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domingo, 1 de setembro de 2013

Antonio Prata

folha de são paulo
Gênesis, revisto e ampliado
Visto que se aproximava o sétimo dia, Deus disse: 'Que a meia fure, que a privada entupa, que a internet caia...'
Então o Senhor Deus disse a Adão: porquanto deste ouvidos à tua mulher, e comeste da árvore que eu te ordenara não comesses: maldita é a terra por tua causa; com o suor do rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porque tu és pó e ao pó tornarás.
E, vendo o Senhor Deus que Adão fazia-se de desentendido, disse: espera, que tem mais; não só custará o pão o suor de teu rosto, como aumentará a circunferência de tua barriga, e a circunferência de tua barriga desagradará à Eva, e Eva te dará chuchu, e quiabo, e linhaça, e couve, e outras ervas que dão semente e leguminosas que dão asco, e delas usarás como alimento, em teus dias de tribulação.
E disse também o Senhor: porquanto comeste da árvore, porei em teu encalço insetos peçonhentos, e serão pernilongos nas cidades, e nas praias borrachudos serão; e ordenarei que te piquem bem na pelinha entre os dedos dos pés, e que zunam em teus ouvidos, e nas noites sem fim recordar-te-ás de teu criador.
Não satisfeito com os castigos, continuou o Senhor Deus: que destas ventas por onde soprei a vida escorra muco, e que seja frio e pegajoso como as escamas da serpente, e caudaloso como as águas do Jordão, e que brote numa sessão de cinema, ou na Sala São Paulo, e que tenhas à mão somente uma folha de Kleenex, e que com ela te enxugues e te assoes, até que se esfacele a última fibra de celulose, marcando teu rosto com inumeráveis pontinhos brancos, como marcarei a face pecadora de Caim.
E assim vagarás pela terra, disse o Senhor Deus, pois grande é teu pecado. E disse mais: cansado de perambular pela terra, inventarás o automóvel, mas o automóvel só fará multiplicar o teu cansaço; e gastarás metade de teus dias na Rebouças, e roubarão teu estepe, e te esquecerás do rodízio, e os pontos de tua carteira excederão o máximo permitido pelo Detran, que será 21, e andarás de táxi, e ouvirás elogios ao massacre do Carandiru, e diatribes contra médicos estrangeiros, e sentirás na carne a miséria de tua descendência.
Em vão, buscarás refrigério em viagens, mas quando no aeroporto estiveres, e chegares ao portão 4, alto-falantes te mandarão para o 78C; e quando o 78C alcançares, serás mandado de volta ao portão 4, e faminto pagarás R$ 16 num pão de queijo e numa Coca, e a Coca será de máquina, e o pão de queijo estará frio.
Então, visto que se aproximava a viração do sétimo dia, Deus se apressou, e disse: que o sal umedeça, que o bolo seque, que a meia fure, que a privada entupa, que o dinheiro escasseie, que o cupim abunde, que a unha encrave, que a internet caia, que o time perca, que a criança chore, que o churrasco do teu cunhado seja melhor que o teu, e que todos assim concordem, inclusive Eva, e que, largado num canto da varanda, com tua Kaiser quente na mão, te lembres que eu sou El Shaddai, e que estou acima de todas as coisas, inclusive de tua careca, que não temerá a finasterida, não aceitará o minoxidil nem reagirá às preces que, em vão, me enviarás.
E, dizendo isso tudo, o Senhor Deus lançou Adão para fora do jardim do Éden, e lançou Eva para fora do jardim do Éden, varão e fêmea, os lançou.

    domingo, 25 de agosto de 2013

    Antonio Prata

    folha de são paulo
    (M?)(H?)otel
    A única concordância entre quem busca o sono e quem procura o sexo é sobre a conveniência de um colchão
    A pergunta que me faço sempre que passo pelo luminoso, há anos, é se estamos diante de um M disfarçado de H ou de um H que finge ser M. Embora as duas hipóteses encontrem argumentos, tendo a me inclinar em direção à primeira: trata-se de um motel envergonhado.
    O estabelecimento fica quase na Raposo Tavares --e é esse "quase", acredito, que explica sua indecisão. Logo ali, menos de três quilômetros adiante, os Ms já não terão pudor de exibir seus rubros decotes à beira da estrada: Motel L'Amour, Motel Belle, Sedutti e Fox Trot Motel. Uma estrada, contudo, é uma estrada, uma cidade é uma cidade. O ambíguo luminoso brilha entre uma imobiliária e uma casa de família: suas piscadelas vão para os trabalhadores no ponto de ônibus, para os estudantes da USP, para a secretária que, a caminho do metrô, compra uns chocolates do ambulante. É melhor que as lâmpadas brancas não esclareçam totalmente os contornos da moldura vermelha: assim, só quem sabe o que busca verá, no sorriso discreto do H, o púbis desnudo do M.
    Ou não --como diria o poeta. Afinal, por que teria de se esconder, um motel? Um motel não é um bordel. Ninguém se choca com sua existência. Não atrai "gente diferenciada". Associações de bairro não tentam evitar sua construção. O Feliciano, a bispa Sônia ou o papa, até onde eu sei, jamais fizeram dele o alvo de seus recalques. Será que, em vez de um motel envergonhado, estamos diante de um hotel atrevido? Um pequeno hotel cujo peso das contas a pagar, todo mês, acabou por flexibilizar o austero H, levando-o a ampliar seu público? Se o caminhoneiro cansado quiser dormir algumas horas antes de seguir para Sorocaba, encontrará uma cama limpa. Se o casal afobado não aguentar chegar à Raposo, terá uma cama redonda.
    Motel acanhado ou hotel saidinho, a mesma dúvida me traz: como lidará a clientela com tal indecisão gráfica e mercadológica? Convenhamos, a única concordância entre quem busca o sono e quem procura o sexo é sobre a conveniência de um colchão: afora isso, tudo os separa. Uns aspiram ao silêncio decorativo, no qual espelharão a tranquilidade domiciliar, os outros desejam exatamente o contrário, o estímulo excêntrico que os faça esquecer do tédio do lar.
    Tentar unir roncos e gemidos parece uma receita para o fracasso e, no entanto, o negócio resiste, há anos. Ocorre-me agora que ele talvez perdure não apesar da ambiguidade, mas justamente por causa dela. As lâmpadas brancas, sem esclarecer totalmente os contornos da moldura vermelha, não são a senha para quem sabe o que busca, mas um convite aos trabalhadores no ponto de ônibus, à secretária comprando chocolates, ao ambulante, aos estudantes da USP, ao caminhoneiro a caminho de Sorocaba. Quem sabe se as promessas de aventura do motel, somadas ao lastro de segurança de um hotel, não trazem vez por outra certas ideias a esses incautos pedestres que, atraídos pelo sorriso discreto do H, acabam seguindo a seta do M? Talvez as duas letras, mais do que divergentes, sejam consoantes.

      domingo, 18 de agosto de 2013

      Feira de Frankfute - Antonio Prata

      folha de são paulo
      ANTONIO PRATA
      Feira de Frankfute
      Semana passada, recebi uma das notícias mais felizes na história de minhas fatigadas canelas
      Sei que em nome da vaidade ou, ainda, de sua irmã mais jeitosa, a humildade, eu não deveria dizer esse tipo de coisa, mas lá vai: muitas vezes me imagino participando da Flip. Não é o auditório lotado que vejo em meus devaneios narcisistas, tampouco a fila de autógrafos ou o flash dos fotógrafos: a imagem que me vem à mente, sempre, é a do futebol.
      Talvez o leitor não saiba, mas em toda Festa Literária de Paraty há uma pelada disputada pelos escritores --ou, ao menos, por aqueles cuja saúde permita bater uma bola sem bater as botas. Em minha quimera lítero-esportiva, saio driblando críticos, ultrapassando romancistas, desarmando contistas e, de calcanhar, de bicicleta ou trivela, estufo a rede. Finda a partida, recebo os cumprimentos de Roberto Schwarz, José Miguel Wisnik pede para trocar comigo a camisa, dou entrevista à revista "Serrote", dedicando a vitória à minha esposa, à Deus e --quem sabe?-- à professora Lucilene, do primário, pois sem ela...
      Não é o meu talento ludopédico, claro, que me insufla tais delírios, mas bem o contrário: é do oco em que deveria residir minha habilidade que sopra a brisa da ilusão. Nas aulas de educação física, na escola, eu era aquele infeliz escolhido por último. Ainda trago na memória as cicatrizes causadas pelo olhar aflito do garoto a escalar o time, tendo de optar entre mim e a menina de cabresto nos dentes --por quem, ao fim, ele se decidia.
      O sofrimento com o analfabetismo de minhas pernas durou até 2004, quando fui à primeira Flip e, assistindo à douta cancha, descobri que o desempenho futebolístico dos escritores era inversamente proporcional às suas virtudes literárias. Percebi, ali, que havia esperança: entre os grandes das letras, pelo menos, eu poderia ser um craque da bola. Desde então, a cada ano, sempre que se aproxima a escalação para uma nova festa literária, cozinho algumas insônias na chama da expectativa, mas, para minha frustração, nunca encontro meu nome na lista.
      Pois, semana passada, Charles Miller debateu-se em seu túmulo e eu recebi uma das notícias mais felizes na história de minhas fatigadas canelas. Fui selecionado pelo Instituto Goethe para integrar o time de escritores brasileiros que irá à Feira de Frankfurt, em outubro, enfrentar os alemães da Seleção Nacional de Autores, a "Autorennationalmannschaft" --ou Autonama, para os íntimos.
      Nesta ensolarada (espero) manhã de domingo, enquanto você toma descansadamente seu café, eu e mais 15 escritores brasileiros suamos a camisa, no primeiro treino coletivo do escrete da escrita. Sabemos o tamanho da responsabilidade: somos, simultaneamente, a pátria de chuteiras e de teclados, temos menos de dois meses e, tomando a mim mesmo como medida, imagino que o caminho será tortuoso. Há, contudo, dois dados animadores: do outro lado do campo também haverá escritores e nosso técnico é ninguém menos do que Pepe, o "canhão da Vila".
      A ver se, nestas oito semanas, sob a batuta de um dos maiores pontas-esquerdas da história, deixo de ser canhestro e sigo apenas canhoto, mostrando que, com fé em Deus e obedecendo a orientação do professor, é possível, apesar de ser "gauche" na vida, fazer bonito pela sinistra nos gramados do velho mundo.
      Que vença o pior!

