sábado, 24 de maio de 2014

João Paulo - Hora e vez dos radicais‏

O ideal é que o Congresso e as câmaras de deputados estejam cheios de pessoas capazes de defender ideias extremas


João Paulo
Estado de Minas: 24/05/2014



Herbert Marcuse ajudou a dar dimensão filosófica aos movimentos libertários dos anos 1960 (AP Photo/Archiv)
Herbert Marcuse ajudou a dar dimensão filosófica aos movimentos libertários dos anos 1960


Vivemos tempos médios, de emoções medidas e apelos à contenção. A todo momento somos convidados a refletir sobre nossos impulsos, a usar a régua do bom senso em política, a diminuir os sonhos em nome da realidade. Uma certa incitação ao comedimento.

Não é atitude de todo má. Desde Freud, aprendemos que a repressão é civilizadora, que a má notícia da condenação à infelicidade estrutural que nos define como seres de desejo contido é compensada, em termos, pela funcionalidade social. A sublimação é nosso destino, o que é uma forma de capitulação, mas também de afirmação.

Ser radical é quase sempre tomado como desvio, como um exagero que desconcerta o ritmo do mundo, que acirra os ânimos, que pode causar excessos de toda forma, da conturbação da ordem à inauguração de novas demandas difíceis de serem alcançadas. O radical é um ser que desequilibra.

No entanto, em alguns momentos da vida pública e da afirmação da nossa potência como humanidade, é preciso sair da raia comum e ir à raiz das coisas. Os radicais, de certa forma, são a reserva de criatividade e vigor da sociedade, da arte e do comportamento humano. Quem não radicaliza corre o risco de decair.

Com a proximidade das eleições, por exemplo, nada melhor que apostar todas as fichas na radicalidade. O eleitor costuma dividir sua participação eleitoral em fases bem definidas. No caso da escolha de cargos majoritários, como presidente, governadores e prefeitos, a tendência é reduzir a energia a um voto mais convencional. Não parece ponderado dar poder aos radicais.

Algumas propostas podem até parecer boas, mas soam inviáveis ou perigosas quando ampliadas para toda a sociedade. Exatamente por isso foi criado o instituto dos dois turnos, que libera o primeiro voto para a ideologia e o sonho, para se recuperar, no segundo turno, o senso de realidade, ainda que constrangido. No primeiro turno, o desejo; no segundo, a razão. Primeiro Marx e Freud; depois, Maquiavel e Hobbes.

Outra forma de fatiar o comportamento eleitoral é separar as instâncias de poder. Assim, a lógica que rege os cargos executivos não se reproduz no âmbito do legislativo. É uma dualidade que pode se mostrar até mesmo operacional, já que parece compreender que para ações distintas precisamos de pessoas diversas. Uma coisa é exercer o poder de mando, outra é usar a astúcia para controlá-lo. E é aqui que a radicalidade tem um terreno fértil.

Gostaria de sugerir aos eleitores que começassem a buscar seus candidatos a deputados estaduais e federais e a senadores entre aqueles que mais se aproximam de seus sonhos de sociedade. Quanto mais radical melhor. As casas legislativas e o Estado brasileiro só têm a ganhar com eles. A radicalidade é a única condição da utopia, sem ela, o futuro se torna previsível, regressivo e entrópico.

O ideal é que o Congresso e as câmaras de deputados estejam cheios de pessoas capazes de defender ideias extremas nas áreas de educação, saúde, meio ambiente, habitação, segurança, direitos humanos, trabalho, reforma agrária e cultura. Os radicais, em cada um desses campos, têm sido ao longo do tempo, nossa reserva intelectual e ética. Como são responsáveis pela elaboração das leis, poderão ser os portadores adequados das mensagens de renovação.

O bom radical é aquele que não transige. É o homem e a mulher que em nome de valores maiores é incapaz de negociar princípios, seja por poder ou dinheiro. Com isso eles têm tudo para fazer o debate avançar e, assim, ampliar o universo de direitos inscritos nas leis de nossa sociedade. Democracia, e os radicais sabem bem disso, não é apenas o terreno da lei, mas da expansão dos direitos.

O ideal seria que cada um definisse a área que mais se aproxima de suas ansiedades de transformação social e fizesse tudo para eleger um radical que levasse adiante a chama que mais lhe aquece a alma. Os exemplos ajudam a entender melhor essa ideia. Militantes do movimento negro deveriam eleger pessoas dispostas e centrar sua ação no combate ao racismo e à injustiça social que os cerca. Certamente, terão efeito incendiário e esclarecedor, servirão de referência e ponte.

Ou, no caso do movimento ecológico, nada melhor que uma bancada de radicais bem preparados para reformar a legislação, garantir políticas de preservação, proibir a devastação, ainda que sob o “sagrado” direito do mercado de escavar o solo, derrubar árvores e desviar rios para seu proveito. O que um dia foi ironizado como a ética dos bagres pode ser um índice de civilização.

Alguém duvida que sem a ação do radicais teríamos cotas na universidades públicas? Passa pela cabeça de algum cidadão que um fazendeiro preservaria matas próximas aos rios se não houvesse a ameaça e multas e outras sanções? Será que as pessoas creem que os proprietários de terras improdutivas ou que não cumprem função social vão entregar de mão beijada suas sesmarias para os sem-terra, dispostos a trocar a monocultura de grãos para engordar gado, turbinada a veneno, por alimentos para as pessoas?

