sábado, 24 de maio de 2014

ENTREVISTA/TONINHO VAZ » Escorpião ferido‏

O jornalista lança biografia do poeta piauiense Torquato Neto, um dos criadores da Tropicália



Severino Francisco
Estado de Minas: 24/05/2014



Toninho Vaz (Lula Lopes/Esp.CB/D.A Press)
Toninho Vaz

Mesmo sem ter precisamente uma obra literária ou poética, o piauiense Torquato Neto é uma das figuras mais incandescentes da virada dos anos 1960/1970. Era um multiartista que transitava livremente pelos territórios da canção popular, da poesia letrada, do jornalismo cultural e do cinema. Parceiro de Caetano Veloso, de Gilberto Gil e de Capinam, entre outros, é autor de canções que se tornaram clássicos da moderna música popular brasileira, como Geleia geral, Mamãe não chore e Go back, let’s play that.

A coluna Geleia geral, que assinou no jornal Última Hora, tornou-se uma referência polêmica dos tempos mais truculentos do regime militar, dominados pela reação radical da contracultura. Torquato participou ativamente da Tropicália, mas nunca ficou em cima do muro, sempre tomou partido de maneira incisiva. Polemizou contra a estagnação do Cinema Novo, o dogmatismo das esquerdas e as inconsistências da própria Tropicália. Ele encarnava a ideia de revolução cultural permanente.

A trajetória do poeta é reconstituída em 408 páginas por Toninho Vaz em A biografia de Torquato Neto (Editora Nossa Cultura). Escorpiano, obsessivo e dramático, sempre cortejou a possibilidade do suicídio em seus versos ("Escorpião encravado em sua própria ferida/ Não escapa/ Só escapo pela porta da saída"). Mas também combateu essa tendência com estocadas poéticas contundentes: "A morte não é vingança”.

Os tempos ditatoriais eram de violência, opressão e sufoco. Aos 28 anos, ele cumpriu a sina que havia traçado para si mesmo. Entrou no banheiro, fechou a porta e abriu o gás. Toninho é o mesmo autor de Solar da Fossa e de uma biografia do poeta Paulo Leminski. Em entrevista ao Pensar, ele fala sobre a dramática trajetória de Torquato Neto. “Antes de tudo devemos considerar uma informação registrada, de forma inédita, no meu livro: Torquato tinha um diagnóstico de esquizofrenia.”


Como foi a infância e a adolescência de Torquato em Teresina? O que foi marcante na formação dele? Teresina tinha, naquela época, um ambiente cultural estimulante ou era provinciana?

Teresina era uma cidade provinciana, sim, mas ele teve uma infância privilegiada, confortável em família bem estruturada – o pai era promotor público e a mãe professora. Ele passou a adolescência em Salvador, onde foi estudar aos 15 anos. Encontrou o lugar certo, no momento certo, do ponto de vista cultural. A Bahia estava em efervescência no ano de 1960, com destaque para os trabalhos simultâneos de Lina Bo Bardi, do reitor Edgar Santos, do maestro Joachim Koellreutter e de Glauber Rocha no cinema. Os futuros maestros Julio Medaglia, Isaac Karabtchevsky e Tom Jobim estavam por lá, como bolsistas da sinfônica. Foi quando Torquato conheceu Caetano, Gil e todo o grupo de artistas criadores, incluindo o quase anônimo cineasta Alvinho Guimarães, de muita influência sobre ele.

Torquato Neto participou do Centro Popular de Cultura (CPC) e, no entanto, tinha uma postura bastante anárquica em relação aos valores da esquerda engajada. Como ele resolveu esta tensão?
De certa maneira, a postura do Torquato foi coerente com a maneira tropicalista de ser. Ou seja, um anarquismo que fazia o grupo ser mal- assimilado tanto por representantes da esquerda engajada, que os via como alienados, quanto pela direita, que os rotulava de maconheiros desbundados. Dizer que ele resolveu essa tensão não é bem o caso.

O tropicalismo foi um movimento, essencialmente, de baianos. Como avalia a contribuição de Torquato, e que ingredientes ele coloca no caldeirão tropicalista? Ele era mais crítico em relação à cultura de massas?

Como consequência da passagem de Torquato por Salvador, onde conheceu o grupo baiano, ele sempre foi confundido como tal. É inegável sua importância e influência no movimento, que explodiu, em escala nacional, em 1967, no festival de música da TV Record, em São Paulo. Foi Torquato quem alertou que o movimento devia se chamar Tropicália e não Tropicalismo, para evitar o ismo. Foi ele também quem anunciou a morte do movimento, como uma atitude crítica, ou melhor, autocrítica. Os conceitos éticos e estéticos de Torquato estão presentes no DNA da Tropicália.