      domingo, 11 de agosto de 2013

      Antonio Prata

      folha de são paulo

      Linha cruzada

      DE SÃO PAULO
      Ouvir o texto

      Num saloon, na periferia da TV a cabo, lá pelo canal 467, depois do PPV 22, da TV Coreia e do Discovery Corte & Costura, o caubói dublado toma seu uísque. Pela porta basculante, a gostosa em filme nacional dos anos 70 entra esbravejando:
      -- Que lugar é esse, bicho? Cadê o Marquinho, poaaaaarra?!(A gostosa em filme nacional dos anos 70, nem preciso dizer, tem forte sotaque carioca.)
      O caubói dá um gole e, sem olhar pro lado, diz:
      -- Sabe, pequena, lá de onde eu venho as damas não costumam falar deste modo.
      -- Qualé, bicho?! Abaixo a repressão! Você parece o meu velho! Responde, poaaaarra: tu viu um cabeludo, blusa de batique, violão no ombro? O nome dele é Marquinho...
      -- Nunca vi este Mckinsey, senhorita. E mesmo que tivesse visto, se ele for o seu marido, eu iria manter meu bico fechado.
      -- Marido?! Corta essa! Casamento já era, sacou? Eu transo liberdade, entendeu?
      -- Não. Mas quanto menos entendo o que diz essa boca, mais me interesso por ela. Que tal esquecer este Mckinsey e irmos até minha choupana? Algo me diz que uma senhorita com o seu linguajar apreciaria alguns tragos de uísque.
      -- Uísque, bicho? Que proposta mais pequeno burguesa! Uns tapinhas eu até dava, mas o poaaaarra do Marquinho tá com o meu fumo, meaaarrrrda!
      -- Então o Mckinsey é um ladrão? Se você quiser, posso dar um jeito nele.
      -- Que papo é esse?! Tu é milico? Tu tá parecendo um milico! Milico de meaaarrrrrda! Diz, tu é milico ou não é?!
      -- Não sei o que é isso, pequena, mas tenho certeza de que não sou. Barman, acho que esta senhorita está precisando de um trago. O barman enche um copo de uísque.
      -- Tu jura que não é milico?
      -- Sim. E tem duas coisas que aprendi com meu velho pai: a nunca jurar em falso e sempre ser gentil com as damas. Ela vira o uísque num gole, se senta, apoia os cotovelos no balcão, cobre o rosto.
      -- Poaaaarra, o Marquinho é foaaaada! Vive dizendo que tá de saco cheio de transar essa caretice de escritório, que o sonho dele era largar tudo e ir morar comigo lá em Arembepe, criar nossos filhos com o pé na areia, mas no dia que a gente combinou de ir embora, ele some, poaaaarra!
      -- Bem, pequena, às vezes as pessoas não são quem elas parecem ser.
      -- É isso aí! Tu tá por dentro, bicho! O Marquinho diz que quer destransar esse lance de consumo, desneurotizar do individualismo, mas ele é igualzinho o pai dele! Burguesinho de meaaarrrrda! O que ele quer é dinheiro na conta e um Corcel na garagem!
      -- Dinheiro eu não tenho, mas o meu corcel está amarrado aí na frente. A minha proposta continua de pé. Vamos até a minha choupana? Fica no alto da colina, a meia légua daqui.
      -- Corta essa, tá? Já saquei o teu papo quadrado! Você só quer me possuir, como um produto! A revolução tem que ser aqui dentro, sacou? --bate com o indicador na própria cabeça. -- Enquanto a gente não derrubar essa ditadura --continua apontando a cabeça--, não adianta nada derrubar os milicos! Aqui pra você, ó!
      Ela levanta a blusa, mostra os peitos para o caubói e sai pela porta do saloon, esbaforida.
      Enquanto isso, no castelo de Grayskull, He-Man, Mentor, Teela e Gorpo prometem a Marquinho que farão de tudo para encontrar sua namorada.
      antonio prata
      Antonio Prata é escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" (editora 34). Escreve aos domingos na versão impressa de "Cotidiano".

      domingo, 4 de agosto de 2013

      Laranjas e chocolates - Antonio Prata

      folha de são paulo
      Laranjas e chocolates
      Preferia crer que há uma intenção por trás de tudo, mas me revigoro em minha descrença ao ler certos autores
      Para o León Ferrari
      Sei que o papa já foi embora há uma semana e talvez seja um pouco tarde para falar de Deus. Acontece que, apesar dos milhões em Copacabana, da lama em Guaratiba, do justificado louvor e dos louváveis protestos causados pela visita do santo padre, o assunto só bateu aqui na porta quinta-feira à noite, quando a Stella, vizinha da frente, apareceu para conhecer minha filha.
      Stella é americana e viveu no Brooklin, NY, até se apaixonar por um pianista brasileiro, nos anos 60. Veio passar um Réveillon nos trópicos e lá se vão 50 anos. No dia em que me mudei, precisei dar um telefonema, meu celular estava sem sinal, bati em sua porta. Uma semana depois, passei por um desses caminhões que vendem frutas, na esquina, vi umas laranjas lindíssimas, uma pilha de sóis poentes sobre o mar azul da caçamba, comprei um saco pra ela.
      Inimizades precisam de pouco para surgir; amizades, felizmente, também. Um telefone, algumas dúzias de laranjas e pronto: ambos soubemos que havia alguém com quem se podia contar, do outro lado da rua. Talvez por isso ela tenha ficado incomodada com meu sorriso vacilante, quando, depois de conhecer minha filha, despediu-se com um "fiquem com Deus". Stella me encarou por um tempo, curiosa. "Você não acredita em Deus?" "Não."
      Senti a decepção no rosto da minha vizinha. Não a decepção boba de quem passasse a me ver como um herege, um pecador, mas uma tristeza genuína: deixávamos de compartilhar um elo que, para ela, talvez fosse o maior. Stella me sorriu, um tanto compadecida.
      Às vezes também me compadeço de mim. Preferia crer que há uma intenção por trás de tudo, que as cordas que amarram nossas existências são mais consistentes do que o programa de uma casa de shows no Brooklin, a má qualidade da telefonia, laranjas na caçamba de um caminhão. Então abro um livro, leio um poema do Drummond, do Fernando Pessoa ou do Vinicius e me revigoro em minha descrença.
      Apesar de lamentar terrivelmente não ter qualquer esperança no além, acredito que o ateísmo --quando amparado por boa poesia, pelo menos-- é uma concepção mais elegante, mais profunda e que encerra mais respeito à vida do que a fé em Deus. Que eu exista, que você exista, que haja árvores que dão frutos e frutos que dão sementes, que esses frutos sejam doces justamente para que eu e você os comamos e espalhemos as sementes... Não é infinitamente mais belo se nada disso fizer parte de roteiro algum? Veja o universo, que coisa fantástica. Pra que serve? Pra nada: eis o grande milagre.
      "E depois que a gente morre, o que você acha que acontece?", perguntou minha vizinha. "Acaba." "Nossa, é muito triste pensar assim." É. E quanto mais triste me parece, mais bonito fica. Do pó viemos, ao pó voltaremos, cá estamos neste "caminho entre dois túmulos", sabendo que "não há metafísica no mundo senão chocolates" e, contudo, vez por outra, nos botamos "comovidos como o diabo".
      Stella foi embora. Olhei a carinha da minha filha, em seu ninho de cobertores e uns últimos versos vieram em meu auxílio, "Hoje a noite é jovem; da morte, apenas/Nascemos, imensamente". Depois fui comer chocolates.

