Tomar os céus de assalto
Livro que reúne a poesia completa e as letras de canções de Waly Salomão destaca a obra de um escritor que foi além de todas as escolas estéticas para inquirir a arte e a política de seu tempo
João Paulo
Estado de Minas: 31/05/2014
Sempre heterodoxo e excessivo, Waly Salomão foi reconhecido por seus pares como um criador que aliava alta erudição e criatividade |
Há poetas que fazem versos, e outros que vivem poeticamente. Muito poucos são capazes de juntar as duas artes numa vida só. E o que chama ainda mais atenção é que esses poetas totais costumam partir cedo, como se tanta força criativa sugasse com rapidez sua energia vital. Foi assim com Paulo Leminski (1944-1989), com Ana Cristina César (1952-1983) e com Waly Salomão (1943-2003).
Surgidos a partir dos anos 1960, os três estão com suas obras poéticas completas em novas edições, todas pela Companhia das Letras. Depois de Leminski, com Toda poesia, e Ana Cristina, com o volume Poética, agora é a vez de Waly Salomão, que ganha sua Poesia total. Os três livros seguem padrões semelhantes: reunião de todos os volumes de poemas publicados em vida, estudos que agrupam textos de recepção de primeira hora com ensaios mais abrangentes. Alto nível, como os poetas mereciam.
Ana, Paulo e Waly têm algumas semelhanças, mais externas que propriamente literárias, que talvez até expliquem o sucesso que os livros vêm alcançando com os leitores, chegando a figurar entre os mais vendidos (feito que não realizaram em vida): são poetas que se aproximam da dicção pop, são muito cultos, sem exibir pose, têm comportamento libertário e, cada um a seu jeito, chamam atenção pela personalidade peculiar, meio hippie, meio santa, meio bandida. O que, de certa forma, parece fazer emergir uma saudade do que não temos mais no mundo intelectual. São poetas.
Poesia total, de Waly Salomão, tem tudo para trazer de volta, agora com julgamento mais detido, a importância da lírica do escritor. Homem dado a exageros, com fala dionisíaca e presença cativante, espalhando ideias ao vento como um aedo meio ensandecido, Waly corria o risco de ficar submetido à tirania de sua presença política e cultural. O resgate de seus livros é de certa maneira uma reconfiguração do poeta. Que, de tão intenso, precisou ser dois, criando a persona de Waly Sailormoon.
Baiano de Jequié, ele gostava de se apresentar como herdeiro de duas culturas, a da mãe, sertaneja, e a do pai, sírio. Hiperbólico e brilhante, seu talento escorreu da poesia para a música popular, em parcerias com Macalé, Caetano, Adriana Calcanhotto e João Bosco, entre outros, e para a atuação na arena sempre disputada e polêmica da política cultural. Foi ainda artista visual e diretor de espetáculos (como o emblemático Fa-tal, de Gal Costa).
No campo da atuação pública, foi diretor da Fundação Gregório de Matos, em Salvador, coordenador do carnaval da Bahia (se é que Waly pudesse coordenar algo ou que o carnaval de verdade fosse coordenável), chegando a secretário nacional do livro na gestão do parceiro Gilberto Gil no Ministério da Cultura. O que se destaca, na vida e obra de Waly, é a comunicação entre os dois lados – do ativista e do criador – como expressão do mesmo gesto poético.
O retorno aos livros permite, neste momento, recuperar o que vinha ficando sob outros sedimentos de sentido. Embora libertária e experimental, sua poesia não ficou datada. Há um permanente diálogo com a tradição da poesia brasileira, sobretudo a modernista, mas sem perder em momento algum o empenho pela renovação. Waly, além disso, está sempre em ação para derrubar fronteiras e extrair o máximo da linguagem. É uma poesia que mobiliza a inteligência, na sua aparente improvisação gozosa e por vezes delirante. Nada mais distante de Waly que o desbunde ou a escrita automática dos surrealistas. É um tipo de louco que perdeu tudo, menos a razão, embora recuse todo tipo de cartesianismo.
Poesia total reúne os livros Me segura qu’eu vou dar um troço (1972), Gigolô de bibelôs (1983), Poemas de Armarinho de miudezas (1993), Hélio Oiticica: qual é o parangolé (1996), Algaravias: câmara de ecos (1996), Lábia (1998), Tarifa de embarque (2000) e Pescados vivos (2004). O volume traz ainda uma seção com letras de canções, entre elas uma das mais belas da MPB, Memória da pele, que ganhou melodia de João Bosco em 1989 (“Eu já me esqueci de você, tento crer/ Seu nome, sua cara, seu jeito, seu odor/ Sua casa, sua cama, sua carne, seu suor/ Eu pertenço à raça da pedra dura”).