Torquato foi um excelente letrista e, ao mesmo tempo, um leitor agudo de poesia. Algumas letras podem ser lidas como poesia e algumas poesias podem perfeitamente ser musicadas, como ocorreu com Os Titãs. Como se dá esse trânsito da canção para o poema? Isso se perdeu no cenário cultural de hoje?

Creio que sim. Algumas pessoas procuram separar letra de música de poesia, usando de muito rigor técnico e acadêmico. Lembro-me que nos anos 1960 o poeta Paulo Leminski, em Curitiba, me falava de Caetano Veloso como “o homem que musicava poemas”. Poetas, quando escrevem letras de música, como fizeram os Titãs, transgridem maravilhosamente bem as regras acadêmicas.

“Só quero saber do que pode dar certo/ Não tenho tempo a perder.” Qual o peso desses versos na vida de Torquato Neto? Ele tinha essa postura de não se perder em chororôs?

Sim, os versos fazem sentido com a vida de Torquato, que colocava poesia num pensamento linear como este. O Torquato também dizia que “cada louco é um Exército”.

Como você avalia a relevância e a originalidade da produção jornalística de Torquato?

A angústia trazida pela repressão – trabalhando com o censor na redação – moldou a coragem e a instransigência de Torquato como uma marca da sua personalidade. Ele participou ativamente – e com originalidade ‘‘tropical’’ – da resistência ao ordinário. Sua coluna Geleia geral, no jornal Última Hora, era um resumo disso: relevante e original.

Que interpretação você faz do suicídio na trajetória de Torquato Neto, que era escorpiano, signo com forte ligação com a morte? Ele cantou a morte em muitos versos (“Escorpião encravado em sua própria ferida/ Não escapo/ Só escapo pela porta da saída.”). Mas disse, também: “a morte não é vingança”. Que circunstâncias fizeram com que sucumbisse à morte? Ele acreditava em fatalismos?
Bem, antes de tudo devemos considerar uma informação registrada, de forma inédita, no meu livro: Torquato tinha um diagnóstico de esquizofrenia. Não se pode vincular os momentos depressivos do poeta, principalmente na fase final, como um “romantismo” em torno de álcool, drogas e poesia. Claro que o fator psicológico do momento, determinado pelo afastamento dos amigos e parceiros do grupo baiano, ajudou a piorar o quadro, terminando com o suicídio no dia do seu 28º aniversário. Coerente com alguém que viveu a vida de forma radical.

Como é a história da canção Cajuína, do Caetano Veloso?

Depois que a narrativa da história termina, no seu tempo normal, com a morte do poeta, acrescentei um último capítulo com os acontecimentos posteriores. Conto a visita de Caetano ao dr. Eli, pai de Torquato, que lhe deu uma rosa pequenina colhida no jardim da casa da Rua Coelho de Rezende. Foi a inspiração para fazer a música Cajuína.

Quem era Torquato Neto para você antes do livro e quem ele é depois da biografia?

Era praticamente um desconhecido. Minhas informações se restringiam à leitura diária da sua coluna na Última Hora, que eu tinha acesso nas bancas de jornais de Curitiba. Quase nenhuma informação pessoal ou mesmo profissional do lado letrista da MPB. Pesquisar sobre a vida dele foi a revelação de um poeta combativo, amargurado, competente e radical. Ainda hoje, Torquato é uma força do inconformismo, daqueles que gostam de combater o bom combate.

Torquato Neto era considerado alienado para a esquerda e maconheiro desbundado pela a direita (Nossa Cultura/Divulgação)
Torquato Neto era considerado alienado para a esquerda e maconheiro desbundado pela a direita


Trecho

“O menino se revelou franzino desde o início, preferindo as leituras aos esportes. E mais: tinha, além de um grande nariz e a pele muita branca, enormes orelhas de abano, contrastando com a cabeça longa e magra, inequívoca herança paterna. Esse detalhe anatômico lhe conferia, na escola, o papel de alvo favorito das cassuletas, uma das armas mais eficazes na guerrilha colegial, resultando quase sempre em orelha quente e raiva incontrolável. Seus cabelos eram claros, quase louros. Como para equilibrar essas pecularidades, era inteligente e demonstrava grande vivacidade, percebida desde cedo pelos professores das escolas por onde passou.”

Go back

Torquato Neto

Você me chama
Eu quero ir pro cinema
Você reclama
Meu coração não contenta
Você me ama
Mas de repente
A madrugada mudou
E certamente
Aquele trem já passou
E se passou, passou
Daqui pra melhor, foi
Só quero saber do que pode dar certo
Não tenho tempo a perder



A biografia de Torquato Neto
• De Toninho Vaz
• Editora Nossa Cultura,
• 408 páginas

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