      domingo, 28 de julho de 2013

      Antonio Prata

      folha de são paulo
      Pé de cachimbo
      Devo dizer que não gosto de domingos nem de cachimbos, mas sei que o errado sou eu, não eles
      "Hoje é domingo, pé de cachimbo", eu cantava, quando era pequeno, e me vinha à cabeça uma árvore de madeira escura, com pencas de cachimbos pendendo das pontas dos galhos, prontos para serem colhidos e fumados. Fiquei um pouco desapontado, lá pelos dez anos, ao descobrir que o certo era "pede" cachimbo. Corrigi a música, mas o domingo, não: pra mim, ele continua sendo esse quadro pintado por Magritte e Dalí, com sua frondosa oferta de descanso e generosa sombra de melancolia.
      Devo dizer que não gosto de domingos nem de cachimbos, mas sei que o errado sou eu, não eles. Queria muito ser uma pessoa que acorda cedo, que vai ao parque. Um desses caras que eu vejo do carro, pedalando pela ciclovia, a mulher ao lado e um filho atrás, em sua bicicletinha. Dá uma alegria vê-los ali, passeando pela cidade. Enquanto permanecem no meu retrovisor, parece que o mundo é justo e que cada coisa está em seu devido lugar. É mais ou menos o que sente, imagino, o sujeito que chega à varanda, ao fim de um dia de trabalho, ou afunda na poltrona, meditabundo, para fumar o seu cachimbo.
      Escrevo "meditabundo" e, por um momento, quase comungo desta alegria dominical, tirando as palavras velhas do armário para tomarem sol ou pitando-as calmamente, sem tragar, só para saboreá-las. Mas, meditabundo que me encontro --é domingo--, a sombra do pé de cachimbo logo me alcança: não sou esse homem na ciclovia nem esse outro, em sua varanda, em sua poltrona, com o vento no rosto ou a fumaça na boca, displicentemente instalados no presente.
      Acho que, no fundo, tenho dificuldades é com o presente. Outro dia, reparei que sempre escovo os dentes com pressa, como se estivesse atrasado para um compromisso. Que compromisso é esse? Não sei. É como se houvesse nascido atrasado, chegado ao mundo meia hora depois e a todo instante tentasse recuperar os minutos perdidos. Talvez por isso me sinta mais acolhido nos dias de semana, dedicados ao trabalho e suas promessas. Alguma hora, ali adiante, a crônica estará pronta, o livro estará editado, o roteiro estará filmado e a concretização desses projetos, acredito, me trará sei lá que conforto, sei lá que certeza sobre mim mesmo --mas nunca traz. Por que se agoniar olhando para a direita do ponto final em vez de se contentar com o que há à esquerda? (Um dia, estarei eu à direita do ponto final e aí não haverá mais o que olhar.)
      Ano passado, comprei uma bicicleta. Ao tirá-la da caixa, senti certa vergonha de mim mesmo, como um velho que sai da loja calçando All Stars vermelhos: aquilo não era eu, nem poderia mudar-me. Por meses a bicicleta se tornou só mais uma pequena emissora de ansiedade --preciso usar essa bicicleta, preciso usar essa bicicleta, preciso...--, depois seus pneus murcharam e eu soube que já não era por ela que eu escovava os dentes com pressa.
      Talvez eu devesse comprar é um cachimbo. Nem que fosse para enterrá-lo no jardim, regá-lo todo dia e ficar na varanda, olhando pra grama e esperando, num exercício zen, em busca da paz interior. É isso: preciso comprar um cachimbo, preciso comprar um cachimbo, preciso.

      domingo, 21 de julho de 2013

      Antonio Prata

      folha de são paulo
      Diário
      Relatividade #4: Já estamos em casa há extenuantes 24 horas e parece que foi ontem que chegamos
      Ou noitário? Tanto faz, já que dia e noite são conceitos ultrapassados e sem sentido neste insone fluxo neonatal. Vivo num JÁ contínuo em que se alternam momentos de paz (ela mama, ela dorme) e guerra (ela urra, ela urra, ela urra). Durante os armistícios, abro o laptop e tento gravar algumas memórias da caserna, para que não se percam nesta terra de ninguém em que vagam meus combalidos neurônios. Opa, ela urra: fecho o laptop, besunto as mãos com álcool gel e volto às trincheiras.
      -- Segunda, circa 2h AM: Ela dormia como um anjo e acordou como uma motosserra. Chorou ininterruptamente por 40 minutos --ou quatro horas? Tivemos vergonha de ligar para o pediatra só por causa de um choro, de modo que decidimos levá-la diretamente ao hospital. Na porta de casa, contudo, ouvimos a trombeta celeste anunciando a volta do Senhor e o fim das tribulações terrenas: um pum. E com o pum veio a paz, e com a paz, o sono.
      -- Babação #35: Imagino aquele punzinho se espalhando pela atmosfera e não consigo deixar de pensar que o mundo agora é um lugar melhor. É grave, doutor?
      -- Ideia #9: O inventor da babá eletrônica deveria ganhar o Nobel.
      -- Babação #36: Abro as fraldas com a curiosidade de quem confere a caixa de entrada do e-mail. Haverá alguma mensagem? Qual a cor, a consistência? Quando fecho os olhos, todos os cocôs desfilam pela memória, como num baralho ilustrado por Pollock. É muito grave, doutor?
      -- Segunda, 8h32 AM: Ela mama com a sede de um náufrago. Então, sem aviso prévio, joga a cabeça para trás e dorme, como se o último gole de leite fosse um trago de ópio.
      -- Desafio #149: Sem que houvesse qualquer debate, decretou-se que eu era o encarregado pelo banho nesta casa. Não acho que eu seja a pessoa mais indicada para a tarefa. São vários procedimentos de alta complexidade e periculosidade num curto espaço de tempo. Aprender a dirigir foi mais fácil.
      -- Mantras: "O movimento do algodão é sempre do limpo pro sujo". "Jamais se afaste do trocador." "Sempre sustente a cabeça." "Relaxa, isso é cólica." "Relaxa, isso é cólica." "Relaxa e tenta acreditar: isso é cólica."
      -- Mistério #91: Como as pessoas fazem para criar filhos e, ao mesmo tempo, trabalhar? Tolstói teve 13 rebentos e "Guerra e Paz" tem 2.536 páginas (aposto que Tolstói não era o encarregado pelo banho na casa dele).
      -- Ideia #9B: O inventor da babá eletrônica deveria ser guilhotinado.
      -- Ideia de livro infantil, para o caso improvável de algum dia eu voltar a trabalhar: Os heróis Colostro e Bepantol lutam contra os vilões Mecônio e Icterícia.
      -- Observação #78: Todos os clichês fazem sentido. Em cada bocejo contemplo O Grande Movimento do Universo. Ao lado do berço, sussurro: "Olivia, você não existia e agora existe: olha só o que você fez, sua doida!".
      -- Correção #1: Filhos? Melhor tê-los! Mas só os tendo é possível sabê-lo.
      -- Relatividade #4: Já estamos em casa há extenuantes 24 horas e parece que foi ontem que chegamos.
      -- Dúvida atroz: devo me agarrar ao "calma que passa!" ou ao "aproveita que passa rápido!"?
      Deixo para pensar mais a respeito no próximo armistício: agora, ela urra; fecho o laptop, besunto as mãos com álcool gel e volto às trincheiras.