Pode parecer que esses são campos de conflito mais ético que político. Não é verdade. A mesma lógica pode ser percebida em setores, digamos, mais técnicos, como saúde e educação. Basta ver a resistência de parte da corporação médica ao programa que leva profissionais onde eles não querem ir; ou a competitividade que sustenta os programas de educação privada, baseados na exclusão e em históricos certames de seleção dos “melhores”, como se a educação fosse o setor de recrutamento de uma empresa qualquer. Sem os radicais da saúde pública ou da educação popular, a situação estaria ainda pior.

Além disso, os candidatos radicais de verdade costumam ser os mais confiáveis. Num terreno de alianças muito fluidas, em que o legislativo se torna fiador de projetos de poder, na chamada democracia de coalizão, dificilmente você vai ver um radical de boa cepa em direção de estatais. Patrocinar com o voto um candidato popular é uma forma de puxar o Legislativo em direção à sociedade, retirando o triste álibi de ser arrimo do Executivo que, por definição, deveria ser controlado exatamente pelos parlamentares.

Tempo de utopia Os radicais são também cada vez mais necessários no campo do pensamento, território que, como a política, sofre ataques regressivos, mediocrizantes e apaziguadores. No âmbito da reflexão política, por exemplo, está na hora convocar os defensores da utopia. Eles nunca foram tão necessários, embora dados por mortos pelos arautos do fim da história.

Acredito que pensadores como Herbert Marcuse, por exemplo, ligados ao último grande movimento libertário, os acontecimentos de maio de 1968, têm muito a contribuir na busca de saídas para nossos impasses contemporâneos. Quando ele publicou Eros e civilização, ainda em 1953, depois retomado em edição ampliada em 1968, o horizonte da utopia era real. As pessoas acreditavam que era possível mudar o mundo. Hoje, defende-se que as pessoas precisam se adaptar a ele.

A mensagem de Marcuse, numa fusão criativa de sociologia e psicanálise, era que a teoria marxista da exploração do trabalho precisava ser atualizada e aprofundada para dar conta do novo contexto social e econômico. Não se tratava mais, na sociedade pós-industrial, de uma exploração como no início do capitalismo, mas de uma superexploração garantida por elementos de ordem simbólica e psíquica.

Marx e Freud, acredita Marcuse, concordariam que o capitalismo, para se realizar, juntou exploração e repressão sexual. O resultado era o que a psicanálise chamava de ‘‘princípio de realidade’’, que se opunha ao princípio de prazer, perigosamente disruptor. Mas não foi suficiente: para o padrão de produtividade do novo capitalismo, era preciso avançar até o que ele chamou de ‘‘princípio de rendimento’’ ou ‘‘princípio de desempenho’’. A repressão, mesmo numa sociedade aparentemente mais livre, precisa ser muito mais potente.

Para Marcuse, o princípio de rendimento “é o de uma sociedade orientada para o ganho e a concorrência dentro de um processo de expansão constante. Ela pressupõe uma longa evolução no curso da qual a dominação foi cada vez mais racionalizada”. A carapuça serviu? Pois bem, se o diagnóstico é bom, a questão apontada por Marcuse merece ser examinada com atenção ainda hoje: é possível fundar uma sociedade não repressiva, na qual o princípio de realidade não seja o oposto do princípio do prazer?

O pensador vai atacar o problema por várias frentes, todas elas bastante significativas anda hoje: o combate à miséria, a defesa das condições de trabalho liberadas do jugo da alienação, a recuperação da relação com a natureza, a mudança nos padrões de consumo, o combate a todas as formas de repressão sexual e, sobretudo, a retomada do horizonte utópico.

Sexo, trabalho e política compõem o mesmo horizonte de afirmação humana. Precisamos dos três para alcançar o gozo, a realização e a melhor convivência entre iguais. Sem sexo o mundo é cinza; com trabalho alienado, estamos incompletos; fora da política, somos objeto do desejo do outro.

Marcuse, na tradição de Ernst Bloch, acreditava que havia, em cada pessoa, uma espécie de patrimônio de utopia, que podia ser desarquivado quando as condições sociais e psicológicas assim o permitissem. A liberdade, pessoal, sexual e política era condição da utopia. Esse arquivo espiritual de civilização, de acordo com ele, se apoiaria ainda na arte e na filosofia, repertório ao qual todos teriam acesso e direito numa sociedade mais justa.

Marcuse continua a ter razão no que diz respeito ao processo contemporâneo de precarização do trabalho, cada vez menos criativo e agora explorado em escala 2.0 (a realidade foi ainda mais perversa do que ele imaginava, já que não deixava de ser otimista em relação ao poder libertador da tecnologia). O filósofo permanece um guia político instigante, ao valorizar as possibilidades reais de subversão em todos os campos da atividade humana. Por fim, a forte regressão da questões referentes à sexualidade, sobretudo a homofobia e a violência contra as mulheres, mostra que o pensador ainda tem o que dizer. Não haverá civilização sem eros.

Os radicais, na política e no pensamento, talvez sejam a saída mais viável para nossos impasses. O contrário de eros é morte.

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