domingo, 6 de outubro de 2013

A classe média vai ao SUS em busca do paraíso‏

A classe média vai ao SUS em busca do paraíso Para realizar o sonho da maternidade, casais de maior poder aquisitivo têm cada vez mais procurado serviços de reprodução assistida como o do HC/UFMG. Na rede privada, tentativas custam até R$ 20 mil 

Valquiria Lopes

Estado de Minas: 06/10/2013


A unidade pública tem qualidade reconhecida, mas pacientes ainda arcam com custo de medicamentos (Jair Amaral/EM/D.A.Press )
A unidade pública tem qualidade reconhecida, mas pacientes ainda arcam com custo de medicamentos

Três anos de espera e uma tentativa sem sucesso estão sendo substituídos pela expectativa de que a cegonha chegue em breve à casa da médica Fernanda Gomes dos Reis, de 36 anos. Por lá, o clima é de torcida pelo sucesso da próxima fertilização in vitro, marcada para este mês no Hospital das Clínicas da UFMG, em Belo Horizonte. O preparo do quarto do bebê também é aguardado pela fisioterapeuta K.N.F.M, de 35. Ela acabou de ser chamada pelo HC para dar início ao processo de reprodução assistida, após três anos e meio na fila. Unidas a essas mulheres pelo sonho da maternidade, a consultora hospitalar Lisete Beatriz Nunes Bárbara, de 35, e a analista de recursos humanos Poliana Nara Moreira Castro, de 33, passarão por nova tentativa de engravidar. Em comum, Fernanda, K., Lisete e Poliana têm mais do que a vontade de ser mães. As quatro, com dificuldade para engravidar naturalmente, fazem parte de um grupo da classe média que trocou os tratamentos particulares de alto custo pela busca do sonho da maternidade na rede pública. Com os maridos, estão em uma fila de mais de 1,2 mil casais que aguardam o procedimento na única unidade do estado a oferecer a reprodução assistida gratuita. Para lidar com a espera, se apoiam no exemplo de quem percorreu todo o caminho com sucesso, como a assistente administrativa Fernanda Lemos, de 24, que comemora o sétimo mês de gravidez.

A inspiração é importante, principalmente porque as pacientes sabem que o tempo é o maior inimigo no processo, já que as chances de engravidar diminuem com a idade. Mas outro motivo que as encoraja é não se disporem mais a pagar os valores cobrados na rede particular. Nas poucas clínicas em Belo Horizonte que trabalham com reprodução humana assistida, o atendimento é imediato, mas os valores variam de R$ 15 mil a R$ 20 mil por tentativa de fertilização in vitro (veja características das técnicas na página 22), independentemente do sucesso.

O preço inclui gastos com medicação, cerca de 25% do total do tratamento. Mesmo na rede pública, os pacientes precisam arcar com o valor dos remédios, que custam de R$ 3 mil a  R$ 5 mil. “Estamos tentando engravidar há 10 anos. Nesse período, passamos por duas inseminações na rede particular e duas fertilizações in vitro e já investimos cerca de R$ 13 mil”, conta Lisete. A consultora reconhece a comodidade da rapidez nas clínicas privadas, mas diz que continuar o tratamento pago implicaria a venda de bens da família. “Teríamos que abrir mão de algumas conquistas e, por isso, preferimos aguardar na rede pública”, diz Lisete, que tem o aval do marido na decisão.

Antes de buscar o Hospital das Clínicas,  Poliana Castro também já tinha sentido nas finanças da família o custo do tratamento, gastando pelo menos R$ 15 mil na primeira tentativa de fertilização in vitro na rede particular. “Precisamos vender o carro, mas ter um filho é um sonho e, para isso, vale a pena”, diz Poliana. Além do fator financeiro, o marido dela, Rodney Passagli, de 37, lembra o desafio psicológico do processo. “O impacto emocional é muito grande, principalmente para a mulher. Parece que a vida da gente para por um tempo”, diz.

Como eles, há cerca de 2,5 mil casais inscritos para fecundação in vitro no Laboratório de Reprodução Humana Aroldo Fernando Camargos, do HC/UMFG. Destes, 1,3 mil já foram chamados. O restante espera uma vaga. Nesse universo, antes quase todo formado por casais de baixa renda, torna-se cada vez mais frequente a presença de pessoas com maior poder aquisitivo, como informa o subcoordenador da unidade, Francisco de Assis Nunes Pereira. “Há pacientes que relatam terem passado pela iniciativa privada e, diante da impossibilidade de continuar a pagar, se inscrevem na fila da rede pública”, explica. Na lista dessas novas pacientes, segundo ele, há advogadas, médicas, arquitetas, engenheiras, entre outras profissionais.

Uma delas é a fisioterapeuta K., de Itaúna, na Região Central de Minas. Com o marido, o empresário A., de 36 anos, ela já investiu cerca de R$ 10,5 mil na esperança de ouvir o chorinho de bebê em casa. Unidos há sete anos, desde 2008 eles tentam engravidar. Em uma clínica particular da capital, arcaram com os custos de dois procedimentos para reversão de vasectomia e uma inseminação artificial, mas não obtiveram sucesso. Depois de três anos na fila do HC, foram chamados na terça-feira para a primeira reunião sobre a técnica da fertilização in vitro.

