João Paulo
Estado de Minas: 07/06/2014
A diversidade das pessoas, com sua ação persistente para construir uma vida mais digna e deixar exemplos, é o maior patrimônio de um povo |
mundo é feito de gente. Essa é a premissa do Novo dicionário biográfico de Minas Gerais: 300 anos de história, que será lançado segunda-feira em Belo Horizonte. A obra, com mais de 500 páginas e 1,6 mil verbetes, reúne biografias de pessoas que tiveram relevância na vida de Minas Gerais ao longo de sua história. Geralmente esse tipo de obra se concentra apenas nas chamadas elites políticas. A ideia da nova obra de referência é colocar a sociedade em primeiro lugar, não o Estado. A ideia é boa, mas falta povo nas páginas do dicionário.
A obra é um conjunto de perfis biográficos que contempla, além dos políticos, professores, intelectuais, pesquisadores, empresários, escritores, médicos, engenheiros, historiadores, arquitetos, jornalistas, artistas e militares. Foi dada, ainda, especial atenção às biografias de mulheres, outra lacuna sempre apontada nos livros de história. Com isso, o propósito é garantir o máximo de representação de todos os segmentos sociais do estado.
A escolha dos nomes, como explica o organizador da obra, o historiador Amilcar Viana Martins Filho, não foi fácil, exatamente em função da abrangência pretendida. Como se trata de uma gama muito grande de profissões e ocupações, além do vasto período de 300 anos coberto pelo Novo dicionário biográfico de Minas Gerais, a seleção foi trabalhosa e exigiu critérios definidos pela equipe responsável. “Muitas pessoas que não figuram na primeira edição poderão ser incluídas nas próximas. Além disso, era importante garantir a correção dos dados e ter acesso a fontes de informação seguras”, explica o historiador.
Algumas balizas definem quem participa do acervo de biografias reunido no livro. Em primeiro lugar, a opção foi por personalidades que já morreram. Os únicos perfilados vivos são os governadores, já que se considerou o mandato completo como o intervalo definido de atuação a ser tratado no verbete. Personalidades políticas contemporâneas convivem com nomes históricos do período colonial, imperial e republicano, nos textos mais alentados do volume, exatamente em razão da existência de fontes estabelecidas de pesquisa.
Não há a exigência de que o biografado tenha nascido no estado – nem mesmo no país –, mas que sua atuação tenha sido decisiva nos rumos da sociedade mineira. Entre os estrangeiros que ganharam verbetes na obra estão o cientista dinamarquês Peter Lund, o musicólogo alemão Curt Lange, o historiador americano John Wirth, o maestro italiano Sergio Magnani, o pintor romeno Emeric Marcier e o escultor austríaco Franz Weissmann, entre dezenas de outros.
No que diz respeito às ocupações, há o empenho em alargar a abrangência, levando-se sempre em consideração a relevância da atuação do biografado e sua influência duradoura na vida da sociedade mineira, além das marcas que deixou em seu tempo. Com isso, desde as ocupações mais tradicionais, como as profissões liberais, até o mundo empresarial, passando pela vida acadêmica, diversos ofícios foram considerados. Além desses, é nítido o empenho em registrar a vida de artistas e intelectuais, além de líderes classistas e religiosos.
A militância política também é destacada, não apenas na ocupação de postos que definem a participação na direção dos negócios públicos, como também na abertura do espectro ideológico, com registro de atuações de contestação, oposição e militância em favor de causas sociais. Se há uma concentração nítida nas personalidades da ordem, nem por isso foi vedada a presença de pessoas que buscaram romper com os padrões de dominação política. Nesse campo se enquadram os perfis de feministas, sufragistas e perseguidos políticos.
Como as fontes de informação são variadas, os verbetes variam muito em termos de extensão e aprofundamento. Os textos vão desde pequenos ensaios, como aqueles sobre Tiradentes, Marquês de Barbacena, Teófilo Otoni e Juscelino Kubitschek, até simples registros. “Em alguns casos, mesmo com pouca informação, era importante dar ao leitor o que havia de disponível, ainda que fossem apenas alguns dados e datas. É uma forma de garantir a presença de personalidades que não deixaram registro, mas fazem parte da memória da sociedade em que viveram”, diz Amilcar Martins Filho.