Completa a edição um importante apêndice com artigos, críticas e ensaios sobre a obra de Waly Salomão. São textos de Francisco Alvim, Paulo Leminski, Armando Freitas Filho, Antonio Cícero, Antonio Risério, Davi Arrigucci Jr., Silviano Santiago, Antonio Media Rodrigues, Alexei Bueno, Walnice Nogueira Galvão, José Miguel Wisnik, Heloísa Buarque de Hollanda e Roberto Zular. A nata da crítica literária brasileira sempre esteve atenta a Waly, como mostram a data dos textos recolhidos: todos seus livros ganharam resenhas críticas importantes e reverentes no calor da hora.
O que chama a atenção na leitura da avaliação crítica ao trabalho de Waly Salomão é a aparente contradição entre uma poesia que surge quase espontânea e a reflexão cuidadosa dos analistas. Para quem pensa que o poeta, tão dado a declamações exuberantes de suas ideias, escrevia aos jorros, os críticos respondem com estudos que buscam sempre apresentar, de forma detalhada, os recursos expressivos e o arsenal de ideias do criador. A boa poesia é aquela que diz sem exibir seus instrumentos; a boa crítica é a que expõe o repertório de méritos do poeta sem lhe tirar o encanto.
Para Francisco Alvim, em resenha sobre o primeiro livro de Waly, Me segura qu’eu vou dar um troço, de 1972, há um empenho retrospectivo (que se refere à Semana de Arte Moderna de 22) e um exercício assumidamente prospectivo na obra de Waly. Ele destaca o trato do poeta com a paródia: “A paródia em Waly tem uma voltagem extradordinária. Talvez por que não seja puramente imitativa, mimética. Distancia-se incrivelmente do objeto imitado. No fundo, no fundo ela não imita nada, ou talvez imite apenas os estilos do próprio Waly”.
Paulo Leminski, ao escrever sobre Gigolô de bibelôs, reconhece, com prazer, que se trata de um dos poucos livros brasileiros do período a assumir o exagero como forma de expressão. “Na ‘Rua Real Grandeza’, por onde Waly transita, a grande figura é a hipérbole. A modalidade do exagero e do excesso.” O mesmo gesto extremo captado por Armando Freitas Filho ao escrever sobre o livro: “Ele jamais foi parcimonioso, salomônico, equitativo. Com ele é tudo ou nada”.
Rigor e liberdade
Cada livro de Waly é um livro novo, diferente. Da prosa experimental de Me segura... ao exercício dos metros difusos e formas híbridas dos livros que se seguem, ele afirma agora para desafiar amanhã. Não é possível também uma leitura evolutiva, como se o poeta fosse cumprindo um destino, degrau a degrau, em direção a qualquer forma de luz redentora. A luz explode em todas as direções, ao mesmo tempo. O rigor, que existe, não é da fixidez, mas da busca.
Ao tentar definir a poesia de Waly Salomão, na orelha-ensaio do livro Algaravias: câmara de ecos, Davi Arrigucci Jr. propõe uma genealogia possível. “Nas entrelinhas do primeiro livro, Me segura qu’eu vou dar um troço, e nos seguintes, se insinuava respostas para essas questões mais fundas, sempre percutidas em palavras. O poeta retornava à raiz da modernidade e a Poe, evocando a poesia sobre o signo de Proteu: da mudança ou da metamorfose, que ora assume e reafirma com força plena. Agora Sailormoon aporta ao lugar do simulacro, o poeta feito máscara, persona em que o oco dobra e multiplica a voz do outro em timbre próprio e impróprio, espaço impreenchível em que escrever é vingar-se da perda”.
A poesia de Waly Salomão chega ao século 21 com a mesma força e outra tarefa. A força está na junção de várias trilhas, que partem do modernismo, atravessam o tropicalismo, a contracultura e os experimentalismos para se afirmar como crítica permanente, inclusive política. Foco libertário do corpo e da palavra, a poesia de Waly está viva em seu projeto literário. No entanto, a tarefa parece ter mudado: não se trata tanto de gigolar bibelôs ou fazer chover meteoros. A situação está ainda mais grave, regressiva, careta e pobre de inteligência.
Talvez tenha chegado a hora de retomar os excessos. Só Waly nos salva.
POESIA TOTAL
. De Waly Salomão
. Editora Companhia das Letras, 552 páginas, R$ 49
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