sábado, 3 de novembro de 2012

ENTREVISTA: STELLA MARIS REZENDE » Entre a palavra e o silêncio - Carlos Herculano Lopes


A literatura tem o poder de reinventar o mundo, afirma vencedora do Prêmio Jabuti 2012 


Carlos Herculano Lopes
ESTADO DE MINAS : 03/11/2012 


Os livros A mocinha do Mercado Central e A guardiã dos segredos de família lhe deram o primeiro e o segundo lugar na edição deste ano do Prêmio Jabuti. O que isso significou para você?
Ganhar o Jabuti, o mais prestigiado prêmio literário do Brasil, já é uma grande alegria, mas ganhá-lo em dobro é de fato uma enorme surpresa, um susto adorável. Além disso, me reanima a continuar um projeto estético iniciado há 33 anos. Já havia sido indicada três vezes, com O último dia de brincar (Prêmio João de Barro, em 1986) e Depende dos sonhos, ambos pela Editora Miguilim, e Alegria pura (Prêmio Bienal Nestlé de Literatura, em 1988). Agora, A guardiã dos segredos de família, que ganhou o Prêmio Barco a Vapor e foi lançado pela SM em 2011, conquista o segundo lugar do Jabuti na categoria livro juvenil. E A mocinha do Mercado Central, da Globo Livros (premiado com o João de Barro em 2008), lançado no ano passado, conquista o primeiro lugar. Meu Jabuti demorou, mas veio em dobro. Como dizem aí em Minas: isso é bom demais da conta. 

Como surgiu a ideia de escrever A mocinha do Mercado Central?
Quando começo uma história, não planejo nada. Gosto de me surpreender com uma palavra, uma cena, uma imagem, silêncios e mistérios. Vem uma ideia e enveredo por caminhos e brejos desconhecidos, até que o enredo comece a se delinear. Em A mocinha do Mercado Central, alguns nomes e seus significados me vieram à mente e, então, surgiu uma menina que sabe os significados dos nomes e resolve agir de acordo com eles, numa brincadeira entremeada de ironia e bom humor. Maria Campos, a protagonista, tem uma amiga de nome Valentina Vitória Mendes Teixeira Couto, que lhe conta os significados dos nomes. Explica que Valentina Vitória significa forte vencedora e que Maria quer dizer a escolhida, a senhora. Maria começa a pensar no seu sobrenome tão pequeno e simples: Campos. O sobrenome da amiga é tão longo e pomposo: Mendes Teixeira Couto. Além disso, Valentina tem mania de dizer: ‘Isso é mágico!’. A mãe de Valentina vive dizendo: ‘Imagina!’. Levada por essas palavras, Maria escolhe assumir alguns nomes citados pela amiga, senhora de que seria bom viajar para diferentes cidades do Brasil, em cada lugar ter um nome e viver o seu significado. Afinal, ela tem 18 anos e ainda não sabe o que fazer da vida. O livro, em sua página 18, diz assim: “Não lhe custaria nada, pelo contrário, ia ser simplesmente uma delícia se batizar de outros nomes, passar uns dias em outros lugares, imagina, fazer de conta que era outras pessoas. Nossa, que maravilha de vida, que coisa mágica”.

E que nomes vai escolhendo?
Em Brasília, ela é Zoraida, a sedutora. Em Belo Horizonte é Miriam, a filha desejada. Em São Paulo é Simone, a que escuta. Em São João del-Rei é Gilda, a que pode se sacrificar. No Rio de Janeiro é Nídia, o pássaro que acabou de sair do ninho. Com o dinheiro das economias da mãe, que concorda com a viagem da filha ao lhe perceber a angústia, Maria aos poucos vai incorporando o significado de cada nome, vai somando um ao outro, mas sem perder sua natureza, sua persistência no encantamento pela vida. Ao assistir ao filme Lisbela e o prisioneiro, ela se apaixona pelo ator Selton Mello, vive um amor platônico e poético, muito comum na vida de jovens tímidas. O interessante é que o próprio Selton Mello leu os originais do romance, gostou muito da história, da maneira com que é narrada, e acabou escrevendo a apresentação do livro. Trata-se de um romance não linear que mistura fantasia e realidade num jogo de lembranças e vivências. Aparecem as durezas da vida, violências e injustiças, mas tudo em contato com a sutileza e a atmosfera poética, sem abrir mão da ironia e do bom humor.

Sua infância, passada em Belo Horizonte, teve a ver com a história?

Minha infância foi no Bairro Salgado Filho, onde passeava de charrete, brincava de guisadinho, ia à cidade com minha mãe e meus irmãos mais novos, ficava assuntando os detalhes da Igreja da Boa Viagem, tirava retrato no Parque Municipal e repetia, fascinada, os nomes das ruas: Goitacazes, Aimorés... Os nomes dos bairros: Prado, Gameleira, Calafate. Mais tarde, conheci o Mercado Central e me encantei com aqueles balcões em que se podem comprar bolos, queijos, doces, pimentas, utensílios domésticos, bebidas, carnes, etc. A garota do livro adora tomar café e comer biscoitos de queijo no Mercado Central e conta isso para um desenhista que conhece na Praça Raul Soares. Ele, então, começa a chamá-la de a mocinha do Mercado Central. Maria demora a rever esse desenhista, mas a vida, sempre urdideira de surpresas, de repente faz com que ela o reencontre numa ocasião muito marcante. De uma forma ou de outra, Belo Horizonte sempre aparece nos meus livros.

