João Paulo
Estado de Minas: 31/05/2014
Rachel Daniel mostra o retrato da filha sequestrada por militantes do Boko Haram, na Nigéria |
Freud definiu a religião como uma ilusão. Não se tratava de um juízo negativo. Para o pensador, em determinados assuntos não cabia a exatidão da ciência, mas a busca de realização de desejos. No mundo real, podemos estar certos ou errados. A ciência se tornou nossa medida por excelência nesse campo. No universo das grandes causas, o que vale é a crença.
Quem navega no mundo da religião sabe que as crenças, no seu limite, se equivalem, que elas traduzem nossa sede de ligação com o absoluto, com os antepassados e com os grandes valores. As religiões se avizinham da ética, se preocupam com a moral, são atentas à convivência como forma de garantir a continuidade dos povos e civilizações.
Certa vez perguntaram ao dalai-lama qual era a melhor religião. Ele respondeu rapidamente: a que torna a pessoa mais compassiva. A boa religião é a que nos faz melhores, mais tolerantes, mais amorosos e justos. Assim, cada crença teria algo que se somaria numa possível religião universal, uma espécie de grande acordo da sabedoria de todas as formas de fé.
Essa tentativa eclética de somar sabedorias ganhou na Renascença o nome de “filosofia perene”. Seria algo como o substrato que garantiria o solo moral de todas as formas religiosas. Em outras palavras, um núcleo comum, um mar de bondade que se comunicaria com todos os deuses e revelações. Para quem não tem fé, a filosofia perene poderia ser um tipo de grande acordo ético sobre o sentido da vida.
Essas reflexões vêm à tona quando o mundo parece conviver com um oceano de barbárie, que faz questão de ser filiar ao pensamento e às práticas religiosas. São ações de desumanidade aterradora, que ao mesmo tempo que conquistam a solidariedade de alguns países, se escondem no sentido inquestionável do dogma e da covardia dos povos. Nesses casos, quase sempre o intolerante é o outro. Os exemplos são hediondos.
A Justiça do Sudão, por exemplo, condenou à morte por enforcamento Meriam Yehya Ibrahim Ishag, grávida de oito meses, pelo fato de ela ter-se convertido do islamismo ao cristianismo para se casar com um cristão. A sentença é ainda mais cruel. Até que seja executada, foi destinada a receber 100 chibatadas pelo delito de adultério, já que seu casamento não é considerado legítimo pela lei islâmica. Morte anunciada, a ser acompanhada com leniência por uma comunidade internacional estática, a repetir com um esgar de nojo: o horror, o horror. E não passa disso.
Quem acha que se trata de um comportamento incivilizado, é só comparar com a forma como os grupos ultraortodoxos judeus se manifestaram durante a recente visita do papa à chamada Terra Santa. Para eles, o governo israelense estaria disposto a assinar um acordo que entregaria ao Vaticano o controle do prédio onde Jesus teria feito a última ceia com os apóstolos. Em outros termos, trata-se da negação do Estado em nome das crenças, sem qualquer justificação humana. Mais uma ação separatista numa terra que edifica muros em vez de propor diálogo.
Recentemente, o grupo Boko Haram, militantes por um Estado islâmico no Norte da Nigéria, se tornou célebre pelo sequestro de 200 garotas em uma escola. Mesmo com a condenação internacional, o grupo segue sua trajetória de horrores, atacando bases militares e matando civis, numa guerra que parece não ter fim. Há questões econômicas e morais na base desses grupos. A violência contra as mulheres e os homossexuais é uma das faces mais cruéis.
Curiosamente, os mesmos Estados Unidos que se manifestaram contra o Boko Haram parecem não se importar com a exportação da homofobia para países da África, por meio da ação de seus evangélicos. São milhões de dólares em doações para diversos países, num trabalho que mescla ação humanitária com ideologia que propaga discriminação contra gays, lésbicas e transgêneros. Sem lugar no reino de Deus, eles são apresentados como ameaça à sociedade.
No Brasil, com sua pretensa liberdade de religião, presenciamos recentemente a sentença de um juiz que manteve a veiculação de mensagens discriminatórias contra crenças de origem africana na internet, sob o argumento que não se tratavam propriamente de religiões. Para o juiz-teólogo, uma religião digna do nome só pode ter um Deus e precisa ter um livro sagrado (mesmo que ele contenha, como a Bíblia, milhares de erros crassos em ciência e moral).
Para muita gente, a religião – e especialmente os monoteísmos revelados – seria portadora de uma verdade moral que escapa a outras formas de conhecimento. Quem não crê, por esse raciocínio, seria menos humano, menos capaz de amar ao próximo, menos sensível à justiça e ao bem. Foi a ideologia que sustentou por muitos séculos as religiões próximas aos negócios do Estado.
A conquista da laicidade, nesse sentido, foi um avanço de civilização. Com ela, caiu por terra o exclusivismo moral das religiões e o bem se tornou uma responsabilidade dos homens e mulheres. A equação se inverteu: quanto menos religioso, mais humano. Quem não crê em Deus tem, por isso, muito mais condições de ser uma boa pessoa.
As religiões, todas elas, podem concorrer no campo do conforto da alma ou das lendas apaziguadoras do nosso medo da morte, mas devem ser banidas do Estado e da ciência, onde só contribuem com o atraso. Se Deus ama seus filhos, o melhor é matar o pai e tentar construir a grande família humana, onde todos sejam irmãos. Se a religião é futuro de uma ilusão, a política é nosso destino real e presente, mesmo que pequeno e comezinho. Somos gente, não filhotes de deuses. Caso contrário, só nos restará ficar esperando a morte de inocentes.
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