terça-feira, 2 de julho de 2013

Clovis Rossi

folha de são paulo
Quando a rua é golpista
A praça Tahrir está substituindo o Parlamento e chamando os militares de volta ao poder
Nesta hora em que se tornou praticamente compulsório tomar a voz das ruas como a de Deus, é bom deixar claro que há momentos em que a rua é golpista. No Egito, é assim.
A praça Tahrir, que foi o ponto de encontro que derrubou a ditadura de Hosni Mubarak há dois anos, agora lançou-se abertamente à deposição de Mohammed Mursi, o primeiro presidente eleito democraticamente na história egípcia.
"A praça Tahrir é o verdadeiro Parlamento, e é nela que um voto de desconfiança ao presidente está sendo dado", escreve Boaz Bismuth, para o conservador jornal israelense "Israel Hayom".
Essa anarquia provoca uma inversão das alianças feitas para derrubar Mubarak: naquela ocasião, os jovens liberais e de esquerda que lideravam os protestos aceitaram a tímida adesão da Irmandade Muçulmana contra um regime que tinha o respaldo das Forças Armadas (até que os Estados Unidos retiraram o apoio ao ditador).
Agora, os jovens liberais e de esquerda pedem que os militares destronem Mursi, que saiu dos quadros da Irmandade Muçulmana.
Nem é um apelo disfarçado. O socialista Hamen Sabbahi, um dos dois grandes líderes da oposição (o outro é Mohammed ElBaradei) incitou o Exército a intervir para "fazer respeitar a vontade do povo". O Exército ouviu e deu prazo de 48 horas ao presidente para atender a rua.
Vamos ser claros: é golpe. Não se inventou ainda outra maneira de medir "a vontade do povo" que não seja a velha e boa eleição livre e justa. No Egito ou no Brasil.
A de Mursi foi assim, pela primeira vez na história do Egito. Só outra consulta similar pode anulá-la.
Que a gestão do presidente não foi propriamente brilhante não há dúvida. O crescimento nos primeiros nove meses do presente ano fiscal foi de apenas 2,3%, insuficiente para um país que já vinha em crise no final do período Mubarak. O desemprego, em consequência, subiu de 12,5% no primeiro trimestre de 2012 para 13,2% em 2013.
O deficit fiscal aumentou 48% na comparação com o ano anterior e o endividamento externo já bateu em 80% do Produto Interno Bruto.
Um mau desempenho econômico deve servir como propaganda para a oposição, mas não para derrubar um presidente legítimo, ainda mais um que está há apenas um ano no cargo e teve uma herança maldita.
O Ocidente, que deu apoio à derrubada de Mubarak, repetirá a sustentação agora que a vítima será um presidente legítimo?
Seria um erro. A Irmandade Muçulmana de Mursi tem sólida e antiga implantação popular. Velha de 85 anos no Egito, substituiu o Estado junto a setores populares de que sucessivas ditaduras jamais cuidaram devidamente. É por isso que ganhou a eleição há um ano.
Aliás, vale a mesma observação para países vizinhos também afetados pela chamada Primavera Árabe, que resultou na ascensão dos braços da Irmandade em cada um deles. Ou seja, ganharam pela presença constante, não pela suposta ou real agenda islamita de que tanto se desconfia no Ocidente.
Interditar a Irmandade "manu militari" equivale, pois, a revogar a Primavera.
crossi@uol.com.br

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