      domingo, 14 de julho de 2013

      Antonio Prata

      folha de são paulo
      Estepe
      A ideia de manter um texto reserva foi do meu pai: 'Vai que a sua mulher te abandona e tudo o que sai são lágrimas?'
      Esta não é a crônica que deveria estar aqui: é uma crônica estepe. Se você a está lendo, ludibriado leitor, é porque a outra furou, ou melhor, eu furei e, nesta semana, por razões que desconheço, deixei de entregar minhas maltraçadas ao jornal.
      A ideia de manter um texto reserva, bem guardado no porta-malas da redação, foi do meu pai: "Vai que, justo no dia de mandar a coluna, acaba a luz? Vai que te surge uma pedra no rim? Vai que a sua mulher te abandona, você senta pra trabalhar e tudo o que sai são lágrimas e letras do Tim Maia? Deixa uma crônica prontinha com as redatoras, pra uma emergência. Vai por mim".
      Eu fui, ou melhor, estou indo: hoje é dia 22 de agosto de 2011 e aqui me encontro, enchendo este estepe com o parco ar de minha inspiração, de modo que nenhum prego, buraco ou pedra no meio do caminho me impeça de, no futuro próximo ou distante, levá-los com segurança e conforto de uma margem a outra desta página.
      Hoje de manhã, quando decidi me dedicar à empreitada, senti aquele pequeno orgulho cívico de quem acaba de marcar uma visita de rotina ao dentista ou manda lavar a caixa-d'água, mas aos poucos, enquanto escrevo, percebo a alegria da cautela se escondendo sob a nuvem preta do temor: só consigo pensar no que terá acontecido para que eu tenha deixado de enviar a crônica.
      Lembro do dia, faz uns três anos (ou seis? Ou 49?), em que fiz um seguro de vida. Lembro do sorriso estúpido do gerente ao anunciar que, em caso de morte, o "prêmio" seria de R$ 200 mil. "Taí um prêmio que eu não quero ganhar", eu disse, ao que ele me respondeu, seriíssimo: "Não, não, no caso você não ganha nada, quem ganha é o beneficiário". Pensei em simular uma indignação, em exigir que a quantia fosse depositada nos bolsos do meu traje mortuário, tendo o gerente, pessoalmente, o cuidado de disfarçar a bufunfa com algumas flores do caixão, mas respirei fundo e só assinei ao lado do xizinho, um pouco incomodado por saber que eu valia mais morto do que vivo.
      Céus, veja o poder daquela nuvem negra: comecei com uma queda de energia e, quatro parágrafos adiante, estou sete palmos abaixo da terra. Não é para tanto. Seria de muito mau gosto o jornal publicar este texto se eu tivesse batido as botas. Donde concluo, aliviado, que se você, póstero leitor, estiver lendo agora a palavra "carambola", seja em 2012, 2021 ou 2043, é porque não morri. Talvez esteja no escuro, talvez tenha uma pedra no rim, quem sabe minha mulher me abandonou e eu me encontre na rua da amargura, bebendo Cynar com Fanta Uva e cantando "Me Dê Motivos", mas estou vivo.
      Estou vivo e preso ao dia 22 de agosto de 2011. Vocês estão vivos e deslizando rumo ao futuro, como pinguins sobre placas de gelo. Ó aí, lá vou eu querendo ser trágico de novo. Deixa disso, Antonio: se o futuro é insondável, seja ao menos um pouco otimista. Ok, serei: quem sabe este texto está sendo publicado porque anteontem ganhei o Oscar de melhor roteiro e, numa ressaca de Dom Pérignon, fui incapaz de escrever uma linha? É isso. Semana que vem eu conto como foi a festa e como resisti às insistentes cantadas de Scarlett Johansson, que, mesmo sessentona e um pouco acima do peso, ainda bate um bolão. Até.

        domingo, 7 de julho de 2013

        Antonio Prata

        folha de são paulo
        Sobe o pano
        Saindo da clínica, achei que havia chegado a hora de encararmos a verdade: a Olivia não iria nascer
        Os amigos haviam nos alertado: "A gravidez dura nove meses mais um século" --só esqueceram de nos avisar que esse século demorava tanto. A espera é angustiante, mas compreensível: produzir um ser humano inteirinho, do zero, com braços, pernas, neurônios, vesícula, cílios, um coração e, muito em breve, infinitas opiniões sobre Deus e o mundo, é um troço tão complexo que não seria despropositado se toda a existência do universo fosse consumida na formação de um único bebê.
        Imagino um lance meio "2001 - Uma Odisseia no Espaço": o Big Bang como o momento da concepção, galáxias se formando feito órgãos, estrelas e planetas se multiplicando tais quais pequenas células, tudo se expandindo e se aglutinando, moldando um só corpo. Por fim, 13,7 bilhões de anos após a luz ter fecundado a escuridão, num domingo de julho nos idos de 2013, digamos, um neném gigante faria ecoar o seu pranto intergaláctico. Cai o pano.
        Felizmente, não é assim, e cada um de nós (ou melhor, cada dois) pode brincar de Deus, fabricando uma criancinha para chamar de sua. Trinta e oito semanas, dizem os livros, é o que leva para ela estar completamente formada. Pois eis que chegou a 38ª semana, a 39ª, a 40ª e nada de nossa filha dar o ar de sua graça. O quarto estava montado. A mala da maternidade, feita. A cadeirinha, depois de uma batalha hercúlea, fora instalada no carro. O futuro avô viera de Florianópolis. Amigos mandavam SMSs: "E aí? Cadê??".
        O ultrassom da última quarta não trazia novidades: a cabecinha ainda não tinha se encaixado, a dilatação não começara e a placenta funcionava perfeitamente, provendo nossa filha dos nutrientes e oxigênio necessários para que seguisse com suas atividades de costume: lutar muay thai durante o dia e dançar foxtrot noite adentro.
        Saindo da clínica, achei que havia chegado a hora de encararmos a verdade: a Olivia não iria nascer. Tinha decidido ficar ali no morninho, com aquele cabo HDMI ligado diretamente à barriga, num "all inclusive" que nem o mais farto dos resorts sonharia em oferecer. E quem iria convencê-la a trocar a mordomia intrauterina pelas frias tardes de julho?
        Sei que é muita pretensão imaginar que eu tive qualquer influência no processo, colando a boca na barriga da Julia e falando sobre o sol, a praia e a cachoeira, a girafa, o pinguim e o canguru, o doce de leite, a manga e o leitão, "Toy Story" 1, 2 e 3, mas o fato é que, lá pelas três da tarde daquela mesma quarta-feira, começaram as contrações. Quinze horas depois, numa batalha excruciante que só se compara, em dificuldade e emoção, à instalação da cadeirinha, nossa Olivia fez ecoar pelo Itaim seu pranto intergaláctico. Veio ao mundo com 48,5 cm, 3,71 kg e, para sua sorte, é a cara da mãe. Sobe o pano: aproveite o espetáculo, filhota.
        Na coluna de 26 de junho, descrevi uma traumática visita à unidade Armênia do Detran. Faltou dizer que ela se deu em 2010. Segundo a assessoria de imprensa do órgão, desde 2011 o Detran encontra-se sob nova direção (com o mesmo pessoal que implementou o Poupatempo) e a unidade Armênia está bem mais agradável e eficiente. Parabenizo-os pelo empenho civilizatório diante do descalabro kafkiano.

          quarta-feira, 26 de junho de 2013

          Habilitando-nos - Antonio Prata

          folha de são paulo
          Uma reforma política é inútil se não fizermos uma reforma cultural; a corrupção nos atravessa de cima a baixo
          Quando veio a carta do Detran informando que minha habilitação havia sido suspensa, fiquei mais chateado do que surpreso. Havia meses que as multas chegavam, quase toda semana, e eu não tomava nenhuma providência. Bem, eu estava apaixonado. A maioria dos pontos, aliás, vinha da mesma infração: estacionar sem Zona Azul em frente ao prédio da minha namorada. Sabe como é, começo de relação: chegávamos lá toda noite, empolgados, um sugeria parar o carro no estacionamento dois quarteirões abaixo, o outro dizia "Bobagem, deixa aí, amanhã eu acordo antes das sete e tiro", subíamos aos beijos e só acordávamos quando o sono e a CET já haviam passado.
          Com dúvidas sobre as burocracias, fui a um grande despachante na zona oeste de São Paulo. A atendente puxou minha ficha: "Olha só, você tá com 61 pontos. Ia ter que ficar um ano sem dirigir, tá? Mas por R$ 1.500, em um mês, a gente te entrega a carta, zerada. É R$ 800 pra gente e R$ 700 pro Detran". "Sei, você tá me propondo subornar um cara no Detran pra me livrar da pontuação?" Longo silêncio e: "Veja bem, no caso, é mais assim uma taxa de urgência, senhor".
          Liguei para outros cinco despachantes, todos me ofereceram o mesmo esquema. Aparentemente, só havia duas opções: ou eu subornava um despachante para que ele não subornasse ninguém, ou tomava coragem, respirava fundo e ia pessoalmente à toca do dragão.
          No Disque Detran, uma mulher me mandou ir à rua Boa Vista, 221, levando a CNH original, cópias do RG, do CPF e de comprovante de residência. Fiquei desconfiado: não podia ser assim tão fácil --e não era. No número 221 da rua Boa Vista, uma funcionária me informou, com um prazer quase sexual: "Aqui a gente nem atende o público, querido! Entrega de CNH é na avenida do Estado, 900".
          Só quem leu a "Divina Comédia", de Dante, pode ter um pálido vislumbre do inferno que se esconde na avenida do Estado, 900. Hordas de desesperados zanzavam de um lado pro outro. Famílias dormiam pelos cantos. Numa sala de espera, apenas 5 de 24 cadeiras (eu contei) estavam em condições de uso. Uma mãe, sentada no chão, amamentava seu recém-nascido. Havia manchas assustadoras pelas paredes e, se não me engano, ouvi sons de chicote, estalos de ossos e gritos vindos de alguma masmorra adjacente.
          Felizmente, minha tortura resumiu-se a uma longa fila e a ser barbaramente informado, após uma hora e meia, que não aceitavam cópias do RG e do CPF. "Mas eu liguei no Disque Detran!" A moça me olhou, suspirou e, feliz com esses breves momentos de alegria que seu emprego lhe oferece, bradou por sobre o meu ombro: "Próximo!". O oitavo (juro) despachante para quem liguei aceitou, por uma fábula, "quebrar o meu galho" dentro da lei.
          Quem acumula 61 pontos na carta não pode dar lição de moral. Não é essa a minha intenção, muito pelo contrário: neste momento em que nos levantamos contra a roubalheira dos políticos, seria bom que os dedos em riste também escarafunchassem um pouquinho as nossas consciências. Uma reforma política é inútil se não fizermos uma reforma cultural. A corrupção nos atravessa de cima a baixo: do financiamento das campanhas à compra de CNHs --passando, evidentemente, pelo carro do motorista apaixonado estacionado em local proibido.

