Curiosos são os caminhos do devaneio: é por ir longe demais na minha cabeça que ele volta ao ponto de partida
Vez por outra, com o jornal nas mãos, à mesa do café, percebo que meus olhos escaparam da alta da inflação e foram parar num Jogo de Panelas Firenze ("0+5 X de R$ 29,99, sem juros"), correram da refrega entre o Congresso e o STF e refugiaram-se numa costelinha suína ("só R$ 7,90 o quilo!"), atravessaram os assentamentos israelenses e descansam numa posta de bacalhau da Noruega ("na compra de 5 kg, grátis uma garrafa de azeite Minhoto, 275 ml").
Ao acusar o deslize, censuro-me, como quem, durante uma aula, se distrai com as pombas do lado de lá da janela. No ato, volto para a inflação, para as brigas milenares ou a picuinha semanal: afinal, como todo leitor de jornal, sinto que estou resolvendo, entre a torrada e o mamão, os grandes problemas da humanidade.
Há dias em que, sem dificuldade, o pendor cívico ignora as piscadelas da costelinha. Em pouco mais de meia hora, derrubo Kim Jong-un e suas obscenas bochechas, digo aos republicanos algumas verdades sobre a venda de armas, escalo o time do Corinthians e vou escovar os dentes com a sensação de dever cumprido: se este mundo vai mal, não é por minha culpa; fosse ele governado a partir desta cozinha, pros lados de Cotia, estaríamos todos salvos.
Há dias, contudo, em que os apelos da janela superam a gravidade da lousa e perco boa parte da manhã flanando por mortadelas e limões, peças de acém e filés de tilápia. Ignoro carros e televisões, laptops e geladeiras: prefiro os encartes chinfrins, de supermercado. Talvez, a impossibilidade de comprar um Tucson, assim, no início de uma quarta-feira, impeça o devaneio, tão mais fácil entre as prosaicas coxas de frango, que descansam sobre uma tábua de madeira, tendo como adorno um único ramo de salsinha.
Das coxas de frango passo para as linguiças, das linguiças para a fraldinha e, quando dou por mim, já estou organizando um churrasco no playground de meu córtex. Valem mais a pena essas cervejas de litro ou as latinhas? As de litro estão baratas, tão baratas que, sem perceber, não é mais um churrasco que planejo, mas as compras de uma viagem de fim do ano. Vejo-me pegando dez engradados, oito pacotes de pão integral, três quilos de peito de peru e, embora jamais tenha feito moela, seis bandejas dos miúdos de frango --o Paulinho ou o Fabrício saberão como preparar.
Curiosos são os caminhos de um devaneio: é por ir longe demais na esfera de minha cabeça que ele volta ao ponto de partida; a quantidade de comida e bebida me faz vislumbrar a casa imunda, a casa imunda me leva pro Pinho Sol, pra cândida, pro Veja, e, depois de longos segundos decidindo-me entre as vassouras de piaçava e as de plástico, sinto saudades da inflação, do rame-rame institucional, do murundu na Palestina. Afinal, se é para resolver os problemas do mundo, mesmo que só neste estreito território entre minhas orelhas, melhor salvar vidas no Oriente Médio do que limpar o chão de uma varanda inexistente, no dia seguinte a um churrasco que nunca aconteceu. Além do que, dezembro está longe, hoje à noite o Corinthians pega o Boca e ainda não decidi se começamos o jogo com o Pato ou o guardamos para o segundo tempo. Não são poucas as decisões tomadas nesta cozinha.
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