sábado, 7 de setembro de 2013

Rubens Goyatá-O grito e o mito‏

Independência brasileira, ao contrário da fórmula da conciliação pacífica feita pelo alto e decretada por um único gesto, cobrou sangue e sacrifício do povo, em movimentos difusos de protesto durante décadas


Rubens Goyatá Campante


Estado de Minas: 07/09/2013 


 (YASUYOSHI CHIBA/AFP)


Há 191, em 7 de setembro de 1822, um jovem de 23 anos, Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pasqual Sipriano Serafim de Bragança e Bourbon, filho do rei de Portugal, D. João VI, e príncipe regente do Brasil, leu, indignado, no caminho de Santos a São Paulo, correspondência das cortes lusitanas que lhe tiravam a condição de regente do Brasil e determinavam que doravante seus ministros seriam designados em Portugal, e que eram traidores da pátria todos os que apoiavam sua recusa, em janeiro daquele ano, de obedecer às ordens de regressar a Lisboa. O príncipe, então, desembainhou a espada e, do alto de seu cavalo, gritou para sua comitiva e para as margens plácidas do Riacho Ipiranga: “Brasileiros, de hoje em diante nosso lema será: independência ou morte”.

E a história se encarregou, depois, de transformar o 7 de setembro de 1822 na data nacional da Independência brasileira. Sabe-se que o processo começou antes, que um marco essencial foi a vinda da corte lusa para o Brasil, em 1808, fugindo das guerras e invasões napoleônicas na Europa, trazendo para a colônia americana um impulso unificador e de progresso material, alçando-a politicamente à condição de Reino Unido de Portugal, mas, por outro lado, reforçando uma herança estatal e administrativa obsoleta, parasitária e patrimonialista. Também não é segredo que, para a maior parte da elite brasileira, era satisfatória a condição do Brasil como Reino Unido, e que o estopim da separação foram as intenções do movimento liberal e constitucionalista português de 1820 de recolonizar e fragmentar as possessões americanas e de privar seus nativos do acesso a cargos administrativos de comando.

Por fim, são bem conhecidas as vicissitudes da Independência: a dissolução, pelo príncipe que assumira o trono brasileiro com o nome de D. Pedro I, da assembleia constituinte que resistia a seu projeto centralizador e a outorga, por ele, em 1824, de uma Constituição que trazia pinceladas de preceitos formalmente liberais e limitadamente representativos, em voga na época, embebidos pela instituição autoritária do Poder Moderador, exercido pelo monarca, cuja pessoa e vontade estavam acima e além de qualquer lei ou poder do Estado. E assim Pedro I, ao jurar defender a Constituição, prometeu fazê-lo “se ela fosse digna do Brasil e dele próprio”.

Este encaminhamento conservador da Independência, com seus claros elementos de continuísmo (mesmo regime monárquico, em contraste com a opção das ex-colônias espanholas pela República, com a mesma família no poder e praticamente a mesma estrutura político-institucional e sócio-econômica), levou diversos analistas a salientar o caráter elitista, ordeiro, pouco traumático, da Independência brasileira. Com a constituição outorgada de 1824 a nova nação já estaria estabelecida, a partir de uma clássica conciliação por cima, entre elites, prenúncio de uma tradição que marcaria nosso trajeto e cuja contraparte da feição oligárquica seria a apatia popular. Uma frase de Caio Prado Jr. sintetiza esse tipo de interpretação: “Fez-se a Independência praticamente à revelia do povo, e se isto lhe poupou sacrifícios, também afastou por completo sua participação na nova ordem política”.

Não foi bem assim, e para se relativizar tal avaliação é preciso compreender a Independência como o processo de transformação da América colonial portuguesa em uma nação unitária chamada Brasil. Essa colocação, aparentemente mero truísmo, faz-se necessária quando se percebe que tal processo foi mais lento do que comumente se pensa, não tendo se esgotado em 1822 ou 1824, que não foi “natural” em seus antecedentes nem previamente garantido em suas consequências, e, finalmente, que essa lentidão e incerteza devem-se fundamentalmente ao fato de que ele envolveu, sim, participação popular, lutas e sacrifícios.

