Repertório coletivo
O crescente diálogo da história pública com a literatura, o cinema e com a canção popular traz novas formas de pensar o mundo. Parceria entre acadêmicos e artistas reeduca a sociedade
Adriane Vidal Costa, Miriam Hermeto e Rodrigo de Almeida Ferreira
Estado de Minas: 04/01/2014
As relações entre a
história e as diferentes linguagens de produção cultural, como a
literatura, o cinema e a canção popular, não são nenhuma novidade, porém
têm se estreitado e se diversificado sobremaneira nas últimas décadas.
No campo da história pública (que é, por natureza, de interseções), as
vinculações com as linguagens artísticas têm tido lugar significativo e
podem ser analisadas, no mínimo, em duas dimensões: pensar a literatura,
o cinema e a canção popular como meios de veicular a história,
tornando-a acessível a públicos diversos; e produzir conhecimento
histórico, estrito senso, a partir das linguagens específicas de cada
arte, rompendo o primado da narrativa historiográfica escrita.
Cada tipo de narrador – o cancionista, o literato, o cineasta, o historiador – apresenta o material histórico de maneira diferente, pois cada forma discursiva tem identidade e função social próprias. Reconhecer suas especificidades não impede a percepção de que as narrativas podem ser construídas nas fronteiras, concebidas como espaços privilegiados para estabelecer laços, trocas, intercâmbios – e não como um dado rígido e intransponível.
Socialmente, uma das formas usuais de atribuir legitimidade ao discurso historiográfico é seu enquadramento na categoria de “histórico” em oposição à categoria “ficcional”. Embora partilhem de recursos discursivos comuns, é fato que a história e a ficção têm metas distintas, com diferentes resultados. O discurso ficcional põe a verdade entre parênteses, enquanto a história procura fixá-la como conhecimento sobre o passado, ou seja, prima pela busca da condição de veracidade. Luiz Costa Lima sustenta que ambas as modalidades discursivas “mantêm circuitos dialógicos diferenciados com a realidade”. A ficção tem fronteiras muito mais fluidas que a história e não há limite para a imaginação. Porém, as relações entre história e ficção são mais complexas do que, à primeira vista, o binômio verdadeiro/ falso sugere.
A literatura, mesmo sendo formação discursiva diferenciada da história, nutre-se recorrentemente dessa última. É notório que grandes mudanças históricas provocam inovações na literatura e que os momentos de maior fecundidade literária coincidem com períodos de maior intensidade histórica. Desde a epopeia antiga, a história tem servido frequentemente de inspiração para as mais diferentes formas de produção literária – do poema épico às canções de gesta, do romance medieval ao romance moderno. Podemos, portanto, considerar a apropriação pela literatura (ou pelo literato) da temática da história como aproximação entre essas duas formas discursivas. Outro exercício possível é a assimilação da obra literária pelo contexto histórico em que foi produzida: uma interação do texto ficcional com o contexto no qual se insere, criando novas formas de pensar o mundo.
INSPIRAÇÃO Também o cinema, desde seu surgimento, no fim do século 19, encontra nos acontecimentos históricos uma fonte de inspiração. Os incontáveis títulos de filmes permitem entender – respeitadas as restrições de categorizações – o campo como gênero histórico. Essa categoria costuma ser subdividida em três: ficção que procura recriar o fato histórico; ficção ambientada em momentos passados; e documentário que objetiva o testemunho histórico. Considerando que a história pública prima por ampliar a divulgação da história, reconhece-se o cinema de gênero histórico como um dos seus vetores.
Ao se voltar para o passado, a sétima arte oferece dupla contribuição para o conhecimento histórico: resgata fatos e aspectos menos conhecidos ou de circulação local restrita, além de o impacto de sua narrativa, em decorrência da linguagem audiovisual, ter reconhecido poder de alcance e assimilação. Nesse sentido, considera-se pertinente a observação do historiador Robert Rosenstone de que grande parte do conhecimento histórico se consolida para além do espaço escolar a partir das produções cinematográficas.
