sábado, 3 de novembro de 2012

DRAUZIO VARELLA


Os últimos cem anos
A renascença do ceticismo provocou questionamentos sobre o papel da medicina na saúde pública
Duzentos anos atrás, as sangrias ainda estavam na moda. Era a época da medicina heroica, segundo a qual quanto mais grave a doença, mais agressivo o tratamento.
Na última coluna, falamos da resenha recém-publicada no "The New England Journal of Medicine", sobre a evolução da terapêutica médica desde que a revista entrou em circulação, em 1812. Mostramos que, até o começo do século 20, os tratamentos eram baseados num nebuloso equilíbrio que deveria existir entre os humores corpóreos (sangue, fleuma, bile amarela e bile negra) da pessoa enferma, e não no processo que a fazia adoecer.
Na metade do século 19, o ceticismo provocado pelos insucessos dessa estratégia despertou interesse crescente pelas causas das patologias.
Motivados pelos avanços na fisiopatologia e na bacteriologia, os médicos começaram a interpretar as doenças como entidades específicas, que apresentavam causas próprias e manifestações clínicas características.
O novo modelo levou-os a procurar tratamentos ajustados à enfermidade, sem agredir o paciente. A busca, no entanto, percorreu caminhos tortuosos que levariam décadas para encontrar o rumo.
Como vimos, a primeira pista viria do laboratório de Paul Ehrlich (1854-1915), em Berlim. Depois de 605 fracassos, Ehrlich e colaboradores sintetizaram o Composto 606, ativo contra a sífilis, que se tornou conhecido como Salvarsan. Era a primeira prova do conceito de que o tratamento deveria ser específico para cada patologia.
Muitos reagiram contra essa mudança de paradigma. Temiam que o enfoque na doença afastasse os profissionais do lado mais nobre: a arte de praticar medicina.
A revolução da terapêutica só tomaria corpo nas décadas de 1940 a 1960, período em que foram licenciados mais de 4.500 produtos novos: antibióticos, anti-hipertensivos, hipoglicemiantes, antidepressivos, hormônios e muitos outros.
Em 1961, um estudo mostrou que para cada dólar gasto com medicamentos, 70 centavos iam para remédios que não existiam dez anos antes.
O entusiasmo despertado pelas descobertas da indústria farmacêutica fez surgir novas formas de ceticismo. Nas páginas do "New England", apareceram termos como "selva terapêutica" e "lavagem cerebral" patrocinada pelo marketing da indústria.
Então, sobreveio a tragédia da talidomida. Prescrita como sedativo e no combate às náuseas da gravidez, a talidomida provocou defeitos graves na formação de braços e pernas de bebês pelo mundo todo. Em 1962, um editorial da revista afirmava: "Somente a vigilância continuada e intensiva pode prevenir a repetição dessa experiência".
A preocupação com a segurança deu origem às normas rígidas dos estudos fase 1, 2 e 3 exigidos atualmente para aprovação de novas drogas.
A renascença do ceticismo provocou questionamentos sobre o papel da medicina na saúde pública. Em 1962, Thomas McKewon publicou uma análise do número de casos de tuberculose na Inglaterra e País de Gales, mostrando que a incidência havia começado a cair antes mesmo da descoberta do bacilo de Koch. O declínio estaria associado à melhora da alimentação e das condições de moradia.
O entendimento de que a descoberta de remédios eficazes é condição necessária, mas não suficiente, para ter impacto na saúde pública, seria confirmado não apenas no combate às epidemias de Aids, sífilis, tuberculose ou malária, mas até no controle de doenças degenerativas como hipertensão arterial e diabetes.
Dos purgativos, sangrias e vomitórios prescritos para recompor o equilíbrio dos humores do paciente de 200 anos atrás, a medicina que chegou ao século 21 evoluiu para utilizar drogas mais seguras, desenvolvidas para interferir especificamente com os mecanismos moleculares envolvidos na fisiopatologia.
Como nas demais "revoluções terapêuticas" dos últimos dois séculos, outra vez o progresso estará longe de ser linear e contínuo. Haverá fases de entusiasmo alternadas com frustração e ceticismo.
À medida que a atenção médica se volta para as minúcias dos alvos moleculares, corremos risco de ficar mais expostos à abordagem reducionista de destruir germes, células malignas, trocar genes e reparar mecanismos defeituosos, sem levar em conta que a função primordial de nossa profissão é aliviar o sofrimento humano.

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