Patrimonialismo


Certas interpretações históricas partem, explícita ou implicitamente, do falso pressuposto de que essa entidade nacional chamada Brasil já existia nos tempos coloniais, já estava pronta, madura, a ansiar pelo momento oportuno da emancipação do jugo colonial. Até fins do século 18 anseios de emancipação havia, como o demonstram a Inconfidência mineira ou a Conjuração baiana de 1798, mas não tinham o sentido de construção de uma nacionalidade brasileira. Era débil a ideia de Brasil na virada do século 18 para o 19. Seu primeiro impulso, como vimos, foi a chegada da corte lusa e a promoção política da área colonial, como um todo, a Reino Unido de Portugal, e foi entre a camada realmente privilegiada por esta ascensão política e econômica, as diversas elites regionais e urbanas, que a ideia começou a medrar, concorrendo, para tanto, sua tendência a uma socialização comum nas poucas universidades lusas e, depois, locais disponíveis para a educação superior. Logo depois, Pedro I, em seu breve reinado, contribuiu, certamente de forma involuntária, para reforçar o nativismo brasileiro ao governar cercando-se quase completamente de elementos portugueses – o acesso a altos cargos administrativos é, na tradição patrimonialista luso-brasileira, um elemento crucial de riqueza e poder e, assim, um fator político de primeira ordem.

Se o sentimento nacional, portanto, construiu-se de forma lenta e incerta – e, num primeiro momento, basicamente no seio das oligarquias, e mais especificamente das oligarquias urbanas e letradas do Sudeste –, acrescente-se que o processo de consolidação nacional só se viu realmente garantido em 1840, com a coroação precoce de Pedro II, aos 15 anos, fruto da decisão da maior parte da elite brasileira, especialmente de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro, de usar a legitimidade monárquica para combater as tendências rebeldes e centrífugas que ameaçavam a unidade nacional.

Depois da abdicação de Pedro I, em 1831, desmoralizado pela ojeriza que seu lusitanismo despertava, pela caótica situação econômica do país, e pelas desastradas intervenções militares na região platina, a regência ensaiou a implantação de instituições jurídicas e políticas liberais. Promulgaram-se o Código Criminal e o Código de Processo Criminal, avançados para a época, especialmente o segundo, ao prever uma organização judiciária local de caráter eletivo e participativo; instituiu-se o Ato Adicional, que visava mitigar o centralismo da Constituição de 1824. Não deu certo. O Ato Adicional era vago e confuso, não dividia com rigor as competências centrais e regionais e, nos âmbitos locais, nos rincões de uma nação essencialmente rural, com uma população absolutamente vulnerável ao poder dos latifundiários, estes logo se assenhorearam dos cargos judiciários eletivos, aumentando seu poder despótico e centrífugo e tornando letra morta as leis garantidoras de direitos individuais – o início de outra triste tradição brasileira, a da distância entre o país legal e o país real.

Com a crise profunda e as inúmeras rebeliões separatistas, quase todas com participação popular expressiva, a maioria dos antigos liberais reviu suas posições e passou a postular a ordem e a centralização como forma de evitar a “anarquia” que punha em perigo não só a unidade do país, mas a própria estrutura social de poder, lastreada na escravidão, ameaçada não só interna mas externamente, pela pressão do compromisso assumido com a poderosa Inglaterra de acabar com ela. Um famoso discurso do político mineiro Bernardo Vasconcelos sintetiza a visão deste momento: “Fui liberal; então a liberdade era nova no país, estava nas aspirações de todos, mas não nas leis, o poder era tudo: fui liberal. Hoje, porém, é diverso o aspecto da sociedade: os princípios democráticos tudo ganharam e muito comprometeram; a sociedade, que então corria risco pelo poder corre agora risco pela desorganização e pela anarquia”.

