sábado, 3 de novembro de 2012

A Rússia e o Brasil - Jonathan Nossiter


O Globo - 03/11/2012

Acabo de retornar de uma deliciosa, se não surreal,
visita à Moscou onde fui convidado a falar durante
uma feira de vinhos e filmes. Como muitos
nascidos nos anos 1960, eu cresci imaginando
que poderia visitar a Rússia livremente. Finalmente
com a chance de falar a partir do front
soviético, eu me pergunto se não vi um espelho convexo do
modo como somos no Brasil, na América do Norte e na Europa
Ocidental.

É aceito que na França e na Itália todos têm uma relação historicamente
ininterrupta com a cultura e o beber vinho (embora
a realidade seja muito mais complicada desde que a globalização
criou fissuras culturais nos dois países). Também é dito
que, no entendimento e no uso do vinho à mesa nos Estados
Unidos, África do Sul, Austrália, Chile e Argentina, as pessoas
ainda são um tanto adolescentes. Elas alternam entre momentos
de maturidade e outros de mal-comportamento infantil.
Isso se explica pela presença adolescente (em termos históricos)
da produção e do consumo nesses países: uma média de
100-200 anos lá, em comparação com os vários milhares de
anos em muitas partes da Europa Ocidental. Onde isso deixa
países como o Brasil, a China e a Índia, que são recém-nascidos
na produção e no consumo do vinho? E o que podemos dizer
sobre a Rússia, com seu passado singular?

Até a Revolução de 1917, o hábito de beber vinho pertencia
exclusivamente à aristocracia, mesmo que o cultivo de uvas no
Norte do Cáucaso, ao longo do Mar Negro, tenha existido por
milênios. Abandonado pelos soviéticos e, depois, alternadamente
revivido e brutalmente reprimido, o vinho saiu de férias
forçadas por 70 anos. Com a queda da União Soviética e o súbito
fluxo do capitalismo cowboy (violento, imprevisível e despreocupado
com os detalhes civis), o vinho se tornou um objeto de
desejo para os oligarcas e as classes inferiores na luta pela ascensão
social.

Como tudo isso me pareceu enquanto estive lá? Em uma
espaçosa fábrica de chocolate do século XIX — agora convertida
no lugar da moda e chamada (sem nenhuma ironia) de Outubro
Vermelho — podemos experimentar clubs, galerias de
arte e restaurantes com modelos provocantes fotografando (na
hora das refeições!). Examinei a carta de vinhos de um italiano
espaçoso, mas sem brilho excessivo (achar comida russa foi
uma odisséia). A maior parte dos vinhos eram industriais: franceses,
italianos e espanhóis, que, em seus países, são encontrados
apenas nos lugares cínicos. Enquanto um Hugel gewurztraminer
da Alsácia — uma garrafa bebível, mas industrial — custaria
20 euros na França, em Moscou você pagaria 75 euros. De
fato, a maioria dos vinhos na carta eram garrafas convencionais
que custavam entre 75 e 300 euros. Disseram-me que os custos
do transporte são significativos, mas não são os responsáveis
por esta alta do preço no estilo “Velho Oeste”. É uma combinação
de taxas de importação draconianas e protecionistas com
as margens de lucro inescrupulosas praticadas por restaurateurs
e as poucas empresas que controlam a maior parte das
importações. Exatamente como no Brasil!


Eu sentia que pessoas estavam
ávidas para compreender as
práticas do vinho da Europa.


Como no Brasil, um vinho de real qualidade e individualidade,
que custa entre 10 e 15 euros na Itália, ficará entre 100 e 150
euros na carta de um restaurante em Moscou — ou São Paulo.
Há uma enxurrada de dinheiro novo na Rússia (e no Brasil) e
pessoas com acesso a isso querem participar da grande festa
consumista (antes que ela fracasse). Então, elas gastam sem
medo das consequências com os chamados produtos de luxo. É
uma maneira de afirmar sua ascensão no que, nos dois países, é
visto com inveja e desejo: “a vida cultural europeia” (filtrada por
uma noção de valor americana). Nos dois lugares, onde a classe
média e os trabalhadores têm acesso negado à cultura do vinho,
a natureza convivial e democrática dessa bebida terá que esperar
por uma revolução do consumo, em que a antidemocrática
conspiração entre governo corrupto e práticas de negócios seja
derrotada.

Até que isso aconteça, temos sociedades em que a súbita
transformação da privação e do acesso fechado aos bens importados
em um portal de novas possibilidades, mas restrito à uma
pequena elite, pode apenas gerar uma embaraçosa imitação
dos valores de uma cultura importada. Ao menos no caso russo,
é marcante como os bebedores e produtores de vinho parecem
obsoletos em suas tentativas vinícolas. Na feira, as uvas dos
vinhos da Rússia, Moldávia, Ucrânia e outros países do Mar
Negro e do Cáspio, eram as suspeitas de sempre (cabernet,
chardonnay, merlot etc): agentes duplos para vinhos doces,
com muito álcool e gosto de baunilha e carvalho — moda no
passado, mas hoje recusados pela maior parte dos sommeliers
de Nova York, Paris e Milão (mas ainda empurrados por importadores
e críticos no Brasil).

Eu sentia que pessoas sinceras e inteligentes estavam ávidas
para compreender as práticas do vinho da Europa Ocidental,
mas compreendiam pela metade os valores históricos. Alguns
parecem ter feito a transição da era soviética para a atual sem
esforço: li no “Moscow Times” sobre a bem-sucedida transição
do ex-diretor dos restaurantes e cafeterias estatais soviéticos
para o mais bem-sucedido diretor do McDonald's na Rússia.

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