Zero Hora - 21-11-2012
Era cedo da manhã e eu estava na sacada do meu apartamento lendo o
jornal e pegando um pouco de sol. Foi quando a escavadeira começou o seu
serviço. Com um barulho irritante, foi demolindo uma casa onde vivia
uma velhinha miúda e briguenta. Não raro eu a via em plena calçada, de
roupão, discutindo com algum vizinho. O que será que aconteceu a ela?
Espero que esteja bem, mas sua casa morreu de morte matada.
No fim daquele mesmo dia, havia tudo sido posto abaixo. Pilares,
paredes, telhado. Do ponto de vista de onde eu estava, a casa me pareceu
pequena, uma miniatura insignificante. Mas nunca será insignificante um
lugar onde foram criados filhos, onde refeições em família aconteceram,
onde Natais foram celebrados, onde amigos foram recebidos e onde houve
um jardim. Casas possuem algo de sagrado.
Nunca morei em casa, sempre em apartamentos que serviram de cenário
para a história de vida que construí. O da Rua Fabrício Pillar, onde
passei a infância, o da Dom Pedro II, onde vivi a adolescência, o da
Lavras, onde morei sozinha, o da Mariz e Barros, onde escrevi meus
poemas e tive minhas filhas, o da João Obino, onde as criei e comecei a
escrever crônicas, e este onde vivo agora, num andar alto em que posso
observar boa parte da cidade e o estrago que algumas escavadeiras fazem
em volta.
Tenho ótimas lembranças dos meus ex-apartamentos, mas, se os
edifícios em que se localizam fossem demolidos, a nostalgia seria
repartida entre muitos, não me sentiria atingida de forma especial. Casa
tem um status diferente. Cada casa é única. Traz o DNA da família. Não é
produto de classificados.
Não moro em casa porque sou prática, gosto de bater a porta e não me
preocupar com questões de segurança, além de fazer questão de vista
panorâmica. Mas não deixo de admirar as casas de rua, casas passadas de
pais para filhos, casas teimosas que se mantêm de pé a despeito das
escavadeiras. Toda casa é uma sobrevivente, deveria exibir na porta uma
medalha pela resistência.
Esse preâmbulo todo é pra falar do novo livro da Cintia Moscovich,
Essa Coisa Brilhante que é a Chuva, onde ela reúne contos primorosos,
com um humor muito peculiar e uma humanidade que nos nocauteia. O mais
longo, que encerra o livro, narra a história de uma casa e de uma
família.
“Uma forma de herança”, chama-se, e comove profundamente, pois traz à
tona o que está mais que evidenciado: as escavadeiras andam passando
por cima das nossas eternidades. Hoje não preservamos as matrizes da
nossa história, viramos cidadãos dispersados, cada um sob seu teto. A
solidão, quem diria, também pode ser um subproduto da especulação
imobiliária.
A Feira acabou, mas os livros seguem no mercado. Anote: Essa Coisa
Brilhante que é a Chuva, de Cintia Moscovich. Se você acha o título
longo e difícil de guardar, decore ao menos uma palavra: brilhante.
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