E para combater a desorganização, o separatismo e a anarquia implantaram-se as bases do Segundo Reinado: no plano político, o liberalismo estritamente dentro da ordem, somente como referência organizadora e legitimadora da administração pública e da economia de propriedade privada, neutralizada sua potencialidade de propiciar um alargamento, mesmo que a princípio limitado, das bases sociais do poder por meio da garantia efetiva de certas liberdades e direitos individuais; no plano social, cultural e econômico, o predomínio do latifúndio, do patriarcalismo, da cultura do favor e da escravidão.

Milhares de mortos


Mas não foi sobre a inação e o silêncio popular que esta solução conservadora e elitista foi erigida, mas sobre sua repressão, como reação e prevenção à participação popular. Na primeira metade do século 19 o país foi convulsionado por uma série de guerras, levantes, protestos, rebeliões. Na Independência houve lutas armadas nas províncias com alta população lusa, que resistiam à separação, como Maranhão, Piauí, Pará e principalmente na Bahia, a mais difícil de todas. Em Pernambuco, houve a Revolução de 1817, ainda sob D. João VI, a Confederação do Equador, em 1824, reação ao autoritarismo centralista da Constituição de 1824, o movimento rural dos cabanos, em 1831, precursor de episódios como o de Canudos, e a Revolução Praieira de 1848, já no governo de Pedro II. Na Bahia, diversas revoltas dos negros islamizados nagôs e malês, ao longo das décadas de 1820 e 1830, sempre duramente reprimidas, e a rebelião federalista e republicana chamada Sabinada, na regência, em que boa parte de Salvador foi incendiada e na qual morreram entre 2 a 4 mil pessoas, numa população de cerca de 60 mil habitantes. No Maranhão, assistiu-se, durante a regência, à revolta popular apelidada de Balaiada, que contou, inclusive, com uma milícia negra de 3 mil escravos fugidos: foi sufocada com o saldo de 5 mil mortos. No Rio Grande do Sul, o conflito mais longo de todos, a Guerra dos Farrapos, de 1835 a 1845, que também cobrou pesado tributo de sangue. E no Pará, a revolta mais sangrenta, a Cabanagem, em 1835: os números apontam 30 mil a 40 mil vítimas, mais de 20% da população de uma província de 150 mil habitantes. E isso sem falar nos inúmeros motins, sedições militares, quebra-quebras, assassinatos por todo o país.

Corretas, portanto, as palavras do grande historiador Francisco Iglesias sobre a Independência: “Não se veja no episódio uma simples parada, uma festa. Se não houve aqui as batalhas vistosas da guerra pela emancipação das colônias espanholas, se a separação não foi tão cruenta, de fato custou sangue, sacrifícios”.

Sim, o povo deu sua cota de sangue e sacrifícios. Porém, suas condições e seus recursos – em sentido mais amplo possível: econômicos, políticos, militares, cognitivos – eram problemáticos. Seus horizontes eram limitados, não, é claro, por uma espécie de “culpa” própria, intrínseca, mas pelo grau de evolução e maturidade em que se encontrava. Assim, seus objetivos eram difusos e amorfos, sua avaliação dos problemas próprios e do país era superficial. O que havia de mais organizado e organizável eram as elites, eram elas que tinham metas mais objetivas, que se encontravam razoavelmente formadas e que acabaram por formar as instituições da economia, do poder e do Estado à sua imagem e semelhança. Consubstanciou-se, assim, em nosso nascedouro, o divórcio entre o Estado e a nação, o poder e o povo.

Ainda hoje tal divórcio se mantém, apesar da pressão popular, das demandas éticas para que o Estado e o poder se aproximem da nação e do povo. As recentes manifestações de protesto expressam tais pressões e demandas éticas. Resta saber se se superou a limitação de horizontes e a superficialidade da avaliação dos problemas próprios e do país que caracterizaram e dificultaram a participação popular 200 anos atrás.


Rubens Goyatá Campante é doutor em ciências políticas pela UFMG e pesquisador do Núcleo de Pesquisas do TRT 3ª Região.

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