          quarta-feira, 19 de junho de 2013

          Sejamos francos: ninguém está entendendo nada - Antonio Prata

          folha de são paulo
          A passeata
          Sejamos francos: ninguém tá entendendo nada. Nem a imprensa nem os políticos nem os manifestantes
          Tinha punk de moicano e playboy de mocassim. Patricinha de olho azul e rasta de olho vermelho. Tinha uns barbudos do PCO exigindo que se reestatize o que foi privatizado e engomados a la Tea Party sonhando com a privatização de todo o resto. Tinha quem realmente se estrepa com esses 20 centavos e neguinho que não rela a barriga numa catraca de ônibus desde os tempos da CMTC. (Neguinho, no caso, era eu). Tinha a esperança de que este seja um momento importante na história do país e a suspeita de que talvez o gás da indignação, nas próximas semanas, vá para o vinagre.
          Sejamos francos, companheiros: ninguém tá entendendo nada. Nem a imprensa nem os políticos nem os manifestantes, muito menos este que vos escreve e vem, humilde ou pretensiosamente, expor sua perplexidade e ignorância.
          Anteontem, depois da passeata, assisti ao "Roda Viva" com Nina Capello e Lucas Monteiro de Oliveira, integrantes do Movimento Passe Livre. Ficou claro que, embora inteligentes e bem articulados, eles tampouco compreendem onde é que foram amarrar seus burros. "Vocês começaram com uma canoa e tão aí com uma arca de Noé", observou o coronel José Vicente. Os dois insistiram que não, o que há é um canoão, e as mais de 200 mil pessoas que saíram às ruas no Brasil, segunda-feira, lutavam por transporte público mais barato e eficiente. A posição dos ativistas de não se colocarem como os catalisadores de todas as angústias nacionais e seguirem batendo na tecla do transporte só os enobrece --mas estarão certos na percepção? Duzentas mil pessoas de esquerda, de direita, de Nike e de coturno por causa da tarifa?
          "Por que você tá aqui no protesto?", perguntou a repórter do "TV Folha" a uma garota na manifestação do dia 11: "Olha, eu não consigo imaginar uma razão para não estar aqui, na verdade", foi sua resposta. Corrupção, impunidade, a PEC 37, o aumento dos homicídios, os gastos com os estádios para a Copa, nosso IDH, a qualidade das escolas e hospitais públicos são todos excelentes motivos para que se saia às ruas e se tente melhorar o país --mas já o eram duas semanas atrás: por que não havia passeatas? Será porque a chegada do PT ao poder anestesiou os movimentos sociais, dificultando a percepção de que o Brasil vem melhorando, melhorando, melhorando e... continua péssimo? Ou será porque agora o Facebook e o Twitter facilitam a comunicação?
          Se as dúvidas sobre as motivações --que brotam do solo minimamente sondável do presente-- já são grandes, o que dizer sobre o futuro do movimento? Marchará ou murchará? Caso cresça: conseguirá abaixar a tarifa? E, no longo prazo, terá alguma relevância? Mais ainda: adianta ir às ruas, fazer barulho? Ou a própria passeata extingue o impulso de revolta que a criou e voltamos todos para o mundinho idêntico de todos os dias, com a sensação apaziguadora de que "fiz a minha parte"?
          Não tenho a menor ideia, estou mais confuso que o Datena diante da enquete (migre.me/f4UCh), mas num país injusto como o nosso, em que a única certeza parecia ser a de que, aconteça o que acontecer, o Sarney estará sempre no poder, as dúvidas dos últimos dias são muitíssimo bem-vindas.

          segunda-feira, 17 de junho de 2013

          Polícia criou 'metamanifestação' com violência

          folha de são paulo
          OPINIÃO GUERRA DA TARIFA 
          Cidade para por muitas razões --como no Natal, na Paulista--, não só pelo trânsito provocado pelos protestos
          ANTONIO PRATACOLUNISTA DA FOLHAA prisão do jornalista Piero Locatelli, na passeata da última quinta (http://migre.me/f2T7x), pelo inaudito crime de porte de vinagre, diz muito sobre a postura da PM durante aquela tarde e noite. Dá, ainda, uma pista de como o governo paulista conseguiu transformar um movimento de 5.000 pessoas, cujos motivos pareciam questionáveis a quase metade da população, num poderoso imã de insatisfações --a se crer nas confirmações via Facebook, dezenas de milhares podem comparecer hoje à 5ª Manifestação do Movimento Passe Livre, no largo da Batata.
          Piero, repórter da Carta Capital, estava no viaduto do Chá filmando a polícia revistar alguns manifestantes, quando um PM pediu para que ele também abrisse sua mochila. Havia ali uma garrafa de vinagre --substância que, ao ser inalada, minimiza os efeitos do gás lacrimogêneo. Encontrada a garrafa, ele foi detido e levado para o 78º DP.
          Se a produção, o porte e o consumo do ácido acético não configuram crime em território nacional, por que o jornalista foi preso? Porque o vinagre era indício de que ele estava ali para a manifestação --e sair às ruas para manifestar-se, como indicam a detenção do repórter e os relatos, fotos e vídeos dos feridos pelas balas de borracha e golpes de cassetete naquela noite, é visto pelo governo como uma atividade criminosa.
          Justificando as ações da PM, o governador Geraldo Alckmin afirmou que "A polícia tem o dever de preservar o direito de ir e vir". Muito acertadamente, um tuiteiro lembrou que a decoração natalina das agências bancárias da Paulista também restringe o direito de ir e vir, a cada dezembro, e ninguém jamais foi preso ou tomou tiro de borracha no rosto por causa disso. Pelo contrário, nos últimos anos a CET fechou algumas vezes as pistas da avenida, em certas horas do dia, para que os pedestres apreciassem os enfeites.
          A constatação acima não significa subscrever o slogan "Se a tarifa não baixar, São Paulo vai parar", apenas aceitar o fato de que nossa cidade (ou uma parte dela) para por outras razões, sem que seja enviada a Tropa de Choque. Seria a discussão sobre o preço do transporte público motivo menos nobre do que as luzinhas e as renas do Papai Noel?
          Se na última quinta a polícia houvesse acompanhado os manifestantes pacificamente, ou os bloqueado e tentado negociar, talvez o MPL tivesse perdido força. Talvez alguns dos participantes tivessem partido pro quebra-quebra e o movimento acabaria desmoralizado perante a opinião pública. A violência da PM, contudo, criou para hoje essa metamanifestação: é o direito de ir às ruas, mais do que o preço do ônibus, o que parece motivar as 186.014 pessoas que, até a conclusão deste texto, haviam confirmado a presença no largo da Batata, pelo Facebook.
          Claro que nem todo mundo vai --para muitos, dizer que irá já é uma forma de dar apoio-- mas é fundamental que o governo se prepare para um evento de grandes proporções. É imprescindível que a polícia se comporte de maneira radicalmente diferente do que fez na quinta: não só para que se garanta um dos direitos mais básicos da democracia, mas para evitar uma tragédia.

