Uma reforma política é inútil se não fizermos uma reforma cultural; a corrupção nos atravessa de cima a baixo
Quando veio a carta do Detran informando que minha habilitação havia sido suspensa, fiquei mais chateado do que surpreso. Havia meses que as multas chegavam, quase toda semana, e eu não tomava nenhuma providência. Bem, eu estava apaixonado. A maioria dos pontos, aliás, vinha da mesma infração: estacionar sem Zona Azul em frente ao prédio da minha namorada. Sabe como é, começo de relação: chegávamos lá toda noite, empolgados, um sugeria parar o carro no estacionamento dois quarteirões abaixo, o outro dizia "Bobagem, deixa aí, amanhã eu acordo antes das sete e tiro", subíamos aos beijos e só acordávamos quando o sono e a CET já haviam passado.
Com dúvidas sobre as burocracias, fui a um grande despachante na zona oeste de São Paulo. A atendente puxou minha ficha: "Olha só, você tá com 61 pontos. Ia ter que ficar um ano sem dirigir, tá? Mas por R$ 1.500, em um mês, a gente te entrega a carta, zerada. É R$ 800 pra gente e R$ 700 pro Detran". "Sei, você tá me propondo subornar um cara no Detran pra me livrar da pontuação?" Longo silêncio e: "Veja bem, no caso, é mais assim uma taxa de urgência, senhor".
Liguei para outros cinco despachantes, todos me ofereceram o mesmo esquema. Aparentemente, só havia duas opções: ou eu subornava um despachante para que ele não subornasse ninguém, ou tomava coragem, respirava fundo e ia pessoalmente à toca do dragão.
No Disque Detran, uma mulher me mandou ir à rua Boa Vista, 221, levando a CNH original, cópias do RG, do CPF e de comprovante de residência. Fiquei desconfiado: não podia ser assim tão fácil --e não era. No número 221 da rua Boa Vista, uma funcionária me informou, com um prazer quase sexual: "Aqui a gente nem atende o público, querido! Entrega de CNH é na avenida do Estado, 900".
Só quem leu a "Divina Comédia", de Dante, pode ter um pálido vislumbre do inferno que se esconde na avenida do Estado, 900. Hordas de desesperados zanzavam de um lado pro outro. Famílias dormiam pelos cantos. Numa sala de espera, apenas 5 de 24 cadeiras (eu contei) estavam em condições de uso. Uma mãe, sentada no chão, amamentava seu recém-nascido. Havia manchas assustadoras pelas paredes e, se não me engano, ouvi sons de chicote, estalos de ossos e gritos vindos de alguma masmorra adjacente.
Felizmente, minha tortura resumiu-se a uma longa fila e a ser barbaramente informado, após uma hora e meia, que não aceitavam cópias do RG e do CPF. "Mas eu liguei no Disque Detran!" A moça me olhou, suspirou e, feliz com esses breves momentos de alegria que seu emprego lhe oferece, bradou por sobre o meu ombro: "Próximo!". O oitavo (juro) despachante para quem liguei aceitou, por uma fábula, "quebrar o meu galho" dentro da lei.
Quem acumula 61 pontos na carta não pode dar lição de moral. Não é essa a minha intenção, muito pelo contrário: neste momento em que nos levantamos contra a roubalheira dos políticos, seria bom que os dedos em riste também escarafunchassem um pouquinho as nossas consciências. Uma reforma política é inútil se não fizermos uma reforma cultural. A corrupção nos atravessa de cima a baixo: do financiamento das campanhas à compra de CNHs --passando, evidentemente, pelo carro do motorista apaixonado estacionado em local proibido.
CNH's, pirataria, ma fé... o típico jeitinho brasileiro.
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