Escritores de fundo de quintal são chatíssimos; escritores maiores são insuportáveis
Eduardo Almeida Reis
Estado de Minas: 04/01/2014
Pergunto ao caro,
preclaro e pacientíssimo leitor: você tem pressentimentos? Já passei da
idade de acreditar em bobagens, mas há pressentimentos inteligentes. Dia
desses, viagem marcada para BH, automóvel emprestado, motorista
contratado, o mundo veio abaixo. Em lugar do automóvel havia necessidade
de uma Arca de Noé para transportar animais do mesmo sexo. Estrada em
petição de miséria. Chovia a cântaros, canivetes e o mais que se possa
imaginar. Paguei a diária do cinesíforo e desisti da aventura.
O querido Mário Barbosa, orador dos mais brilhantes que conheci, dormiu em sua granja na noite de 31 de março de 1964. Dia seguinte precisava trabalhar em Três Rios, RJ, onde tinha seus muitos negócios urbanos. Entre a granja e a cidade havia uma ponte na antiga BR-3. Depois de ouvir o rádio e ver a passagem das tropas, mandou seu Antônio, de bicicleta, ver como estava a situação na ponte.
Uma hora depois volta pedalando o excelente Antônio: “Lá na ponte, doutor Mário, tudo resolvido: não passa mosquito”. Pronto: situação resolvida. O granjeiro tirou a roupa de cidade e foi cuidar dos coelhos e das vacas holandesas malhadas de vermelho.
Sem coelhos ou vacas, decidi adiar a viagem. Telefonei desmarcando a consulta médica, abri nova caixa de Cohibas Siglo VI e me deixei ficar quieto pensando na morte da bezerra, das muitas bezerras que morrem por aí.
Aldeia
“Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia” é frase atribuída ao russo Lev Nikolatevich Tolstoi (1828-1910), que conhecemos como Leon Tolstoi, autor de dois clássicos da literatura universal: Guerra e Paz e Anna Karenina.
Em 1862 casou-se e teve 13 filhos com Sophia Andreievna Bers, aos trancos e barrancos, durante 15 anos, quando escreveu os romances que o celebrizaram. Escritores de fundo de quintal são chatíssimos; escritores maiores são insuportáveis. Sophia Andreievna deve ter comido o pão que o diabo amassou, porque Tolstoi, além de gênio, era meio maluco. Não tinha o equilíbrio emocional do nosso Paulo Coelho, da Academia Brasileira de Letras, sodalício em que divide o espaço com José Sarney.
Se me ponho a falar da genialidade do Mago e do autor de Marimbondos de Fogo perco o fio da meada no meado deste belo suelto, que se deve concentrar na frase de Tolstoi: pintando tua aldeia, serás universal. Releva notar que a aldeia russa do século 19 não chegava aos pés da Belo Horizonte da mudança do século 20 para o 21.
Nela, já madurinho, morei 16 anos e precisaria de meio século, escrevendo oito horas por dia, para contar pequena parte do que vi e soube. A complexidade da espécie humana é indescritível, a começar pelo fato de ler Paulo Coelho no original ou traduzido para um sem conto de idiomas.
Fiquei na primeira página de um livro dele, em que conta episódio no Aeroporto do Galeão, quando aplicou sonoro beijo na boca de sua mulher. Livro que peguei na estante da fazenda de um amigo em Francisco Sá, Norte de Minas. Se me não falha a memória, o Mago transportava uma espada e se preparava para embarcar no avião que o levaria para a Europa. Beijo na boca, tudo bem; sonoro é que fica meio difícil. Sonidos são privativos dos puns, nunca dos beijos.
Noticiário
Dia de semana, café tomado, hora e meia de computador. Às oito da matina remedinho, xixizinho, charutinho, noticiário televisivo: pronto, é a pior maneira de começar a jornada. Temos a síntese das tragédias da véspera com o recheio das desgraças do dia ao molho das filas nos hospitais. Na síntese, uma seleção de tristezas, algumas naturais, outras humanas, isto é, desumanas. No recheio, muita coisa ao vivo e em cores.
É impossível que a receita não faça mal à saúde do bobo que liga a tevê matinal. Acho que seria um sucesso de audiência o canal que investisse em noticiário leve, divertido, com um tiquinho de humor inteligente para animar o dia do público telespectador.
Considerando que os horários de começar o dia variam – Proust começava às quatro da tarde – o tal canal poderia funcionar dia e noite na mesma toada. Do enterro interminável de Mandela, por exemplo, só transmitiria a imagem do gaiato que se exibiu sem conhecer a linguagem dos surdos.
O mundo é uma bola
4 de janeiro de 1558: chegada de Mem de Sá ao Brasil. Epa, que todo dia escrevo sobre a chegada de Mem de Sá ao Brasil. Tudo bem, nada contra o irmão do famoso poeta Sá de Miranda, mas sua chegada, do tanto que é citada na Wikipédia, ficou parecendo com o enterro do Nelson Mandela.
Em 1721 foi editado o decreto que confirmava os estatutos da Academia Real de História Portuguesa, como se essa notícia interessasse a alguém que não seja acadêmico da Real, se é que ela ainda existe. Em 1950, a RCA Victor informou que começaria a produzir discos de longa duração, os LPs de vinil.
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