O casal pretende fazer apenas uma tentativa no HC, por dois motivos: o estresse do processo e o custo da medicação. Pelo menos terão uma chance, já que não teriam condições de pagar pela fertilização na rede particular. “Se não tivéssemos a rede pública, já teríamos desistido. O tratamento é muito caro”, afirma K. Durante a conversa nos corredores do HC, o marido lembra que a irmã dele já gastou mais de R$ 50 mil com tentativas de engravidar. “Não temos condição de fazer o mesmo.”

No caso da médica Fernanda Gomes dos Reis, de 36, foi a certeza da qualidade do serviço na rede pública que pesou na decisão de entrar na fila do HC. Durante os três anos de espera, ela e o marido tentaram sem sucesso a gravidez natural. A médica já passou por uma fertilização in vitro no HC, que não foi bem-sucedida. Agora, prepara-se para implantar embriões que foram congelados na época da primeira intervenção. “Se não der certo, ainda tenho mais duas tentativas. Trabalho na saúde pública e conhecia um pouco do serviço e da qualidade. O fator financeiro também pesou na hora de fazer a escolha pelo HC, pois os valores cobrados nas clínicas particulares são muito elevados”, afirma a médica.
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Onde pousa a cegonha

Confira o passo a passo para ter acesso aos serviços de fertilização

NA REDE PÚBLICA DE BH

>> O casal que tem dificuldade para engravidar deve procurar o serviço público de saúde para se consultar. O primeiro passo é se dirigir ao posto de saúde de sua região
>> Constatada a infertilidade, é feito encaminhamento ao PAM Sagrada Família, onde o casal passa por exames e avaliação
>> No Laboratório de Reprodução Humana do Hospital das Clínicas (HC) os candidatos fazem novos exames e dão início aos tratamentos
>> O protocolo de atendimento exige que seja cumpridas todas essas etapas. Não é possível recorrer diretamente ao HC
>> Apesar de o tratamento ser gratuito, os pacientes precisam bancar o custo da medicação, em torno de R$ 5 mil, por tentativa
>> A espera no HC dura até três anos

NA REDE PARTICULAR
>> A marcação é feita diretamente nas clínicas. O atendimento é pago e imediato

REPRODUÇÃO ASSISTIDA GRATUITA NO BRASIL

>> Hospital das Clínicas da UFMG, em Belo Horizonte
>> Hospital das Clínicas de São Paulo
>> Hospital Pérola Byington, em São Paulo
>> Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (SP)
>> Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre
>> Hospital das Clínicas de Porto Alegre
>> Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira, em Recife
>> Maternidade Escola Januário Cicco, em Natal
>> Hospital Regional da Asa Sul (HRAS), em Brasília


O sonho não está na tabela 
Médico explica que filas enfrentadas no setor público pelos casais que querem engravidar se devem à falta de remuneração pelo SUS para procedimentos de reprodução assistidas

Valquiria Lopes




Reserva de recursos garante o trabalho da equipe do Laboratório do Hospital das Clínicas, mas escassez limita o atendimento (Jair Amaral/EM/D.A.Press )
Reserva de recursos garante o trabalho da equipe do Laboratório do Hospital das Clínicas, mas escassez limita o atendimento

É grande o abismo que separa o número de atendimentos de reprodução assistida nas redes pública e particular. Mesmo com cobrança de valores elevados, as cerca de 3 mil fertilizações in vitro pagas anualmente nas clínicas privadas superam em até 1.400% os 200 procedimentos feitos em média no serviço público a cada ano. A dificuldade de ampliar o atendimento gratuito ou de oferecer a medicação às pacientes vem da falta de recursos específicos para o programa, como explica o subcoordenador do Laboratório de Reprodução Humana do Hospital das Clínicas, Francisco de Assis. Segundo ele, o Sistema Único de Saúde (SUS) não tem em sua tabela a previsão de verbas para reprodução assistida. Todos o trabalho feito em nove hospitais universitários e maternidades no Brasil é custeado por uma reserva de recursos globais que são destinados às unidades pelo Ministério da Saúde.

“Se houvesse um código de pagamento para reprodução humana, assim como há para cirurgias, consultas e outros procedimentos, seria possível ampliar a oferta. Como o SUS não tem essa destinação específica, o serviço fica limitado”, explica o subcoordenador. Em 2011, a direção do HC encaminhou um projeto ao Ministério da Saúde pedindo a inclusão do tratamento na remuneração do setor púbico, mas ainda aguarda atendimento.

INVESTIMENTO Mesmo com a oferta do procedimento no serviço público, quem se submete ao período de dois a três anos de espera no HC precisa ter dinheiro em caixa. Para custear as injeções de hormônios que estimulam a ovulação e outros medicamentos, os casais precisam reservar entre R$ 3 mil e R$ 5 mil. “O valor é alto e afasta do tratamento quem não tem esse recurso”, diz a analista de recursos humanos Poliana Nara Moreira Castro, de 33 anos, que deixou a rede particular para tentar engravidar com o tratamento na rede pública.

