A primavera acaba em sangue
O massacre devolve o Egito à condição de ditadura militar e interdita a democracia
Mudam só os nomes: ontem era Hosni Mubarak, agora é Abdul Fatah al-Sisi, chefe das Forças Armadas, o verdadeiro dono do poder, embora o presidente nominal seja um fantoche civil.
Na verdade, a ditadura se instalou quando foi derrubado o presidente legítimo, o islamita Mohammed Mursi, conforme já foi dito aqui em "Pinochetazo à moda árabe" (folha.com/no1310122).
Mas ainda se preservava a forma, o que ruiu por completo ontem.
O que está em curso é a velha tendência de interditar o islamismo, com o que se interdita, na verdade, a democracia.
Na democracia, governa a maioria, com o perdão pela obviedade. E, nas eleições, o braço político da Irmandade Muçulmana e os islamitas mais radicais da Al Nour ficaram com 65% dos votos, enquanto os grupos seculares/liberais não passaram de 15%.
Que os militares, que mantiveram a Irmandade na clandestinidade a maior parte de seus 80 e poucos anos de vida, queiram repetir o esquema já é condenável, mas pelo menos é explicável.
É o eterno braço de ferro entre as duas grandes forças egípcias.
Mas é escandaloso que os liberais tenham se juntado aos militares para golpear a democracia.
Veja-se o que escreve Steven Cook, do Council on Foreign Relations, especialista na região:
"O fato de alguns grupos revolucionários [os da Primavera Árabe] e ativistas da democracia, que se consideram liberais, terem feito causa comum com os remanescentes do antigo regime e com os militares mina sua pretensão de serem democráticos. E também faz deles, se não forem cuidadosos, peões potenciais em um jogo que forças antirrevolucionárias estão jogando com o intuito de restaurar alguma aparência da velha ordem".
Que se trata de uma volta ao passado, fica ainda mais evidente pela análise feita por Hossam Bahgat, diretor da Iniciativa Egípcia pelos Direitos Individuais, ainda antes do massacre de ontem:
"Algumas pessoas pensam que o regime policial de Mubarak foi desmantelado, o que é falso. Ele continuou durante a transição militar [entre a queda de Mubarak e a eleição] e, depois, com o presidente Mohammed Mursi. Durante todo esse tempo, nenhuma ação foi tomada para a reforma da instituição policial e dos programas ensinados na academia de polícia. Da mesma forma, nenhuma medida foi tomada contra os oficiais acusados de violação dos direitos do homem."
O massacre de ontem pode provocar uma "forte condenação", como diz a nota oficial da Casa Branca, mas não deveria provocar surpresa ante a preservação de um estamento militar habituado à violência desde sempre.
Por falar na nota da Casa Branca, é patético "urgir o governo do Egito --e todas as partes no Egito-- a evitar a violência e resolver suas diferenças pacificamente."
Equivale a pôr no mesmo pé quem entrou com o sangue e quem entrou com as balas.
crossi@uol.com.br
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