Vê-se que a vencedora do Jabuti é boa contadora de histórias...
Minha mãe, sim, é uma grande contadeira de histórias. Dela herdei a vocação para a narrativa. Aos 8 anos, fiz uma composição de quase 20 páginas. Ao devolvê-la, a professora Marlene me disse: “Stellinha, você vai ser escritora”. Depois do curso primário, nunca mais encontrei essa professora, mas costumo dizer que ela é uma das pessoas mais importantes da minha vida, porque, apesar dos possíveis erros gramaticais, dona Marlene viu imaginação e criatividade no texto, e é isso o que importa. A partir desse dia, passei a frequentar com mais afinco e alegria o lugar mais revolucionário da escola: a biblioteca. 

Você não ficou só na literatura. É atriz, cantora, dramaturga. Qual é o lugar da escrita em sua vida?
Ela é a minha arte preferida. Adoro desenhar, cantar e interpretar, mas a palavra e o silêncio são as minhas ferramentas indispensáveis. Costumo dizer: literatura é a arte que fala por silêncios e se cala por palavras. Nisso se resume o meu projeto estético. Trabalho com metáforas, imagens, sonoridades, musicalidades, elipses, ironias, contradições e mistérios, sempre em busca de uma linguagem poética. O teatro, as artes plásticas, a atuação em televisão e a música ainda fazem parte da minha vida, mas há muitos anos me dedico a interpretar, cantar, desenhar e pintar com palavras e entrelinhas. Já publiquei poemas, contos e novelas; no entanto, cada vez mais o romance ocupa um lugar preponderante. Meus novos livros juvenis são romances: Bendita seja esta maldita paixão, Amor é fogo, O artista na ponte num dia de chuva e neblina e A filha da vendedora de crisântemos, entre outros.

Qual é o segredo de escrever para a garotada?

Escrever exige compromisso com a arte, sem concessões a modismos. O que importa é o trabalho com a linguagem, o cuidado com a palavra, o respeito pela inteligência, o incentivo à imaginação e ao pensamento crítico. Há crianças e jovens que leem literatura motivados por professores leitores. O jovem leitor pode ser sofisticado, exigir mais da vida, ler literatura de fato, porque o ser humano nasceu para a sofisticação, para o mais bonito e benfeito. Basta ter acesso. Como dizia Bartolomeu Campos de Queirós, precisamos lutar por um Brasil mais literário, porque a literatura provoca, desatina e desorienta de modo saudável, incomoda, faz questionar, imaginar e ter vontade de reiventar o mundo. Escrever para crianças e jovens não tem um determinado segredo. O fundamental é ter um projeto estético e de certa forma se deixar levar pela imaginação, pelas aventuras da palavra e do silêncio, pelo sonho e pela fantasia. Ou sem abrir mão da realidade do cotidiano, se esse for o projeto do escritor, visto que nas coisas mais simples do dia a dia também existe mágica, há maravilhas, mistérios e descobertas. Sei que grande parte dos jovens lê livros sem qualidade literária, impulsionada pelo marketing de obras que ensinam coisas e padronizam comportamentos. São cheias de estereótipos, lições de vida, didatismos, religiosidades conservadoras e avessos às indagações. Mas também sei que há forte campanha de paixão pela literatura desenvolvida por grandes contadores de histórias, guerreiros professores pelo Brasil afora, educadores antenados e dispostos a sair da “área de segurança” para viver na insegurança sadia da dúvida, da pergunta e da imaginação.

A MOCINHA DO MERCADO CENTRAL
• De Stella Maris Rezende
• Editora Globo, 112 páginas, R$ 29,90
 Com a novela A mocinha do Mercado Central, a escritora mineira Stella Maris Rezende ganhou o Prêmio Jabuti 2012 na categoria livro juvenil. O segundo lugar também foi para ela, por A guardiã dos segredos de família. Ao falar de seu ofício, essa mineira faz suas as palavras do conterrâneo Bartolomeu Campos de Queirós: “Precisamos lutar por um Brasil mais literário, porque a literatura provoca, desatina e desorienta de modo saudável. Incomoda, faz questionar, imaginar e ter vontade de reinventar o mundo”. Nascida em Dores do Indaiá, no Centro-Oeste do estado, Stella Maris passou a infância na capital mineira. Atualmente, mora no Rio de Janeiro. Atriz e cantora, ela diz que a literatura exige, sobretudo, compromisso com a arte – sem concessões a modismos. A mocinha do Mercado Central integra trilogia ao lado de A sobrinha do poeta e As gêmeas de Brasília (cujo lançamento está previsto para o ano que vem).

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