O procedimento ainda mais caro no setor privado também afastou a assistente administrativa Fernanda Lemos das unidades particulares. Ela e o marido aguardaram por dois anos na fila do HC e hoje se preparam para receber o fruto da espera e do esforço. “Foram seis meses de tratamento e graças a Deus conseguimos na primeira tentativa”, diz o marido de Fernanda, Cláudio Lemos, de 48. Ela celebra a gravidez e diz que a filha é um presente muito esperado. Sobre a fertilização no HC, o casal só tem elogios. “Fomos muito bem tratados e toda a equipe é muito profissional”, atestam.

CUSTOS Apesar de serem considerados caros pela população, os preços da reprodução assistida na rede particular não são abusivos, de acordo com o médico Francisco de Assis, do HC. Ele explica que a rede pública é uma saída para quem não tem condições para arcar com todo o tratamento, mas que os valores nas clínicas privadas são justos.

A ginecologista Érica Becker, da clínica Pró-Criar Medicina Reprodutiva, explica as razões do custo elevado. “A reprodução assistida requer tecnologia de ponta, insumos e materiais caros e quase sempre importados, além de mão de obra especializada”, diz. Segundo ela, embora a formação de profissionais em reprodução humana esteja crescendo, a oferta de funcionários, incluindo médicos, biólogos e enfermeiros, entre outros, ainda é pequena.

Da experiência do dia a dia, a médica diz observar dois fluxos no atendimento. Um deles é o de casais que se cansam de esperar na fila do serviço público e, pela ansiedade em engravidar, pagam pelo tratamento particular. “Mas há também quem esgota as fontes de recurso e parte para o tratamento no serviço público.”

Uma alternativa encontrada pela clínica para ampliar o acesso ao tratamento foi a criação de um programa de descontos que leva em consideração a renda do casal. De acordo com o rendimento, eles podem ter até 50% de desconto no serviço de fertilização in vitro, que chega a custar R$ 15 mil. “O casal passa por uma avaliação socioeconômica detalhada e pode fazer o tratamento em até três meses”, afirma a médica. Atualmente, cerca de 13% dos atendimentos realizados pela clínica são feitos pelo programa, que teve início em 2007. Segundo ela, as taxas de sucesso de gravidez nos procedimentos chegam a 60% na faixa etária em torno dos 35 anos.

SEM PREVISÃO O Ministério da Saúde informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que em alguns serviços da Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida, o tratamento é totalmente oferecido pelo SUS, via financiamento das secretarias estaduais e municipais de Saúde, recursos de pesquisas e emendas parlamentares. O financiamento também pode vir do próprio recurso repassado aos hospitais.

Em outros serviços, somente parte do tratamento é oferecido pelo SUS. O ministério informou também que tem feito estudos sobre técnicas, insumos e medicamentos que devem ser incorporados ao sistema público, a fim de atender casos de infertilidade ou de doenças infectocontagiosas e genéticas. Mas ainda não há previsão de implantação.


HISTÓRIA DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA

25 de Julho – 1978 - Nasce em Manchester, na Inglaterra, Louise Brown, o primeiro bebê de proveta do mundo
1983 - Nasce o primeiro bebê de proveta no Brasil. Foi o primeiro nascimento usando óvulos doados
1984 - Nasce, na Austrália, o primeiro bebê após descongelamento de embrião
1987- Primeiro nascimento após o uso de óvulo congelado
1989 - Nasce o primeiro bebê de proveta de Minas Gerais
1993 - Primeira fertilização pela técnica de  injeção intracitoplasmática de espermatozóides
2003 - Nasce o primeiro bebê pela técnica de útero de substituição (popularmente conhecida como barriga de aluguel) em Minas Gerais
2004/Maio - Avó dá à luz pela técnica de útero de substituição em Minas Gerais
2008/Maio - Primeiro nascimento (gêmeos) com óvulos congelados em Minas Gerais
Fonte: Clínica Pró-Criare Reprodução Assistida

TIRA-DÚVIDAS
O que é infertilidade?
>> Incapacidade de engravidar após pelo menos um ano de tentativas, sem o uso de métodos contraceptivos e com atividade sexual regular (pelo menos duas relações sexuais por semana com intervalo de 2 a 3 dias). Há casais que não têm dificuldades em engravidar, mas apresentam perdas recorrentes do bebê.

Qual é a taxa de infertilidade entre a população brasileira?
>> Normalmente, 85% dos casais alcançam uma gravidez após um ano e meio de tentativa (12 a 18 meses) sem uso de métodos contraceptivos. Após esse período, 15% dos casais precisam de assistência médica especializada.

Qual é a parcela dos fatores masculino e feminino para infertilidade?
>> A mulher contribui com 40% das causas e o homem é responsável por outros 40%. Os 20% restantes têm origens mistas. 

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