Será que dá para conversar?
João Paulo
Estado de Minas: 04/01/2014
Manifestantes exigem mudanças e fazem das ruas palco de cidadania |
Tomados separadamente, cada um desses momentos exibe um par de opções que se contradizem e se isolam na vida da sociedade. A possibilidade de conversa está anulada pela escolha prévia do lugar do qual se fala. Essa vontade de cisão vem dominando o horizonte. E é por isso que precisamos nos entender melhor – não para anular as distâncias, mas para esclarecer as diferenças.
Não deixa de ser curioso que, nas últimas semanas, tenha surgido em diferentes campos dos meios de comunicação um debate sobre a antiga polaridade entre esquerda e direita, que até pouco tempo atrás era tida como uma espécie de celacanto. Um site que se identifica com a esquerda, Carta Maior (cartamaior.com.br), criou uma seção especial que leva como título uma pergunta: “O que é ser de esquerda?”. O canal de notícias Globonews, da TV por assinatura, dedicou um programa inteiro, Globonews painel, a defender o espaço da direita na política brasileira, dando voz a estrelas assumidas do conservadorismo, homens ligados a outros veículos da imprensa (Veja e Folha de S. Paulo) e à universidade. Cada espaço – o site e o programa de TV – criou as próprias regras e, por isso, os dois conteúdos não se contrapõem, antes exercitam um diálogo de surdos. Na realidade, a inspiração de ambos os propósitos não atendia ao mesmo problema. Com isso, cada lado tratou de se defender e propor a partir de seu próprio diagnóstico. A esquerda, mais segura eticamente de seu projeto, parece preocupada em aprofundar suas diretrizes em termos de ação prática. Já a direita, de certa forma insatisfeita com o monopólio que parece tomar conta do pensamento progressista na academia, insiste em voltar a questão ao debate conceitual, procurando espaço para propostas que defendam ideias liberais que não se identifiquem com o autoritarismo. A esquerda defende a eficiência de propostas sociais; a direita a moralidade das soluções autonomistas.
Há um jogo em que a agulha do equilíbrio pende ora para a arrogância ora para a autocomiseração. Em vez do diálogo, cada lado se encastela em suas certezas mancas. A esquerda esqueceu a dialética e a direita a racionalidade: a primeira ficou menos inteligente e a outra mais infantil. O melhor exemplo, no entanto, são as eleições. A disputa vem se dando exatamente nos mesmos moldes maniqueístas, sem a contribuição do debate responsável sobre as questões fundamentais do país. O governo se esmera em mostrar o que faz e a oposição em criticar o que está sendo feito. O que pode parecer lógico, no entanto, é apenas a confirmação de uma regressão política: o país e as pessoas ficam em segundo plano.
Assim, se a autoridade visita uma área inundada por enchentes, o que é parte de seu trabalho, vai ser considerada um sensível ou oportunista eleitoreiro, dependendo de onde parte o julgamento. A situação em si, para a qual os dois lados colaboraram de forma negativa (seja nos diferentes níveis de governo ou em gestões anteriores, pois se trata de problemas de longo curso administrativo e que certamente alcançaram diferentes grupos de poder responsáveis pelas áreas inundadas), fica em segundo plano. As pessoas viram números, como baixas em uma guerra.
Se isso se dá no momento da tragédia, vai se tornar ainda mais presente nos debates em torno de outras questões menos sensíveis ao apelo emocional. Não por acaso a substituição do responsável pelo marketing de Aécio Neves é mais notícia que a identificação clara dos responsáveis por seu plano de governo em áreas como saúde e educação, por exemplo. A lógica da eleição, a princípio, não é a da política, mas a do jogo, da estratégia, do combate ao oponente.
Assim, a permanecer o vezo irresponsável de fugir ao debate em razão das primícias do marketing, o ano eleitoral vai ser um período rejeitado pela população. O cidadão já mostrou que, quando se sente alijado da política, encontra sua forma própria de participar. As manifestações de junho do ano passado foram postas a rodar pela recusa da política tradicional; este ano, chegam marcadas pelo mais institucional dos momentos formais da democracia. Se tudo der certo, tem tudo para dar errado.
OUVIR E ESCUTAR
Será que é possível conciliar opostos tão radicais? Ou melhor, será que isso é desejável? É claro que não. As diferenças entre projetos sociais e econômicos precisam ficar cada vez mais explícitas e verdadeiras. Em nome desses projetos distintos (e até mesmo de sua alternância na história), a democracia se justifica como regime viável. O que está ficando de fora do jogo é o saudável espírito de diálogo maduro e responsável.
Nossa tradição nunca foi a da conversa, mas da imposição; poucas vezes do convencimento, muito mais da petição de princípios; raramente da escuta, já que prezamos mais a retórica. Nunca fomos bons ouvintes. Somos, como definiu em outro contexto o filósofo Bernard Williams, adoradores do “fetiche da afirmação”. Gostamos de fórmulas e de palavras de ordem, falamos para nos deliciarmos com o som da própria voz. Em vez de combater com argumentos, ofendemos as pessoas.
Há uma distância entre ouvir e escutar. O primeiro ato é fisiológico, o segundo filosófico. Para escutar é preciso se inclinar ao outro, pesar seu argumento, reavaliar as próprias verdades, dispor-se ao reconhecimento do erro. Numa disputa em que se entra com o ferrenho propósito de discordar, não se passa da audição para a escuta. O meio de debate eletrônico potencializou ainda mais essa surdez argumentativa. Como naqueles eventos comentados acima, só quem se acha de esquerda acessa o portal; só quem se identifica com os convidados do debate assiste ao programa conservador. Não se estabelece a conversa. Além disso, um lado não se lembrou de chamar o outro.
Um dos maiores filósofos de todos os tempos, Platão, desde o século 4 a. C., sabia que dialogar não é apenas confrontar verdades ancestrais, mas construir conhecimento novo. Ele só se expressou em suas obras por meio de diálogos, nos quais os participantes precisam usar toda a inteligência para entender o que o outro tinha a dizer. O mais importante não é ser dono da verdade, mas ajudar a construí-la.
Pode parecer ingênuo defender a conversa no meio do ringue eleitoral. Mas é a única saída. Sem escuta, todos os projetos coletivos tendem a ser marcados por uma visão míope de solidariedade apenas entre os “mais iguais”. É o campo do nós contra eles. Quem ganha leva tudo. No terreno onde a fraqueza é tão universal quanto a força, não interessa que apenas um lado vença, mas que a coletividade saia ganhando, mesmo que um pouco de cada vez. É a diferença entre os conflitos grandiloquentes de Shakespeare e a melancolia sutil das derrotas inevitáveis das tramas de Tchekov. No primeiro caso, contam-se os mortos num cenário de terra arrasada; no segundo, convive-se com a infelicidade entre os vivos que precisam seguir adiante. Sempre é melhor estar vivo. Sempre é preciso seguir adiante.
Temos problemas sérios demais para resolver e não vamos dar conta deles sozinhos. A política deveria ser um eterno lembrete de nossa incapacidade de fazer as coisas de forma isolada e um estímulo para procurar nossa turma. O passo seguinte é menos prazeroso e igualmente necessário: escutar o outro. Nossos iguais nos sustentam, mas é a diferença que nos faz pessoas melhores.
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