            quinta-feira, 13 de junho de 2013

            Entre ou saia - Antonio Prata

            folha de são paulo

            Entre ou saia


            Li anteontem, aqui na Folha: sexta-feira passada, um aluno apareceu de saia no Bandeirantes, foi proibido de assistir às aulas e mandado de volta pra casa. O diretor da escola, Mauro de Salles Aguiar, disse à repórter Juliana Gragnani que a atitude visava proteger o estudante: "É altamente irresponsável e leviano por parte dos pais expor o filho a esse laboratório de experiências sociais. Se eles não têm preocupação com a segurança, o colégio tem que ter".
            Concordo em gênero, número e grau --principalmente em gênero, que é o que se discute aqui. Vejamos: se o mundo é machista e preconceituoso, qual é a função da escola? Ajudar os alunos a compreender e afirmar suas singularidades, mesmo que para isso desafiem os padrões e precisem mudá-los? Óbvio que não: o papel da escola é ensiná-los a se adequar a este mundo machista e preconceituoso, entrar nos eixos para, no futuro, conseguir uma boa colocação profissional. Jamais incentivá-los a se expor a um "laboratório de experiências sociais" --pois basta pensar na revolução sexual, na luta pelos direitos civis, nos EUA, ou na mudança do papel da mulher durante o século 20 para saber que isso nunca acaba bem.
            Há quem pense, equivocadamente, que a adolescência é uma fase de experimentação, época na qual consideramos diversos caminhos, comportamentos, indumentárias, questionamos nossas heranças familiares, sociais, culturais, rejeitamos o que não nos serve, descobrimos o que nos apraz e, assim, inventamos os adultos que queremos (e podemos) ser. Nada disso. Como bem sabem os que não são "irresponsáveis" nem "levianos", adolescência é o período em que nos resignamos a aceitar as fôrmas pré-moldadas que aí estão: homem de calça, mulher de saia --e vamos nos concentrar na tabela periódica, pois o que realmente importa nesta vida é aprender que o xenônio é um gás nobre e que o número atômico do bário é 56.
            "Um rapaz vestido de saia não é uma coisa que você espera ver na Vila Mariana, às dez e pouco da manhã", disse à repórter o diretor da escola, dando mais uma lição de pedagogia. Rapazes de saia, moças de gravata e outras esquisitices, caso existam, devem permanecer escondidos, na calada da noite, nos arrabaldes, não nos bairros familiares, à impoluta luz da manhã. "Ele não está numa galeria de arte. Está numa escola." Perfeito: afinal, nada mais antagônico do que uma galeria de arte e uma escola, certo? Dentro dos muros da primeira, a experimentação, a subversão, a bagunça. Dentro dos muros da segunda, as certezas, a reafirmação da tradição, a ordem.
            Quem disser que esta é uma visão antiquada da educação está redondamente enganado. É uma visão bem de acordo com os dias correntes. Antiquada é aquela outra, criada há uns 2.500 anos, na Grécia, que colocava a dúvida como o princípio do saber, acreditando que só com o diálogo e com a confrontação das verdades estabelecidas se derrubariam os tapumes do senso comum, iluminando as sombras de objetos e de conceitos que tantas vezes tomamos pelos objetos e conceitos em si. Mas o que sabiam aqueles homens? Absolutamente nada --e a prova maior é que andavam todos de saia.
            antonio prata
            Antonio Prata é escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" (editora 34). Escreve às quartas na versão impressa de "Cotidiano".

            quarta-feira, 29 de maio de 2013

            Antonio Prata

            folha de são paulo

            Apolpando

            DE SÃO PAULO

            Eu gosto de goiaba, mas não gosto de comer goiaba. Ela tem uns caroços que não são grandes, mas são duros: você deve mastigar com cuidado, só até seus dentes tocarem um caroço, então para --é como se nunca pudesse fruir plenamente das potencialidades da goiaba.
            Eu gostava da Alice, mas não gostava de namorar a Alice. Ela tinha umas implicâncias que não eram grandes, mas eram pétreas: eu tinha que me aproximar com cuidado, só até roçar em suas defesas --era como se eu nunca pudesse fruir plenamente das potencialidades da Alice.
            Quando terminamos, pensei: nossa, que mulher incrível seria Alice sem caroços!
            *
            Uma noite, muito tempo depois de terminarmos, Alice apareceu aqui em casa. Com outras palavras, disse que eu só era capaz de me relacionar com maçãs: pessoas homogêneas, medíocres, com quem você pode conviver sem se preocupar com a casca, os caroços, segurando pelo cabinho, sem melar as mãos.
            Acho que ela via a si própria como uma espécie de romã.
            *
            A banana é uma das frutas mais saborosas que existem e é, sem dúvida, a mais fácil de comer. O que joga por terra a falácia de que as pessoas interessantes ou inteligentes ou talentosas devem ser antipáticas, cheias de caroços ou difíceis de descascar. (Pena que, naquela noite, não pensei nisso.)
            *
            Chega de Alice. Falemos de coisas boas.
            *
            A manga é a picanha do reino vegetal. Se o mundo fosse justo, seria a manga, não a maçã, o paradigma da fruta; "pomme", em francês, seria manga; a serpente ofereceria manga a Adão e Eva (ah, o sexo que perdemos!*); Steve Jobs teria ficado rico pondo suas manguinhas de fora; Newton teria tirado a famosa soneca à sombra de uma mangueira.
            Não: se uma manga caísse na cabeça de Newton, ele a teria comido e mandado a física pras cucuias --que gravidade resiste a este Sol da Terra?
            *
            Nunca achei a menor graça na Audrey Hepburn --uma uva, diriam muitos: não discordarei, mas prefiro as mangas; ah, Scarlett Johansson!
            *
            Outro dia, meu pai veio me visitar e trouxe uma caixa de caquis, lá de Sorocaba. Eu os lavei, botei numa tigela na varanda e comemos um por um, num silêncio reverencial, nos olhando de vez em quando. Enquanto comia, eu pensava: Deus do céu, como caqui é bom! Caqui é maravilhoso! O que tenho feito eu desta curta vida, tão afastado dos caquis?!
            Meus amigos e amigas e parentes queridos são como os caquis: nunca os encontro. Quando os encontro, relembro como é prazeroso vê-los, mas depois que vão embora me esqueço da revelação. Por que não os vejo sempre, toda semana, todos os dias desta curta vida?
            Já sei: devem ficar escondidos de mim, guardados numa caixa, lá em Sorocaba.
            *Ver "A Verdadeira História do Paraíso", de Millôr Fernandes (Editora Desiderata).
            antonioprata.folha@uol.com.br
            @antonioprata
            antonio prata
            Antonio Prata é escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" (editora 34). Escreve às quartas na versão impressa de "Cotidiano".

            quarta-feira, 22 de maio de 2013

            Sem aspas na língua - Antonio Prata

            folha de são paulo

            Sem aspas na língua
            Vejo nas aspas uma pontinha de xenofobia, como se palavra estrangeira precisasse andar com o passaporte aberto
            Toda terça, lá pelas quatro da tarde, envio a crônica para a Andressa Taffarel, a Lívia Scatena e a Daniela Mercier, redatoras aqui do "Cotidiano". Duas horas depois, mais ou menos, uma delas me devolve o texto com todos os meus descalabros diligentemente corrigidos e grifados de amarelo. São erros de ortografia e de digitação, vírgulas e mais vírgulas que vão pro beleléu, um ou outro ajuste ao padrão Folha --séculos "XXI" que se adequam aos ditames do 21, "cowboys" que aprendem a falar sem a afetação do sotaque, como bons caubóis, "quinze pras seis" que trocam a imprecisão das letras pela pontualidade dos números: 17h45.
            Sou imensamente grato a essas mulheres, sem as quais, provavelmente, eu já teria sido desmascarado pela Ombudsman, num domingo, ou mandado embora do jornal, numa quarta-feira bem sedinho. Quero dizer: cedinho (Valeu, Andressa!). Há, contudo, um amarelo do qual sempre tento convencê-las a desistir: as aspas sobre os termos estrangeiros.
            De início, o que me incomodava era o peso desproporcional que as aspas dão à palavra. Se escrevo mouse pad, por exemplo, suscito em seu pensamento apenas o quadradinho discreto que vive ao lado do teclado, objeto não mais notável na economia do cotidiano do que as dobradiças da janela ou o porta-escova de dentes. Já "mouse pad" parece grafado em neon, brilha diante de seus olhos como o luminoso de uma lanchonete americana. Desequilibra.
            Tá legal, eu aceito o argumento: não se pode exigir do leitor que saiba outra língua além do português. Se encasqueto em ornar meu texto com "dramblys" ou "haveloos" --termos em lituano e holandês para elefante e mulambento, respectivamente, segundo o Google Translator--, as aspas surgem para acalmar quem me lê, como se dissessem: "Queridão, os termos discriminados são coisa doutras terras e doutra gente, nada que você devesse conhecer".
            Pois é essa discriminação o que, agora sei, mais me incomoda. Vejo por trás das aspas uma pontinha de xenofobia, como se para circular entre nós a palavra estrangeira precisasse andar com o passaporte aberto, mostrando o carimbo na entrada e na saída.
            Ora, por quê? Será que "blackberries" rolando livremente por nossa terra poderiam frutificar e, como ervas daninhas, roubar os nutrientes da graviola, da mangaba e do cajá? "Samplers", sem as barrinhas duplas de proteção, acabariam poluindo o português com "beats" exógenos, condenando-o a uma versão "remix"? Caso recebêssemos "blowjobs" sem o supracitado preservativo gráfico, doenças venéreas se espalhariam por nosso exposto vernáculo?
            Entendam, minhas caras Lívia, Andressa e Daniela, não estou reclamando de vocês --nem é esta uma questão puramente jornalística, mas algo inerente à burocracia da língua, de todas as línguas; resolução de alguma antiquíssima OMC lexical, datada, talvez, da queda de Babel, destinada a garantir a pureza dos idiomas contra as invasões bárbaras.
            Bobagem, pessoal. Livremos as nossas frases desses arames farpados, desses cacos de vidro. A língua é viva: quanto mais línguas tocar, mais sabores irá provar e experiências poderá acumular. Let it be, let it bleed --e dessa geleia geral, whatever will be, will be.

