domingo, 6 de outubro de 2013

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » Amadurecendo com as pedras‏

Estado de MInas: 06/10/2013 



Do lado de fora da casa, umas pedras. Muitas pedras. E de muitos tamanhos. Estamos chegando à casa-ateliê de um escultor. Há também flores. Pedras e flores. E o amor-perfeito, que floresce bem no inverno aqui em Bento Gonçalves. Entramos nessa casa (fora da cidade) e damos de cara com um estúdio onde estão expostas obras de Bez Batti. Os amigos o chamam de João, seu primeiro nome.

Cabelos brancos, simples. Dizem que foi carteiro. Conheciam-no apenas como o carteiro João. Mas era um condenado à arte. As pedras o olhavam. Ele olhava as pedras. Havia uma tensão amorosa entre eles. Um dia se encontrariam como a pedra e a água que se moldam na correnteza do rio.

Ontem ele esteve ao meu lado, calado, assistindo à abertura do Festival Internacional de Poesia (em que homenagearam Marina Colasanti). As coisas sucediam no palco, poetas, atores e mímicos se apresentavam e ele estava ali ao meu lado, mas eu não conhecia suas obras. Erro meu. Tenho errado muito com meus desconhecimentos.

Agora em sua casa/ateliê, constato: é um escultor visceral. E modesto. Trabalha no duro, sobre o dificílimo, nesta pedra chamada basalto de cor escura, na verdade quase intrabalhável. Ele diz que os egípcios esculpiam essa pedra enquanto os gregos preferiam o mármore. Mas o mármore é frágil, as esculturas gregas têm marcas dessa destruição temporal.

Andando por seu ateliê vendo a transformação que opera sobre a matéria bruta, falamos sobre arte. Surpreendo-me: vejo sobre a mesa o exemplar do O enigma vazio, que furtivamente autografo para ele. Guimarães Rosa dizia aquela frase (que o Israel Vargas colocou em sua tese sobre física nuclear: “Quem mói no aspr’o não fantaseia”). A frase tem sabedoria, mas, tirada do contexto, pode ser contestada: o escultor que trabalha no “aspr’ o” também “ fantaseia” que nem o poeta.

E Bez Batti, desanimado diante do que apresentam como arte nas galerias e bienais, me pergunta:

– Você acha que ainda pode haver um novo Renascimento?

Questão prenhe de dilacerações. Como seria bom que as artes conhecessem novo florescimento! Como seria bom que saíssemos desse “nonada” em que as artes se meteram no século 20 e redescobríssemos o passado, como fizeram os mestres do Renascimento!

Bez Batti ama Matisse. Também acha que Picasso pilhava obras alheias. Lembrei-me daquela frase de Picasso: “Não procuro, acho”. Claro, ele via o que Matisse, Juan Griz e Cézanne estavam fazendo e fazia sua “releitura”. Com talento, claro.

O que um poeta pode aprender com um escultor? Quais as lições da pedra?

Um dia, junto com Rubem Braga, visitei o ateliê do escultor gaúcho Francisco Stockinger. E esse disse uma coisa que gravei: as pedras amadurecem. Há pedras verdes e maduras. O problema é que temos pouco tempo de vida para ver as transformações milenares da pedra. Uma vez, no Deserto do Atacama, no Chile, contemplei abismado as pedras que ali estavam amadurecendo há milhões de anos. Quando eu desaparecer, elas continuarão sua intemporal trajetória.

Bez Batti nos mostra algo assombroso. Uma pedra de milhões de anos que tem dentro de si uma poça d’água. Exatamente. Por sortilégios vários a água filtrou-se pedra adentro e ficou ali retida. Assombroso: uma pedra com água dentro. A água se move atrás da superfície polida da pedra. Há milhões e milhões de anos. O líquido e o sólido num só corpo.

Olho aquilo. Tomo a pedra com água dentro em minhas mãos. É metáfora viva, a convivência dos opostos e dos elementos complementares. A pedra tem lições a dar mesmo nos desertos. A água nos dá sempre lições de vida, com seus ventos e tormentos. E prossegue nos esculpindo.

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