No entanto, a relação entre o filme de gênero histórico e a história pública não se restringe a recriar o passado por meio da linguagem audiovisual. A fita inspirada na história dialoga com outras fontes narrativas, como a tradição oral, a literatura, a música, a iconografia, o carnaval e, claro, a historiografia. O fundamental é, portanto, problematizar a produção das narrativas históricas realizadas por acadêmicos e não acadêmicos, além de sua relação com a educação histórica, sobretudo não escolar.
Se ao menos em alguns gêneros do cinema e da literatura são explícitos os laços com a produção do conhecimento histórico, no campo da canção popular brasileira essa relações não costumam ser reconhecidas de forma direta, tampouco legítima. Talvez isso se dê por não serem tantas as canções com temáticas socialmente reconhecidas como “históricas”. Talvez, ainda, porque a produção da canção popular, como o próprio adjetivo que compõe o nome denuncia, não pareça ter suficiente viés de erudição, característica que se costuma atribuir como condição necessária à produção do conhecimento histórico.
CANÇÃO Também nesse caso as imbricações entre história e ficção, arte e ciência são mais complexas do que se pode supor. No Brasil, país de forte tradição oral, a canção popular é parte essencial do repertório da memória coletiva. A “canção crítica” se transformou em forma hegemônica, especialmente a partir da segunda metade do século 20, como salientam, respectivamente, o historiador Marcos Napolitano e a socióloga Santuza Naves. É preciso, portanto, compreender a canção popular como produtora e veiculadora de representações sociais fundamentais na formação da cultura histórica de um tempo.
Ao compreendermos as representações como formas de produzir a vida em sociedade em suas diferentes esferas, há que se considerar a canção popular como uma narrativa que interpreta e constrói o mundo, bem como a existência humana. Deve-se considerar a historicidade das diferentes formas de representação social que essa linguagem constrói, reunindo melodia, texto, ritmo e harmonia: as crônicas do cotidiano e críticas de costumes; as tentativas de trazer para o presente realidades de tempos passados; as expressões de utopias e propostas de novas realidades. Com ampla divulgação de diferentes gêneros musicais, elas expressam valores do tempo em que foram produzidas e as concepções sobre o passado expressam valores históricos, as formas de pensamento e ação humanas na sociedade.
Enfim, podem-se sintetizar questões emblemáticas dessa discussão em três pontos:
Como e por que um artista/escritor (cancionista, cineasta ou literato) transforma a história em seu próprio tema, ou seja, em parte integrante da sua linguagem, fazendo dela matéria estética?
Quais são os meios ou técnicas próprios de cada linguagem que se pode usar para transformar a história em narrativa artística – ou a arte em narrativa histórica?
Como historiadores e professores de história lidam com a produção artística ficcional para compreender as representações sociais e a cultura histórica de determinado tempo e construir suas narrativas?
Essas três questões – que, aliás, se misturam – são problemáticas centrais para a compreensão das relações e articulações entre diferentes linguagens e sua interface com a história pública. Para respondê-las, devemos recorrer às mais diversificadas narrativas históricas, produzidas em diferentes tempos e linguagens.
JANELA Para potencializar essa reflexão, é essencial que o cineasta, o literato, o cancionista, o historiador, o professor e o espectador/leitor reconheçam a natureza de cada produção. Não se deve esperar que um filme, romance ou canção com temática histórica abra a janela pela qual se recupere o passado. Deve-se aproveitar e problematizar as tensões inerentes às representações históricas construídas por um filme, um romance ou uma canção, pois, quando a obra de arte é o artefato em que se desenvolve o processo de história pública, ela não apenas retomará o conhecimento já circulante, mas produzirá uma versão narrativa sobre os acontecimentos passados que poderá se prestar a educação/reeducação histórica da sociedade.
