sábado, 31 de maio de 2014

ENTREVISTA/JOSÉ LUIZ PASSOS » O delírio e o cotidiano‏

Romancista pernambucano fala sobre as tendências e os desafios da ficção brasileira contemporânea


Nahima Maciel
Estado de Minas: 31/05/2014


 (Alfaguara/divulgação)


O diálogo e a descrição são instrumentos importantes para o escritor pernambucano José Luiz Passos. Ao contrário do que pensam muitos críticos, ele não encara a dupla mais antiga da literatura como antiquada ou ultrapassada. São as descrições e os diálogos que fazem de O sonâmbulo amador, ganhador do Prêmio Portugal Telecom 2013 e do II Prêmio Brasília de Literatura, um livro diferente. A narrativa se destacou em meio a uma leva de romances muito marcados por histórias pessoais e universos urbanos e colocou os holofotes sobre Passos, que estreou na ficção com Nosso grão mais fino, em 2009. O sonâmbulo do título é Jurandir, funcionário de uma fábrica de tecidos que se recusa a encarar certos traumas. A narrativa repartida em blocos nos quais o personagem transita entre o delírio dos próprios sonhos, um suposto hospital psiquiátrico e o cotidiano real e cru conduz o leitor para um mundo psicológico que Passos descreve como “do autoengano”.

Professor de literatura e cultura brasileira na Universidade da Califórnia (UCLA) em Los Angeles e radicado nos Estados Unidos há 19 anos, o pernambucano acaba de lançar Romance com pessoas — A imaginação em Machado de Assis, no qual traça um paralelo entre a obra do bruxo do Cosme Velho e a produção de William Shakespeare. A conexão está explícita no fascínio de Machado por Otelo e na ideia do engano associado à traição, fundamental na trama de Dom Casmurro.

Nascido em Catende, no interior de Pernambuco, em 1971, Passos estudou sociologia antes de se embrenhar academicamente pelas letras. Em 1998, depois de concluir o doutorado em Berkeley, uma das unidades da UCLA, a universidade o contratou como professor temporário de literatura brasileira. Em 2007, Passos foi convidado para integrar o corpo docente e, depois de um concurso, passou a ocupar a cadeira permanentemente, dessa vez na unidade de Los Angeles.

Tem-se falado muito que o Brasil vem passando por uma onda de autoficção na literatura contemporânea. Você concorda? O que acha?

Houve algumas obras interessantes e importantes nesse campo nos últimos anos e gerou-se esse debate. Luciana Hidalgo tem escrito sobre isso, Ricardo Lísias também. Tudo depende de como se define autoficção, porque autoficção começa muito antes desse boom brasileiro, ela é muito presente na literatura francesa e argentina, menos na anglo-saxã, mas muito presente na europeia. Acho que a relação da autoficção com a ficção propriamente dita é a de um jogo numa aposta de continuidade entre a matéria representada e a suposta matéria vivida pelo seu autor. O grande risco é você fazer o seu leitor a pensar que autoficção é autobiográfica, porque não é o caso. Os romances de autoficção não são autobiográficos, são sobre os outros, sobre dramas com os quais você simpatiza ou não, pelos quais você sente fascinação. Você se coloca como observador participante, é como aquela metodologia da observação participante de antropologia, em que você entra num sistema cultural, observa um sistema cultural, se acusa em um sistema cultural. Esse estranhamento produz significação, mas você não escreve sobre você. O problema da autoficção é que as pessoas não têm discernimento, não escrevem obras fortes o suficiente e acham que, comentando experiências pontuais meramente autobiográficas, estão fazendo muita evolução no campo da ficção. Não é o caso.

O sonâmbulo amador é um dos poucos livros que trata de uma temática diferente da que vem sendo explorada por boa parte dos jovens autores contemporâneos brasileiros, muito centrados em um drama de classe média com o qual estão familiarizados. Pode contar um pouco sobre o livro?

Acho O sonâmbulo um livro diferente da tendência mais corrente na literatura brasileira, que me parece ser mais urbana, mais voltada para a experiência contemporânea enfatizando questões de identidade, de movimentos sociais, de violência. E O sonâmbulo amador volta para certas estratégias literárias e até semióticas de romances clássicos do nosso cânone, da formação e da deformação do conceito que o indivíduo tem de si mesmo. É o sujeito que está em risco, mas não consegue aceitar esse risco. O livro surge de uma costela de meu primeiro romance, Nosso grão mais fino, que é a história de um químico, e tem um repasse de 40 anos da vida dele e da relação que estabelece com a amante. O capítulo cresceu muito, eu guardei e tive essa vontade de escrever um livro sobre alguém prestes a se aposentar que é forçado a reavaliar sua própria vida.