            quarta-feira, 15 de maio de 2013

            Olívia IPA - Antonio Prata

            folha de são paulo

            Olívia IPA
            Fiz um curso para aprender a produzir cerveja em casa; a primeira leva deve chegar junto de Olívia, em junho
            Acabo de receber o e-mail da "Sinnatrah Cervejaria-Escola" e tremo de felicidade: agora mesmo, enquanto derramo sobre o teclado estas maltraçadas linhas, aguarda-me num pequeno galpão em Perdizes o tão desejado kit; dois panelões de alumínio, um moedor de cereais, uma serpentina resfriadora, um termômetro, um galão de plástico, um afixador de tampinhas e outras quinquilharias que, daqui em diante, me permitirão produzir e beber minha própria cerveja -se isso não for a mais perfeita tradução de "sustentabilidade", não sei o que poderia ser.
            Sábado passado, fiz o curso. Um dia inteiro no qual eu e uns outros 15 empolgados neófitos ajudamos o professor a preparar 20 litros de uma "American Pale Ale" -desde a moagem da cevada, passando pelo cozimento, adição do lúpulo, até a armazenagem no galão fermentador. Agora mesmo, enquanto derramo sobre o teclado estas maltraçadas linhas, nosso mosto está lá, repousando no pequeno galpão em Perdizes, aguardando que as leveduras, essas belas criaturas de Deus, levem a cabo sua nobre missão: transformar o açúcar do malte em álcool e CO2.
            O mais legal de produzir cerveja em casa é que, ao contrário do vinho, do ketchup ou dos cortes de cabelo "homemade" -iniciativas louváveis, certamente, mas de resultados sempre discutíveis-, a versão amadora desta simples mistura de água, malte, lúpulo e levedura, se preparada no capricho, fica melhor do que as opções disponíveis no mercado. Pelo menos, no nosso mercado, em que, tirando as ousadias de algumas bravas microcervejarias, o que vemos são diversos rótulos oferecendo as mesmas idênticas e insossas bebidas.
            Embora o "homebrewing" tenha existido desde sempre, a moda explodiu mesmo a partir dos anos 70, nos EUA, quando o presidente Jimmy Carter derrubou um resquício da Lei Seca que proibia os americanos de se aventurarem em suas cozinhas pelo fascinante mundo da cevada. Dali pra frente, muitos se profissionalizaram e hoje há por lá 15 mil microcervejarias criando receitas próprias, reavivando estilos europeus esquecidos havia séculos e levando a adição de lúpulo a níveis deliciosamente intoleráveis.
            O lúpulo é uma trepadeira cuja flor dá o amargor e parte do aroma à cerveja. Com qualidades antibióticas, ajuda também a preservar a bebida. Daí que, para proteger as cervejas destinadas às colônias, aonde chegavam após longas viagens de navio, os ingleses as preparassem com mais álcool e mais lúpulo. Assim nasceu a Indian Pale Ale (mais conhecida como IPA), estilo bem amargo e preferido de nove entre dez cervejeiros caseiros.
            Não fujo à regra: minha receita inaugural será uma IPA. Se tudo der certo, a primeira leva virá à luz no fim de junho, ao mesmo tempo em que outra produção, na qual minha mulher vem trabalhando com afinco há oito meses, der o ar de sua graça. Agora mesmo, enquanto derramo sobre o teclado estas maltraçadas linhas, Olívia recebe os últimos retoques e ganha peso, no conforto de uma barriga rotunda e bela, aguardando a hora de lançar ao mundo o seu brado retumbante. Será recebida com amor, carinho e 20 litros da "Olívia IPA". Peço aos amigos que tragam charutos, fraldas -e venham de táxi.

            quarta-feira, 8 de maio de 2013

            Antonio Prata

            folha de são paulo

            O agudo e a crônica

            DE SÃO PAULO

            Ontem, zapeando, dei com um documentário sobre Lacan, o lacônico psicanalista francês. Dizia o programa que o terapeuta não marcava hora para as consultas: se às três da manhã um paciente despertasse de sonhos intranquilos sentindo-se metamorfoseado num monstruoso inseto, poderia telefonar-lhe, cruzar Paris de pantufas e aparecer para um rápido divã. Rápido é maneira de dizer, pois Lacan tampouco pré-determinava a duração das sessões. O insone talvez ficasse escarafunchando suas caraminholas até que os róseos dedos da aurora viessem tamborilar sobre o negrume de seu inconsciente, ou talvez fosse mandado de volta para casa cinco minutos depois de chegar, caso verbalizasse algo prenhe de significado, como, digamos: "Sonhei que estava na Carvalho Pinto, em cima de um obelisco, fumando um charuto bem glande... Eu disse glande?!".
            Sei pouco sobre psicanálise, menos ainda a respeito de Lacan, mas esta ideia de que as angústias e aflições deveriam ser servidas quentes, não levadas para alguma geladeira da consciência e de lá tiradas somente às terças e quintas, 15h45, ou às quartas e sextas, às 16h30, já murchas ou decantadas pelo refrigério da razão, remeteu-me a um outro assunto, que me é caro: a crônica.
            Num mundo ideal, o cronista funcionaria como o paciente de Lacan. Ficaria por aí, tocando sua vida, indo ao banco, almoçando no quilo, olhando vitrines atrás de um presente de Dia das Mães, até que surgisse uma ideia. Imediatamente, ele encontraria uma praça, se acomodaria num banco --se possível fosse, até alugaria um quartinho de hotel--, tiraria o laptop da mochila e escreveria seu texto, com todos os ingredientes colhidos na hora.
            Um romancista não precisa levar o laptop na mochila. Suas ideias podem amadurecer antes de ir para o papel. Ele está contando uma longa história, é bom que tenha algumas pistas de para onde está indo. Já o cronista, quanto mais cego ao iniciar seu passeio, maiores as chances de conhecer lugares novos no caminho.
            Outro dia, num jantar, meu amigo Humberto Werneck contou-me de um comentário de Manuel Bandeira a respeito de Rubem Braga: "Braga é sempre bom; quando não tem assunto, então, é ótimo". Claro, pois nesses textos em que o tema não está dado, é como se acompanhássemos o escritor, de pantufas, no meio da noite, atravessando sua Paris interior, matutando sobre suas angústias, seus alumbramentos. É como se o víssemos deitar-se no divã, ouvíssemos seu relato, suas queixas, suas hipóteses, até que, num ato falho, numa gaguejada, numa repetição ou silêncio mais longo, o assunto se materializasse --não no papel, mas na cabeça do analista, isto é, do leitor.
            É o caso, por exemplo, de um dos textos mais bonitos de Braga, um dos textos mais bonitos que eu já li: "Sizenando, a vida é triste". O que parece uma reflexão dispersa na cozinha, umas voltas em torno de um radinho de pilha, revela-se um comentário arrasador sobre o amor e a solidão. Não é o caso, por exemplo, deste texto: às vezes, um charuto é apenas um charuto, uma crônica é apenas uma crônica --nem todo mundo pode ser Rubem Braga, nem todo mundo consegue ser tão glande.
            Eu disse glande?!
            Antonio Prata
            Antonio Prata é escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" (editora 34). Escreve às quartas na versão impressa de "Cotidiano".