Não se trata de brincar de jogo dos sete erros, mas de evitar a negligência com equívocos históricos representados. A história (ou a sua escritura) não é monopólio dos historiadores, mas está presente em outras linguagens e formas narrativas e pode ser produzida por outros sujeitos. A questão está na atenção ao processo de produção da narrativa e ao resultado: como se escreve (e como se lê) a história e os seus significados.
Adriane Vidal Costa e Miriam Hermeto são professoras-adjuntas da Universidade Federal de Minas Gerais. Rodrigo de Almeida Ferreira é professor do Centro Universitário UNA
Cada tipo de narrador – o cancionista, o literato, o cineasta, o historiador – apresenta o material histórico de maneira diferente, pois cada forma discursiva tem identidade e função social próprias. Reconhecer suas especificidades não impede a percepção de que as narrativas podem ser construídas nas fronteiras, concebidas como espaços privilegiados para estabelecer laços, trocas, intercâmbios – e não como um dado rígido e intransponível.
Socialmente, uma das formas usuais de atribuir legitimidade ao discurso historiográfico é seu enquadramento na categoria de “histórico” em oposição à categoria “ficcional”. Embora partilhem de recursos discursivos comuns, é fato que a história e a ficção têm metas distintas, com diferentes resultados. O discurso ficcional põe a verdade entre parênteses, enquanto a história procura fixá-la como conhecimento sobre o passado, ou seja, prima pela busca da condição de veracidade. Luiz Costa Lima sustenta que ambas as modalidades discursivas “mantêm circuitos dialógicos diferenciados com a realidade”. A ficção tem fronteiras muito mais fluidas que a história e não há limite para a imaginação. Porém, as relações entre história e ficção são mais complexas do que, à primeira vista, o binômio verdadeiro/ falso sugere.
A literatura, mesmo sendo formação discursiva diferenciada da história, nutre-se recorrentemente dessa última. É notório que grandes mudanças históricas provocam inovações na literatura e que os momentos de maior fecundidade literária coincidem com períodos de maior intensidade histórica. Desde a epopeia antiga, a história tem servido frequentemente de inspiração para as mais diferentes formas de produção literária – do poema épico às canções de gesta, do romance medieval ao romance moderno. Podemos, portanto, considerar a apropriação pela literatura (ou pelo literato) da temática da história como aproximação entre essas duas formas discursivas. Outro exercício possível é a assimilação da obra literária pelo contexto histórico em que foi produzida: uma interação do texto ficcional com o contexto no qual se insere, criando novas formas de pensar o mundo.
INSPIRAÇÃO Também o cinema, desde seu surgimento, no fim do século 19, encontra nos acontecimentos históricos uma fonte de inspiração. Os incontáveis títulos de filmes permitem entender – respeitadas as restrições de categorizações – o campo como gênero histórico. Essa categoria costuma ser subdividida em três: ficção que procura recriar o fato histórico; ficção ambientada em momentos passados; e documentário que objetiva o testemunho histórico. Considerando que a história pública prima por ampliar a divulgação da história, reconhece-se o cinema de gênero histórico como um dos seus vetores.
Ao se voltar para o passado, a sétima arte oferece dupla contribuição para o conhecimento histórico: resgata fatos e aspectos menos conhecidos ou de circulação local restrita, além de o impacto de sua narrativa, em decorrência da linguagem audiovisual, ter reconhecido poder de alcance e assimilação. Nesse sentido, considera-se pertinente a observação do historiador Robert Rosenstone de que grande parte do conhecimento histórico se consolida para além do espaço escolar a partir das produções cinematográficas.
No entanto, a relação entre o filme de gênero histórico e a história pública não se restringe a recriar o passado por meio da linguagem audiovisual. A fita inspirada na história dialoga com outras fontes narrativas, como a tradição oral, a literatura, a música, a iconografia, o carnaval e, claro, a historiografia. O fundamental é, portanto, problematizar a produção das narrativas históricas realizadas por acadêmicos e não acadêmicos, além de sua relação com a educação histórica, sobretudo não escolar.