Talvez por uma característica mineira – ou um mito que se tornou forte o suficiente para se manter vivo – é possível destacar algumas tendências no dicionário. A primeira, obviamente, é política, o que mostra a presença de figuras do estado em posições marcantes desde o período colonial. Outra tendência que é possível perceber é a da concentração em famílias, com dezenas de exemplos de clãs em vários setores. As famílias mineiras estão presentes por trás das biografias individuais.
Por fim, outra característica que pode ser apreendida no Novo dicionário biográfico de Minas Gerais: 300 anos de história é a concentração de intelectuais, professores e artistas. Eles parecem dominar o terreno da influência social (que é um dos critérios para figurar na obra), sobrepujando os cientistas, engenheiros, banqueiros e empresários. Sobretudo no caso dos professores e pesquisadores, nas várias áreas de atuação.
O estado que parece emergir do dicionário é uma região que valoriza seus intelectuais e reconhece a dimensão humanista da educação. Pode ser um mito, sobretudo quando se compara com a atual condição de trabalho dos professores públicos, muito degradada e com a tendência a tornar a educação um território de treinamento para o mercado. Mas não deixa de ser algo notável que os professores sejam o núcleo de uma obra de referência sobre a gente mineira. A sociedade parece valorizar a educação sobre todas as ocupações dignas de mérito, mas nem sempre recebe do Estado a contrapartida merecida.
Um bom exemplo do papel do professor destacado no dicionário é a biografia da professora de filosofia Sônia Maria Viegas de Andrade (1944-1989). Sua atuação intelectual, além da autoria de obras importantes no campo da filosofia (sobretudo seu estudo sobre Guimarães Rosa), se deu no dia a dia, nas salas de aula e como intelectual pública, capaz de fazer da filosofia um instrumento de compreensão do mundo e de diálogo com outras formas de saber. É um exemplo que vai além das instituições, cargos e obras, realizando-se como vida compartilhada e em diálogo com seu tempo. Destino que ela, sem dúvida, dividiu com outros professores que não figuram na obra, mas marcaram presença na vida de cada leitor.
Andar de cima Se o dicionário avança além das elites políticas e se abre para outras representações sociais, ficou devendo – e muito – aos profissionais de outras ocupações, sobretudo as mais populares. Há uma indisfarçável inclinação para o “andar de cima”. São pouquíssimos os operários, quase não há representantes de ocupações que não decorrem da formação universitária, e a cultura popular fica em segundo plano. Um estado construído por engenheiros sem pedreiros, tratado por médicos sem auxiliares de enfermagem, administrado por empresários sem operários. Se Chica da Silva figura na obra como escrava, é apenas uma em meio a dezenas de outros perfis de homens e mulheres que começam com a seguinte e elucidativa descrição de proeminência: “Foi grande proprietário de escravos”.
O livro é resultado de trabalho coletivo coordenado pelo Instituto Cultural Amilcar Martins (Icam), especializado no estudo, preservação e divulgação da memória e da cultura do estado. À frente da empreitada estão Amilcar Viana Martins Filho, João Antônio de Paula, Vera Alice Cardoso Silva, Alexandre Mendes Cunha, Marcelo Guimarães Godoy, Maria do Carmo Salazar Martins e Cleber Araújo Cabral. Em razão do método coletivo, que contou ainda com a participação de um grupo de redatores associados e estagiários, os verbetes não têm autoria creditada.
Amilcar Martins informa que a segunda edição já está sendo planejada e que, além dos erros eventualmente apontados na primeira, será ampliada para abarcar novos perfis biográficos. “É uma obra de atualização permanente”, explica o historiador. As novas edições, além da circulação em bibliotecas e centros de estudos, terão parte da tiragem destinada às livrarias, para ampliar a distribuição. Assim como a obra quer chegar às pessoas, seria interessante que elas também figurassem de forma mais democrática em sua concepção.
Em um conto de Jorge Luis Borges, um cartógrafo pretende compor o mapa ideal e acaba por cobrir todo território, fazendo coincidir todos os pontos com a realidade física. É a tentação impossível da representação exata. Um dicionário biográfico não pode abarcar toda a população. O desafio é que todos se sintam retratados de alguma forma. Às vezes a democracia pode ser um método, quase uma ética.
Novo Dicionário de Minas Gerais: 300 anos de história
Organizado por Amilcar Viana Martins Filho
Lançamento dia 9, às 19h30, nos jardins do Palácio das Artes,
Av. Afonso Pena, 1.537, Centro.
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