagem corporal do Laboratório de Movimento e Performance I’Mmoving, coordenado pela coreógrafa Marina Frangioia. Os frutos dessa ousadia impregnaram as lentes do fotógrafo Ozias Filho e se encontram registrados no livro.
"O delírio desgoverna." Um bicho com fome, quando come, uma serpente dando o bote, o barulho de um trovão. Eis algumas frações do que existe de mais puro, de mais visceral. Eis um retrato fidedigno da vida captado pelo poeta Iacyr, "até que se ouça o refrão/ de oito infernos resumidos." Iacyr não brinca em serviço, não mede esforços e dispensa qualquer analgesia. Iacyr fala, escancara um processo feito de dores, de situações extremas, "rompe-se o dique de um rio/ todo coberto de mortos". Mas Iacyr sabe dos seus limites. Seu estilo (extremamente fino) passa longe do grotesco, do mau gosto, do exagero e do verso fácil. Iacyr, com suas rimas fortes, muito bem trabalhadas e retrabalhadas, tira leite das pedras.
Eu poderia dizer: o poeta inventa, cria e recria um simulacro para sua própria verdade; ou ainda, o poeta cria substratos de uma anomia compulsória. Mas não. Isso não abre as chaves, isso não faz chover, e isso não chove, não molha. Estas palavras não alcançam, quando muito apenas explicam. Como o amor, dor é dor, e está dito. Melhor seria desdizer, para florescer. O livro de Iacir carrega escondido um vasto jardim de delícias latentes para quem quiser ser e estar. É simples. A poesia deste bom poeta reinventa, imagina partes, vestimentas para a o vazio.
Poesia é a melhor muleta, a melhor mula, que é quase um cavalo, que, por sua vez, é o melhor dos bichos. Como do vinho surge a melhor água, sem vice-versa. Só sabe cantar quem esquece. Poesia é isso: uma alavanca para progressões, um aparato, um instrumento – uma arma? – de (duras) delícias e descobertas. Iacyr Anderson Freitas nasceu na cidade mineira de Patrocíno do Muriaé. Publicou vários livros de poesia, ensaio literário e prosa de ficção, tendo recebido várias premiações no Brasil e no exterior.
AR DE ARESTAS
• De Iacyr Anderson Freitas, com fotografias de Ozias Filho
• Editora Escrituras
• 80 páginas, R$ 30
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