Um novo planeta, um novo poema
Tema com presença na história da poesia, as estrelas são pontos de luz na lírica moderna brasileira. Em três estrofes com versos livres, Thais Guimarães apresenta a descoberta do planeta Kepler-186f
Carlos Ávila
Estado de Minas: 24/05/2014
Imagem divulgada pela Nasa do planeta Kepler-186f: semelhanças reais e imaginárias com a Terra |
“Ora, direis, ouvir estrelas...” Ou ver estrelas. Os poetas sempre foram ligados às estrelas; ao céu, ao sol e à lua, enfim, aos planetas e ao espaço infinito sobre nossas cabeças. Desde os mais eruditos até os mais populares. Todas as três partes da Divina comédia, de Dante (1265-1321) terminam com a mesma palavra: estrelas. “L’amor che move il sole et l’altre stelle” (O amor que move o sol e as outras estrelas) – o famosíssimo último verso do livro tornou-se uma espécie de signo-insígnia. Uma letra de canção do poeta Orestes Barbosa (1893-1966), com música de Sylvio Caldas, termina com a seguinte estrofe: “Olho as estrelas cansadas/ que são lágrimas doiradas/ no lenço azul lá do céu/ Estrelas são reticências/ estrelas são confidências/ do meu romance e do teu”. Em geral, as estrelas aparecem nos poemas identificadas com o amor.
Os astros (estrelas, planetas etc.) e o silêncio eterno dos espaços infinitos – que espantava o filósofo e físico Pascal – sempre estiveram presentes na poesia universal, inspirando versos e poemas dos mais diversos tipos e linguagens. Para ficar apenas na poesia brasileira do século 20, nunca é demais lembrar alguns textos marcantes, onde esses astros servem de mote ou motivo para a criação. Manuel Bandeira, no seu livro emblematicamente intitulado Estrela da tarde, publicou o poema “Satélite”, onde fala da lua num fim de tarde, desmetaforizada e desmitificada como “coisa em si/ satélite”.
Na última fase de sua obra, Cassiano Ricardo se voltou para temas espaciais: vejam-se os poemas “Translação” e “Gagarin” (este uma homenagem ao astronauta russo que foi o primeiro homem a viajar pelo espaço, em 1961, a bordo da nave Vostok-1). Drummond e Murilo Mendes ficaram fascinados e escreveram sobre o cometa Halley, “iluminando de ponta a ponta o céu de 1910”. Murilo, mais “viajante”, fala ainda em “universos-naves”, “faixas-galáxias”, “Betelgeuse” (uma estrela de brilho variável sendo a 10ª ou 12ª mais brilhante no firmamento, que aparece também em dois poemas de Décio Pignatari), “pluricéus” e “ruído rotação”.
Haroldo de Campos intitulou sua poesia-prosa de Galáxias e seu irmão Augusto compôs “Pulsar” e “Quasar”, dois poemas visuais (um pulsar é uma estrela de neutrons de rápida rotação, o remanescente da explosão de uma supernova; um quasar é uma galáxia distante com uma luz brilhante e variável e outras radições vindas de suas regiões centrais). No “Pulsar”, o mais inventivo deles, ele envia um “abraço de anos luz” a alguém (um outro ser, humano ou inumano; um amigo ou uma pessoa amada), onde quer que ele esteja, em Marte ou Eldorado.
Imagens cósmicas aparecem ainda em diversos poemas de Ferreira Gullar, como, por exemplo, em “Pergunta e resposta”, onde observa que “a Via Láctea é apenas uma/ entre bilhões de galáxias/que à velocidade de 300 mil km por segundo/ voam e explodem/ na noite”; e indaga: “o que faz aí/ meu poema com seu/ inaudível ruído?”. Já Paulo Leminski escreveu o sensível “Espaçotemponave para Alice”, dedicado à sua companheira, a também poeta Alice Ruiz, que termina com estes versos: por isso/ nos apertar/ tanto/ nos juntar/ tanto/ juntos enfrentar/ a noite/ dos espaços interestelares”.
Vários poetas continuam trabalhando temas ligados à observação celeste, às descobertas e explorações espaciais. Estas vêm se aprofundando com o avanço dos recursos tecnológicos, desde o lançamento, em 1990, do Hubble – um satélite astronômico artificial não tripulado que transporta um grande telescópio para a luz visível e infravermelha.
A poesia – verbal ou visual, no papel ou na tela, com movimento e cor – continua pulsando e pulsante em relação aos astros. Recentemente, foi detectado um novo planeta, o Kepler-186f, parecido com a Terra e orbitando a zona habitável de uma estrela, ou seja, a região onde a radiação desta é tal que o planeta possui uma temperatura semelhante à do nosso, capaz de manter a água na forma líquida com condições favoráveis à existência de vida como conhecemos.
A descoberta do Kepler-186f inspirou a poeta Thais Guimarães. Com linguagem direta e síntese verbal – marcas de sua poética desde o primeiro livro, Jogo de cintura –, Thais colocou em três estrofes de versos livres sua visão dessa nova descoberta: “um planeta possível” e um “outro encontro com a ficção”. Mais uma vez, a conjunção dos astros ilumina nossa poesia.
. Carlos Ávila é poeta e jornalista. Publicou, entre outros, Bissexto sentido e Área de risco (poesia) e Poesia pensada (crítica). Foi, por quatro anos, editor do Suplemento Literário de Minas Gerais.
Kepler-186f
Thais Guimarães
os astrônomos descobriram novo planeta
que possui uma lua
somente sua
a orbitar uma estrela
(seria insuportável viver na escuridão)
menos quente do que o sol
(desejada porção de calor)
onde a água pode ser líquida
e o solo habitável
(um planeta possível)
outro encontro com a ficção
que antecipa mundos destruídos
selvagens
planetas de escassez
tão temidos quando imaginados
à distância
mas tão próximos
das imagens de guerras
revoltas da natureza
dos piores instintos da mente
que poesia alcançará o futuro
espaço desconhecido
de estrelas distantes
onde o homem
em sua errância
será ainda metáfora de si
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