A descrição também é importante no livro. Alguns textos críticos dizem que o romance contemporâneo não pode se prender a descrições. O que você acha disso? E qual o risco do diálogo? A verossimilhança é importante no romance contemporâneo?

Estava me referindo ao debate sobre a falta de lugar ou a sem razão de narradores oniscientes ou em terceira pessoa na ficção contemporânea. Como se essas técnicas tivessem sido enterradas com o século 19, como se tivessem ficado para trás. Meu argumento é que, na verdade, a ficção contemporânea pode lançar mão de todas essas técnicas desde que a descrição esteja integrada ao movimento da trama, a uma revelação importante sobre a personagem, a um ponto de vista associado ao narrador que não existiria (sem ele). A descrição é parte da ação, não é uma descrição morta, como são alguns dos romances mais clássicos da primeira metade do século 19. É como dizer: “a gente não pode mais usar o verde na pintura contemporânea porque verde significa esperança e não existe mais esperança no mundo contemporâneo”. Não é por aí.

E como isso pode ser interpretado na ficção?

Acho que você pode lançar mão de narradores em terceira pessoa e descrições. E o diálogo, eu acho difícil de dominar. Extremamente difícil, porque na língua portuguesa há esse divórcio tão grande entre o que é oral e o que é escrito, entre a norma culta e a norma falada, entre o coloquial e o erudito. Toda vez que você faz alguém falar, você sofre uma marcação sociolinguística muito forte. É uma opção que o escritor tem que tomar desde o início, e ela é enganosa. Muitas vezes as pessoas acham que os romances têm que falar com a voz contemporânea, coloquial, quando na verdade acho falso supor que uma obra escrita possa ou deva acompanhar a norma falada só porque a norma falada parece mais aderente à realidade. A aderência à realidade é uma convenção da ação literária, então uso uma mescla das duas sem exagero.

Ainda há pouca literatura que trata de questões centrais para uma maioria da população?

A literatura no Brasil sempre foi feita por poucos e para poucos, e isso se explica demograficamente e estatisticamente de modo muito simples: é um país sem hábito de leitura e com índices de analfabetismo muito altos quando comparados a países com a mesma força econômica. E os índices de leitura na nossa elite, particularmente entre os jovens, não são tão representativos assim. O consumo sempre foi mais especializado, um consumo de nichos: você tem o nicho da alta ficção, o nicho dos consumidores e produtores de poesia, o nicho do romance de ação ou aventura, ou do romance rosa. O importante é que, levando-se em conta que a literatura é um direito de todos, que a expressão individual na língua é um direito de todos, que a imaginação é um direito de todos, devemos fazer todo o possível para que essas formas de representação estejam disponíveis para mais e mais pessoas. Por outro lado, os índices atualmente são muito maiores do que há 20, 40 anos, e isso é um sinal de grande progresso e inclusão.

A classe média baixa não está representada na literatura brasileira?

Você pode usar o mesmo argumento: se o romance não representa certas experiências, a pintura cubista também não representa certas experiências. Nem todas as formas de expressão podem representar tudo, porque aí teríamos uma pasteurização de tudo. Seria a mesma coisa que vender produtos que precisam ter a cara do consumidor. A literatura da qual eu gosto é a literatura que me desloca, me desarma, me provoca, é mais difícil, mais densa, tomo mais tempo para passar por esses livros, volto a esses livros. E há outros tipos de literatura. O bom da literatura é que é como a culinária: você não come foie gras e bebe champanhe todos os dias. Eu consumo romances policiais e vejo seriados de televisão, mas também leio Guimarães Rosa e Joyce. Não vejo necessidade de afirmação de uma regra única. A outra questão é mais social, que é o acesso da grande população a esses bens simbólicos como consumidores e como produtores. E, para isso, é preciso tanto uma política de cultura quanto de educação.

Morar fora do Brasil e viver cotidianamente uma outra língua tem influência na sua literatura?

Sou casado com uma pernambucana, tenho dois filhos que falam português em casa, mas minha atuação profissional é muito mediada pela língua inglesa, assim como meu consumo de ficção contemporânea, cinema, tudo. Escrevo ensaios críticos em inglês, poema, ficção, tenho uma peça em inglês. Acho que há uma influência grande, sim, e acho particularmente notável nos dois romances. No primeiro, vários resenhistas destacaram a relação com Faulkner, o romance do Sul dos Estados Unidos, que leio muito. E a ficção do romance inglês está muito presente em O sonâmbulo amador. Romancistas como Henry James, que era americano e se naturalizou inglês, e Kazuo Ishiguro, me influenciaram muito a alcançar esse tom para a voz de Jurandir.

Romance com pessoas

. De José Luiz Passos
. Alfaguara, 400 páginas. R$ 46,90

O sonâmbulo amador
. De José Luiz Passos
. Alfaguara, 270 páginas. R$ 39,90

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