domingo, 11 de agosto de 2013

Antonio Prata

folha de são paulo

Linha cruzada

DE SÃO PAULO
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Num saloon, na periferia da TV a cabo, lá pelo canal 467, depois do PPV 22, da TV Coreia e do Discovery Corte & Costura, o caubói dublado toma seu uísque. Pela porta basculante, a gostosa em filme nacional dos anos 70 entra esbravejando:
-- Que lugar é esse, bicho? Cadê o Marquinho, poaaaaarra?!(A gostosa em filme nacional dos anos 70, nem preciso dizer, tem forte sotaque carioca.)
O caubói dá um gole e, sem olhar pro lado, diz:
-- Sabe, pequena, lá de onde eu venho as damas não costumam falar deste modo.
-- Qualé, bicho?! Abaixo a repressão! Você parece o meu velho! Responde, poaaaarra: tu viu um cabeludo, blusa de batique, violão no ombro? O nome dele é Marquinho...
-- Nunca vi este Mckinsey, senhorita. E mesmo que tivesse visto, se ele for o seu marido, eu iria manter meu bico fechado.
-- Marido?! Corta essa! Casamento já era, sacou? Eu transo liberdade, entendeu?
-- Não. Mas quanto menos entendo o que diz essa boca, mais me interesso por ela. Que tal esquecer este Mckinsey e irmos até minha choupana? Algo me diz que uma senhorita com o seu linguajar apreciaria alguns tragos de uísque.
-- Uísque, bicho? Que proposta mais pequeno burguesa! Uns tapinhas eu até dava, mas o poaaaarra do Marquinho tá com o meu fumo, meaaarrrrda!
-- Então o Mckinsey é um ladrão? Se você quiser, posso dar um jeito nele.
-- Que papo é esse?! Tu é milico? Tu tá parecendo um milico! Milico de meaaarrrrrda! Diz, tu é milico ou não é?!
-- Não sei o que é isso, pequena, mas tenho certeza de que não sou. Barman, acho que esta senhorita está precisando de um trago. O barman enche um copo de uísque.
-- Tu jura que não é milico?
-- Sim. E tem duas coisas que aprendi com meu velho pai: a nunca jurar em falso e sempre ser gentil com as damas. Ela vira o uísque num gole, se senta, apoia os cotovelos no balcão, cobre o rosto.
-- Poaaaarra, o Marquinho é foaaaada! Vive dizendo que tá de saco cheio de transar essa caretice de escritório, que o sonho dele era largar tudo e ir morar comigo lá em Arembepe, criar nossos filhos com o pé na areia, mas no dia que a gente combinou de ir embora, ele some, poaaaarra!
-- Bem, pequena, às vezes as pessoas não são quem elas parecem ser.
-- É isso aí! Tu tá por dentro, bicho! O Marquinho diz que quer destransar esse lance de consumo, desneurotizar do individualismo, mas ele é igualzinho o pai dele! Burguesinho de meaaarrrrda! O que ele quer é dinheiro na conta e um Corcel na garagem!
-- Dinheiro eu não tenho, mas o meu corcel está amarrado aí na frente. A minha proposta continua de pé. Vamos até a minha choupana? Fica no alto da colina, a meia légua daqui.
-- Corta essa, tá? Já saquei o teu papo quadrado! Você só quer me possuir, como um produto! A revolução tem que ser aqui dentro, sacou? --bate com o indicador na própria cabeça. -- Enquanto a gente não derrubar essa ditadura --continua apontando a cabeça--, não adianta nada derrubar os milicos! Aqui pra você, ó!
Ela levanta a blusa, mostra os peitos para o caubói e sai pela porta do saloon, esbaforida.
Enquanto isso, no castelo de Grayskull, He-Man, Mentor, Teela e Gorpo prometem a Marquinho que farão de tudo para encontrar sua namorada.
antonio prata
Antonio Prata é escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" (editora 34). Escreve aos domingos na versão impressa de "Cotidiano".

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