Se ao menos em alguns gêneros do cinema e da literatura são explícitos os laços com a produção do conhecimento histórico, no campo da canção popular brasileira essa relações não costumam ser reconhecidas de forma direta, tampouco legítima. Talvez isso se dê por não serem tantas as canções com temáticas socialmente reconhecidas como “históricas”. Talvez, ainda, porque a produção da canção popular, como o próprio adjetivo que compõe o nome denuncia, não pareça ter suficiente viés de erudição, característica que se costuma atribuir como condição necessária à produção do conhecimento histórico.
CANÇÃO Também nesse caso as imbricações entre história e ficção, arte e ciência são mais complexas do que se pode supor. No Brasil, país de forte tradição oral, a canção popular é parte essencial do repertório da memória coletiva. A “canção crítica” se transformou em forma hegemônica, especialmente a partir da segunda metade do século 20, como salientam, respectivamente, o historiador Marcos Napolitano e a socióloga Santuza Naves. É preciso, portanto, compreender a canção popular como produtora e veiculadora de representações sociais fundamentais na formação da cultura histórica de um tempo.
Ao compreendermos as representações como formas de produzir a vida em sociedade em suas diferentes esferas, há que se considerar a canção popular como uma narrativa que interpreta e constrói o mundo, bem como a existência humana. Deve-se considerar a historicidade das diferentes formas de representação social que essa linguagem constrói, reunindo melodia, texto, ritmo e harmonia: as crônicas do cotidiano e críticas de costumes; as tentativas de trazer para o presente realidades de tempos passados; as expressões de utopias e propostas de novas realidades. Com ampla divulgação de diferentes gêneros musicais, elas expressam valores do tempo em que foram produzidas e as concepções sobre o passado expressam valores históricos, as formas de pensamento e ação humanas na sociedade.
Enfim, podem-se sintetizar questões emblemáticas dessa discussão em três pontos:
Como e por que um artista/escritor (cancionista, cineasta ou literato) transforma a história em seu próprio tema, ou seja, em parte integrante da sua linguagem, fazendo dela matéria estética?
Quais são os meios ou técnicas próprios de cada linguagem que se pode usar para transformar a história em narrativa artística – ou a arte em narrativa histórica?
Como historiadores e professores de história lidam com a produção artística ficcional para compreender as representações sociais e a cultura histórica de determinado tempo e construir suas narrativas?
Essas três questões – que, aliás, se misturam – são problemáticas centrais para a compreensão das relações e articulações entre diferentes linguagens e sua interface com a história pública. Para respondê-las, devemos recorrer às mais diversificadas narrativas históricas, produzidas em diferentes tempos e linguagens.
JANELA Para potencializar essa reflexão, é essencial que o cineasta, o literato, o cancionista, o historiador, o professor e o espectador/leitor reconheçam a natureza de cada produção. Não se deve esperar que um filme, romance ou canção com temática histórica abra a janela pela qual se recupere o passado. Deve-se aproveitar e problematizar as tensões inerentes às representações históricas construídas por um filme, um romance ou uma canção, pois, quando a obra de arte é o artefato em que se desenvolve o processo de história pública, ela não apenas retomará o conhecimento já circulante, mas produzirá uma versão narrativa sobre os acontecimentos passados que poderá se prestar a educação/reeducação histórica da sociedade.
Não se trata de brincar de jogo dos sete erros, mas de evitar a negligência com equívocos históricos representados. A história (ou a sua escritura) não é monopólio dos historiadores, mas está presente em outras linguagens e formas narrativas e pode ser produzida por outros sujeitos. A questão está na atenção ao processo de produção da narrativa e ao resultado: como se escreve (e como se lê) a história e os seus significados.
Adriane Vidal Costa e Miriam Hermeto são professoras-adjuntas da Universidade Federal de Minas Gerais. Rodrigo de Almeida Ferreira é professor do Centro Universitário UNA
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