            quarta-feira, 1 de maio de 2013

            Encarte - Antonio Prata

            folha de são paulo

            Curiosos são os caminhos do devaneio: é por ir longe demais na minha cabeça que ele volta ao ponto de partida
            Vez por outra, com o jornal nas mãos, à mesa do café, percebo que meus olhos escaparam da alta da inflação e foram parar num Jogo de Panelas Firenze ("0+5 X de R$ 29,99, sem juros"), correram da refrega entre o Congresso e o STF e refugiaram-se numa costelinha suína ("só R$ 7,90 o quilo!"), atravessaram os assentamentos israelenses e descansam numa posta de bacalhau da Noruega ("na compra de 5 kg, grátis uma garrafa de azeite Minhoto, 275 ml").
            Ao acusar o deslize, censuro-me, como quem, durante uma aula, se distrai com as pombas do lado de lá da janela. No ato, volto para a inflação, para as brigas milenares ou a picuinha semanal: afinal, como todo leitor de jornal, sinto que estou resolvendo, entre a torrada e o mamão, os grandes problemas da humanidade.
            Há dias em que, sem dificuldade, o pendor cívico ignora as piscadelas da costelinha. Em pouco mais de meia hora, derrubo Kim Jong-un e suas obscenas bochechas, digo aos republicanos algumas verdades sobre a venda de armas, escalo o time do Corinthians e vou escovar os dentes com a sensação de dever cumprido: se este mundo vai mal, não é por minha culpa; fosse ele governado a partir desta cozinha, pros lados de Cotia, estaríamos todos salvos.
            Há dias, contudo, em que os apelos da janela superam a gravidade da lousa e perco boa parte da manhã flanando por mortadelas e limões, peças de acém e filés de tilápia. Ignoro carros e televisões, laptops e geladeiras: prefiro os encartes chinfrins, de supermercado. Talvez, a impossibilidade de comprar um Tucson, assim, no início de uma quarta-feira, impeça o devaneio, tão mais fácil entre as prosaicas coxas de frango, que descansam sobre uma tábua de madeira, tendo como adorno um único ramo de salsinha.
            Das coxas de frango passo para as linguiças, das linguiças para a fraldinha e, quando dou por mim, já estou organizando um churrasco no playground de meu córtex. Valem mais a pena essas cervejas de litro ou as latinhas? As de litro estão baratas, tão baratas que, sem perceber, não é mais um churrasco que planejo, mas as compras de uma viagem de fim do ano. Vejo-me pegando dez engradados, oito pacotes de pão integral, três quilos de peito de peru e, embora jamais tenha feito moela, seis bandejas dos miúdos de frango --o Paulinho ou o Fabrício saberão como preparar.
            Curiosos são os caminhos de um devaneio: é por ir longe demais na esfera de minha cabeça que ele volta ao ponto de partida; a quantidade de comida e bebida me faz vislumbrar a casa imunda, a casa imunda me leva pro Pinho Sol, pra cândida, pro Veja, e, depois de longos segundos decidindo-me entre as vassouras de piaçava e as de plástico, sinto saudades da inflação, do rame-rame institucional, do murundu na Palestina. Afinal, se é para resolver os problemas do mundo, mesmo que só neste estreito território entre minhas orelhas, melhor salvar vidas no Oriente Médio do que limpar o chão de uma varanda inexistente, no dia seguinte a um churrasco que nunca aconteceu. Além do que, dezembro está longe, hoje à noite o Corinthians pega o Boca e ainda não decidi se começamos o jogo com o Pato ou o guardamos para o segundo tempo. Não são poucas as decisões tomadas nesta cozinha.

            quarta-feira, 24 de abril de 2013

            Descriminalização das drogas - Antonio Prata

            folha de são paulo

            Dos 15 aos 20 e poucos anos, fumei maconha pelo menos uma vez por semana. Confesso que nem achava muito bom, era o típico cara que fuma só porque está todo mundo fumando; ficava mais confuso do que relaxado, sem saber se punha as mãos nos bolsos ou cruzava os braços, se ia ouvir Pink Floyd no escuro ou comer melancia com ketchup. Finda a adolescência, percebi que a cannabis não era mesmo a minha e parei. Não tive que tomar nenhuma atitude drástica, reunir força de vontade, buscar ajuda: simplesmente deixei de usar e não senti a menor falta.
            Não estou dizendo que maconha não vicia. Entre os vários amigos meus que a consomem regularmente um é viciado. É advogado tributarista, casado, pai carinhoso e fuma umas duas vezes por dia. Compare-o a um alcoólatra e fica claro que, mesmo no pior cenário, os males da maconha são menos graves do que os de uma droga lícita.
            Não estou afirmando, tampouco, que a maconha não faz mal. Certamente esse amigo que fuma diariamente tem mais chances do que eu de, no futuro, desenvolver um câncer de pulmão --e mais dificuldade para, de manhã, se lembrar de onde colocou as chaves--, mas a escolha é dele. O pulmão e as chaves, também.
            A vida é muitas vezes chata, é quase sempre dura, é definitivamente curta. Por isso uns bebem, outros fumam, ingerem mais gordura saturada do que recomenda a Organização Mundial da Saúde e há até quem salte de asa-delta, sem que o Estado se meta em suas vidas.
            Tudo isso posto, fiquei muito contente, semana passada, ao encontrar nos jornais, entre Felicianos e Malufs, vans e panelas de pressão, a notícia de que sete ex-ministros da Justiça encaminharam ao STF uma carta recomendando a descriminalização do uso de drogas.
            Que a maconha deveria ser legalizada já, plantada e fumada por quem quisesse, não tenho a menor dúvida. Quanto às outras drogas, é preciso analisar bem como proceder, para que não se resolva apenas o lado do consumidor do asfalto, mantendo a tragédia do tráfico nos morros e periferias.
            Felizmente, além dos ex-ministros, há muita gente gabaritada pensando em como desatar esse nó. Ano passado, foi criada a Rede Pense Livre (migre.me/efd02), um grupo apartidário, com membros de diversas áreas --da antropologia ao mercado financeiro, da direita e da esquerda; gente de terno, de piercing, de terno E de piercing--, cujo objetivo é rediscutir a atual política brasileira referente às drogas --e mudá-la. Parte da premissa de que a estratégia atual, a guerra, não funcionou e propõe a descriminalização.
            O mal que a "guerra às drogas" causa à sociedade é infinitamente superior aos danos que as substâncias causam a seus indivíduos. Hoje, mais de 130 mil pessoas (1/4 da população carcerária brasileira) estão na cadeia por alguma relação com entorpecentes; são jovens, em grande parte, cujos futuros o contribuinte paga caro para arruinar, mantendo-os atrás das grades.
            Deixemos os presídios para quem mata, quem estupra, quem desvia dinheiro público e deposita nas ilhas Jersey: não para quem precisa de tratamento médico ou nem isso, quem só quer esquecer um pouco dos problemas, ouvir Pink Floyd e --por que não?-- comer melancia com ketchup.
            Antonio Prata
            Antonio Prata é escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" (editora 34). Escreve às quartas na versão impressa de "Cotidiano".

            quarta-feira, 17 de abril de 2013

            Estado de graça - Antonio Prata

            folha de são paulo


            Não sei se são os hormônios, a emoção ou as toxinas liberadas pelo bebê, mas é fato que durante a gravidez as mulheres padecem de um, digamos assim, "handicap" cognitivo. As queixas variam de gestante para gestante: há quem fique esquecida, quem funcione mais devagar; uma amiga relatou sérias dificuldades para acompanhar a trama de "Rei Leão", enquanto outra foi encontrar as chaves do carro "guardadas" no congelador --a forma de gelo, ela procura até hoje.
            Para a glória e felicidade deste que vos escreve, minha mulher vem enfrentando, há sete meses e uma semana, semelhantes situações. Digo glória e felicidade não apenas pela paternidade que se aproxima, resgatando-me desta vil existência mortal e cadastrando-me na eternidade, mas porque, devido ao supracitado torpor gestacional, uma inédita mudança ocorreu no córtex cerebral de minha amada: ela deu para me achar engraçado.
            Por seis anos, usei de todos os artifícios para fazê-la rir --embalde. Não que ela seja triste ou lhe falte humor, longe disso, é que se trata de uma pessoa mais refinada do que eu --ou, pelo menos, do que minhas piadas. Gosta de ir a balés, a exposições, adora filmes de países remotos, em que há mais diálogos do balido das cabras com o silvo do vento do que entre seres humanos. Não estou sendo irônico: admiro muito seu gosto e toda vez que, procurando algo em nosso iPod, tropeço num Tchaikovsky ou esbarro num Chopin, percebo o quanto ela me fez crescer, evoluir. Não fosse ela, eu ainda estaria por aí --de moletom, provavelmente-- dizendo coisas como: "É pavê ou pacomê?!".
            Ter em casa tão implacável crítica fez de mim, modéstia à parte, um Stalone em "Rocky IV" treinando na neve, um Daniel San em "Karatê Kid" pintando muros: ensinou-me a ver na adversidade os halteres do espírito. Espírito que, hoje, fortalecido, evita, por exemplo, mesmo que sob fortíssima tentação, terminar o presente parágrafo com "Win Wenders e aprendendo".
            Ou melhor, evitava, pois veio a gravidez e, num de seus muitos passes de mágica, mudou tudo. Se antes, em meus melhores momentos seinfeldianos, merecia no máximo um sorriso, hoje arranco aplausos com qualquer tirada de "Zorra Total". Os halteres enferrujam na área de serviço de minh'alma. Tô pior que tio bêbado em festa de família; é do pavê pra baixo --e só sucesso.
            Que sábia a natureza: durante anos, todo mês, manda a TPM para a mulher, aguçando seu senso crítico, como se lhe sussurrasse: "Tem certeza de que é esse aí o cara ideal para propagar os seus genes?". Após a fecundação, contudo, sabendo da necessidade de um companheiro para trazer javalis abatidos, fraldas descartáveis e apoio moral, os hormônios baixam radicalmente os critérios, como se sugerissem à moça, em relação ao marido: "Se só tem tu, vai tu mesmo!". Ainda que "tu" seja esse cara aí no chuveiro, cantando "Mama Áustria", um velho clássico do "Casseta & Planeta", e, veja só, lucrando uma bela gargalhada.
            Filhota, prometo fazer tudo o que estiver ao meu alcance para ser um bom pai. Uma coisa, contudo, garanto: serei um pai engraçado. Pergunte à sua mãe --de preferência, quando ela estiver grávida do próximo.
            Antonio Prata
            Antonio Prata é escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" (editora 34). Escreve às quartas na versão impressa de "Cotidiano".